Proc. N.º 145/16.5T8CCH.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Juízo de Competência Genérica de Coruche I. Relatório: O Ministério Público, em representação do Estado Português, instaurou acção declarativa constitutiva, a seguir a forma única do processo comum, contra (…), casado, residente na Rua e Lugar de (…), São José da (…), Coruche, e (…) e mulher, (…), residentes no Lugar da (…), da sobredita freguesia de São José da (…), concelho de Coruche, pedindo a final seja “anulado o acto de fracionamento consubstanciado na escritura de justificação lavrada no Cartório Notarial de Ana Fernanda Clara de Almeida no dia (…), com todas as consequências legais decorrentes de tal declaração, designadamente para efeitos de registo”. Em fundamento alegou, em síntese, terem os RR outorgado a aludida escritura de justificação, na qual ficou consignado ter o 1.º R declarado ser o legítimo possuidor do prédio misto que identificou, sito no lugar de (…) ou Foros de (…), com a área de 4.3355 m2, a destacar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche sob o n.º (…) e aí inscrito a favor dos 2.ºs RR. Mais declarou no acto que o aludido prédio veio à sua posse mediante doação verbal efectuada pelos 2.ºs RR, seus pais, no ano de 1995, vindo desde então a usá-lo e frui-lo de modo exclusivo, sobre ele praticando actos de posse pública, pacífica e de boa-fé que, por ter perdurado por mais de 20 anos, conduziu à aquisição do direito de propriedade respectivo por usucapião. Ocorre, porém, que o prédio do qual foi desanexada a aludida parcela tinha a área total de 10.500 m2, sendo de classificar como terreno de sequeiro arvense, integrado na RAN, consubstanciado a descrita desanexação uma operação de fraccionamento ilegal, por violadora do art.º 1376.º, n.º 1, do CC conjugado com a Portaria 202/70, de 21/4, e art.º 27º do DL 73/2009, de 31/3, sendo portanto anulável nos termos do art.º 1379.º, n.º 1 daquele primeiro diploma. * Citados os RR, contestou apenas o demandado (…), sustentando serem verdadeiros os factos declarados na escritura de justificação, pelo que adquiriu o prédio assim autonomizado por usucapião, que expressamente invocou, a qual prevalece sobre eventual ilegalidade do dito fraccionamento, devendo a acção ser julgada improcedente. * Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, delimitado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova nos termos constantes do despacho exarado a fls. 66-67, sem reclamação das partes. Teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo-se a Mm.ª juíza deslocado ao local em questão, vindo a final a ser proferida douta sentença que decretou a total improcedência da acção, absolvendo os RR dos pedidos formulados. Irresignado, apelou o M.P. e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes necessárias conclusões: “1.ª- As normas vigentes que visam a proibição de fracionamento de prédios rústicos são normas imperativas que visam a preservação do ambiente, o ordenamento do território e a qualidade de vida; 2.ª- São erigidos em normas que defendem os interesses de toda a coletividade e são exemplos de interesses difusos (art.º 52.º, n.º 3, al. a), da Constituição), cuja defesa incumbe ao M. Público. 3.ª- Na sentença recorrida conferiu-se prevalência aos interesses dos particulares intervenientes na escritura de justificação notarial, admitindo-se a aquisição por usucapião de um prédio rústico, ainda que com violação das normas de proibição de fracionamento, em detrimento das normas imperativas a que subjazem interesses de ordem pública, que proíbem o fracionamento de prédios rústicos. 4.ª- Tal interpretação não é, porém, consentânea com a regra definida no artigo 9.º do Código Civil, que prevê que na interpretação deve ponderar-se a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 5.ª- Na verdade, na ponderação das normas em confronto (por um lado, as normas que regem o instituto de aquisição por usucapião e, por outro lado, as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos), o fulcro da questão está em saber o valor que a posse invocada para aquisição por usucapião tem, se a mesma se impõe mesmo contrariando normas de interesse público de valor constitucional (art.º 66.º da Constituição). 6.ª A pergunta que se coloca é: os atos de posse baseados num facto proibido pelas leis imperativas de interesse público permitem a aquisição por usucapião? 7.ª Sufragamos o entendimento que não é assim atualmente – como já se admitia que não o fosse no âmbito do Código de Seabra – «não obstante o artigo 1287.º do Código Civil excluir a usucapião quando haja "disposição em contrário" – no Código de 1867, o artigo 506.º, excluía do objeto da usucapião as coisas "que não forem exceptuadas por lei" – que o seu âmbito de aplicação é mais vasto, não sendo de excluir a usucapião apenas quando uma disposição legal o determine. Mencionava-se já no âmbito do Código de Seabra que a lei consentia exceções implícitas, tal o caso das coisas incorpóreas.» 8.ª Na verdade, como se referiu supra «A exclusão da usucapião sobre parcelas de propriedade justifica-se quando dela resulte ofensa de princípios de direito público; justifica-se igualmente noutros casos no sentido em que a usucapião, enquanto instrumento legal de aquisição originária de um direito, não pode servir, qual esponja que apaga o ato constitutivo da aquisição derivada da propriedade, para afastar normas imperativas que sujeitam quem adquiriu a coisa por aquisição derivada.» 9.ª Não é, destarte, admissível a aquisição por usucapião de uma parcela de um prédio rústico resultante de fracionamento ilegal, por desrespeitar as regras de proibição de fracionamento de prédios com a área mínima correspondente à unidade de cultura para a região – estando o prédio inserido em Reserva Agrícola Nacional. 10.ª Já que tal aquisição, contendendo com normas de caráter imperativo, que visam a tutela de interesses predominantemente públicos por traduzirem o reconhecimento jurídico de um bem que, em primeira linha, compete à comunidade, não pode considerar-se eficaz. 11.ª Ao decidir em sentido contrário, a Mma Juiz “a quo” violou o disposto nos artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil e Portaria n.º 202/70, de 21/04 (vd. atualmente a Portaria 219/2016, de 09/08) conjugada com o artigo 27.º do Dec.-Lei n.º 73/2009, de 31/03) e o artigo 66.º da CRP e o artigo 294.º do Código Civil. 12.ª Ademais, é notório que sendo “in casu” outorgantes na escritura de justificação notarial pais e filho, alegando os primeiros que o filho possui a parcela do prédio que pretende usucapir há mais de vinte anos, já que lho doaram verbalmente, tal negócio jurídico apresenta-se como uma forma de camuflar o negócio jurídico de doação realizado entre os mesmos. 13.ª Doação essa que os Réus não formalizaram nem formalizam, por se traduzir em negócio contrário às normas legais imperativas que proíbem o fracionamento pretendido. 14.ª Assim, in casu, a aquisição por usucapião, além de ser ilegal (contrária a normas legais imperativas), consubstancia um negócio de fraude à lei («procedimento pelo qual um particular realiza, por forma inusitada, um tipo legal em vez de um outro, a fim de provocar a consequência jurídica daquele, em vez deste, sendo seus elementos constitutivos: a) norma fraudada; b) norma-instrumento; c) actividade fraudatória; d) intenção fraudatória»). 15.ª Sendo a usucapião invocada na escritura um negócio através do qual se pretendeu obter um resultado que pela via da doação não seria admissível – ou seja, um negócio de fraude à lei, que é nulo. 16.ª «A fraude à lei tem o mesmo valor da directa violação da lei, sendo por isso abrangida pelo disposto nos artigos 294.º e 280.º do Código Civil». 17.ª Pelo exposto, é manifesto que estando demonstrado nos factos provados na sentença recorrida que pela escritura de justificação notarial os Réus operaram um fracionamento contrário a normas legais imperativas de um prédio rustico inserido em Reserva Agrícola Nacional, a única decisão compatível com os factos apurados é a declaração de invalidade da escritura e consequente cancelamento do respetivo registo. 18.ª Nestes termos e nos demais de direito, deve julgar-se procedente o presente recurso e, em consequência, ser a ação intentada pelo Ministério Público ser julgada procedente com todas as consequências legais”. Os RR não contra-alegaram. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, sãs as seguintes as questões suscitadas pelo apelante: i. Da (in)admissibilidade da aquisição por usucapião de parcela de um prédio rústico por força de uma operação “de fracionamento ilegal”; ii. Da fraude à lei. * II. Fundamentação De facto Não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto e inexistindo motivo para proceder à sua alteração oficiosa, são os seguintes os factos a considerar, todos eles julgados provados: 1. No dia sete de Setembro de dois mil e quinze, no Cartório Notarial de Coruche, foi outorgada escritura nos seguintes termos “(…) compareceram como outorgantes: PRIMEIRO (…), viúvo (…); SEGUNDOS (…), (…), (…); TERCEIROS (…) e mulher (…); e disse o primeiro outorgante que é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, do bem imóvel a seguir identificado: Misto, com a área de quatro mil trezentos e cinquenta e cinco metros quadrados, sito no lugar de (…) ou Foros de (…), freguesia de São José da (…), concelho de Coruche, composto, a parte rústica por figueiras, oliveiras, vinha, hortejo e laranjeiras, e a parte urbana composta por uma casa de rés-de-chão, para habitação, com duas divisões e um palheiro, com a superfície coberta de oitenta e seis, vírgula, setenta metros quadrados; inscrito na matriz rústica sob parte do artigo (…), secção M, (…), e na matriz urbana sob o artigo (…); a confrontar a Norte com (…), de Sul com (…), de Nascente com Rua (…) e de Poente com Rua (…); a desanexar do descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche sob o número (…), da freguesia de São José da (…), onde se encontra registada a aquisição a favor dos terceiros outorgantes, pela inscrição resultante da apresentação (…), de oito de Outubro de dois mil e nove, mas resultante do inventário obrigatório que correu termos no Tribunal Judicial de Coruche sob o número trinta e quatro barra oitenta e sete, transitado em cinco de Julho de mil novecentos e oitenta e nove, de que me foi exibida certidão emitida pelo referido tribunal em dezassete de Outubro de dois mil e nove. Que o justificante não é detentor de qualquer título formal que legitime o domínio sobre esse prédio, o qual veio à sua posse por lhe haver sido doado, em Maio de mil novecentos e noventa e cinco, sob a forma meramente verbal, por seus pais: (…) e (…), sem nunca terem lavrado o correspondente título, mas existindo como unidade predial autónoma e devidamente demarcado desde essa data. (…) Que, dadas as enunciadas características de tal posse, o justificante adquiriu o mencionado prédio por usucapião – título este, que, por natureza, não é susceptível de ser comprovado pelos meios normais, invocando, por isso, esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais. Pelos segundos outorgantes foi dito: que por serem verdadeiras, confirmam, para todos os efeitos legais, as antecedentes declarações. Os Terceiros Outorgantes disseram: Que confirmam, na qualidade de titulares inscritos e restantes herdeiros dos titulares inscritos, por serem verdadeiras, as declarações do Primeiro outorgante, reconhecendo o direito invocado (…) ”. 2. O prédio situado em (…), inscrito na matriz rústica sob o n.º (…) da secção M e na matriz urbana sob os artigos (…), (…) e (…), com a área total de 10.500m2, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche, sob o n.º …/20091008. 3. O prédio referido em 2. tem registada pela Ap. (…) de 2009/10/08 a aquisição a favor de (…), casada com (…), tendo por causa partilha judicial. 4. A sentença que homologou o mapa de partilha que fundamenta o registo referido em 3. transitou em julgado em 11 de Julho de 1989. 5. O prédio objecto da escritura de justificação referida em 1. encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche sob o n.º (…)/20151026, tendo sido desanexado do prédio identificado em 2., e encontra-se registado a favor do Réu pela Ap. (…) de 2015/10/26, por aquisição por usucapião. 6. Com data de 19 de Fevereiro de 2016, a Direcção-Geral do Território – Delegação Regional de Lisboa e Vale do Tejo emitiu parecer desfavorável à desanexação do prédio objecto da escritura de justificação referida em 1., referindo “O prédio justificado com área de 0,4355 ha não possui a área mínima de cultura de 12.000 ha de acordo com a tipologia dominante – Terrenos de Sequeiro Arvenses integrados na Reserva Agrícola Nacional, conforme Portaria nº 202/70 de 21 de Abril e art.º 27º do Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional. A justificação notarial da usucapião que visa titular a aquisição de parte de um prédio rústico, resultando no fraccionamento deste, é ilegal por violar as normas relativas ao fraccionamento de prédios rústicos dispostas no artigo 1376.º do Código Civil. (…)”. 7. Quando foi efectuado o registo referido em 3. o prédio objecto da escritura de justificação notarial referido em 1. já se encontrava demarcado nas suas estremas por (…) e (…) terem dividido o prédio referido em 2. e haverem doado as parcelas deles resultantes aos seus filhos (…) e ao ora réu no ano de 1995. 8. O prédio do qual foi desanexada a parcela objecto da escritura de justificação notarial referido em 1. adveio à posse dos pais do réu por sentença transitada em Julho de 1989, que homologou o mapa da partilha em inventário que correu termos por óbito de (…), tendo aqueles procedido à divisão do prédio em Maio de 1995 em duas parcelas, tendo doado uma ao réu e outra ao filho (…). 9. Desde Maio de 1995 é o 1.º réu quem cultiva a vinha e o olival, deles colhendo os frutos, fazendo vinho e azeite para consumo próprio. 10. Quem plantou ameixoeiras, macieiras, pessegueiros, pereiras, laranjeiras, semeia e colhe produtos hortícolas. 11. Quem limpa o terreno à volta da casa, procede à sua manutenção e a caia anualmente, e onde guarda alfaias agrícolas e um pequeno trator para cuidar do terreno. 12. Construiu um caminho em Junho de 1995 que dá acesso à Rua (…) e à Rua (…), atravessando todo o terreno objecto da escritura de justificação, tendo para o efeito arrancado parte da vinha. 13. O que faz à vista de toda a gente. 14. E sem oposição de quem quer que seja. 15. Na convicção de não ofender o direito de quem quer que seja e que não prejudica ninguém. 16. Pelo 1.º R. e pelo seu irmão (…) é respeitada a divisão feita em Maio de 1995. * De Direito O autor veio pedir que seja “anulado o acto de fracionamento consubstanciado na escritura de justificação lavrada no Cartório Notarial de Ana Fernanda Clara de Almeida no dia 7/9/2015, com todas as consequências legais decorrentes de tal declaração, designadamente para efeitos de registo”, por violar o disposto no art.º 1376.º, infracção de lei sancionada com a anulabilidade nos termos do n.º 1 do art.º 1379.º na redacção em vigor ao tempo (anterior à introduzida pela Lei 111/2015, de 27/8). A questão de fundo, todavia, reconduz-se a saber se a usucapião opera e produz os seus efeitos em detrimento das normas que proíbem o fraccionamento de terrenos aptos para cultura. Resulta apurado nos autos que os 2.ºs RR, tendo-lhes sido adjudicado em inventário no ano de 1989 o prédio descrito em 2., dividiram-no em duas parcelas no ano de 1995, doando verbalmente uma a cada um dos filhos, (…) e (…), aqui 1.º R., encontrando-se fisicamente delimitadas desde então. Parece ainda inequívoco, perante a factualidade descrita nos pontos 7. a 16., que desde aquele ano de 1995 o 1.º R, de forma exclusiva, vem exercitando sobre a parcela que lhe foi doada -de área inferior à unidade de cultura para a zona, o que também não está em discussão nos autos e, de resto, se verificava igualmente no que concerne ao prédio mãe- actos de posse pública, pacífica e de boa-fé, situação que se manteve até à data da celebração da escritura de justificação referida no ponto 1. Atentas as apuradas características da posse que pelo 1.º R vem sendo exercida sobre a referida parcela de terreno, tendo perdurado por mais de 20 anos, é a mesma susceptível de conduzir à aquisição originária da porção de terreno sobre que incidiu, como prédio autónomo, por via da usucapião, tal como foi declarado na aludida escritura de justificação notarial e reconhecido na sentença impugnada. Com efeito, nos termos do art.º 1316.º, o direito de propriedade adquire-se, dentre os demais modos ali enumerados, por usucapião. Assim, a posse que perdure por determinado lapso de tempo tem a virtualidade de conferir ao possuidor o direito de propriedade sobre a coisa possuída (vide art.º 1287.º). Havendo título de aquisição e registo, a usucapião tem lugar quando a posse, sendo de boa-fé, tenha durado 10 anos contados do registo, ou 15, no caso de ser de má-fé; tais prazos, não existindo registo do título ou da mera posse, elevam-se para 15 e 20 anos, consoante estejamos perante posse de boa ou de má-fé (cf. art.ºs. 1294.º a 1296.º). A posse, define-a a lei como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real (art.º 1257.º). A actuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor constitui o “corpus”, resultando ainda da lei a exigência do “animus” ou intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela. Todavia, consciente da dificuldade, senão impossibilidade, de “fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente”, estabelece o n.º 2 do artigo 1252.º uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (“corpus”), tendo o STJ afirmado a doutrina de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” o que vale por dizer, numa outra formulação, que “no exercente do poder de facto presume-se o “animus” (Cf. o AUJ de 14 de Maio de 1996, in DR n.º 144 de 24/6/96). Atento o que vem de se expor, e considerando que o D. recorrente não questiona a factualidade apurada e acima enunciada, somos a concluir, secundando a conclusão a que chegou a 1.ª instância, que a posse exercida pelo 1.º R. reúne os caracteres conducentes à aquisição originária da aludida parcela por efeito da usucapião. No entanto, reconhecendo-se que o prédio assim autonomizado tem unidade inferior à unidade de cultura fixada para a zona, facto que se mostra identicamente indiscutido nos autos, estaremos perante um fracionamento ilegal, conforme defende o M.P., impondo-se a anulação do acto? Antes de mais, retroagindo a usucapião ao momento de início da posse, nos termos do art.º 1288.º, o que no caso vertente ocorreu nos idos de 1995, temos a maior dificuldade em considerar que o dito “fraccionamento” se deu no e com o acto de celebração da escritura de justificação, por via da declaração nela exarada. Assinalando precisamente este aspecto, o acórdão do TRE de 25/1/2018, proferido no processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/205436" target="_blank">7651/16.0T8STB.E1</a>[1], sublinhou que “O fracionamento de prédio rústico não ocorre por via do ato declarativo titulado na escritura de justificação em que é invocada a usucapião; antes tem lugar por via da aquisição, aquando do início da posse, do direito de propriedade ali declarado”. Precisou-se ainda, quanto à natureza da escritura de justificação notarial, tratar-se de um expediente técnico simplificado, legalmente concebido para titular, de forma especial, direitos sobre imóveis para efeitos de Registo na Conservatória do Registo Predial (baseado apenas em declarações dos próprios interessados, ainda que confirmadas por três declarantes), sendo os actos por tais escrituras titulados “negócios jurídicos unilaterais declarativos de aquisição originária das parcelas nelas identificados, não consubstanciando actos constitutivos ou translativos do direito de propriedade”. Por outro lado, afigura-se que o disposto no art.º 1376.º não constitui obstáculo a que a usucapião opere nos termos declarados na escritura de justificação a que se reportam os autos. A questão, amiúde recentemente suscitada nos nossos tribunais, foi tratada com desenvolvimento pelo STJ de 1 de Março de 2018, proferido na revista <a href="https://acordao.pt/decisoes/205919" target="_blank">1011/16.0T8STB.E1</a>.S1.A, aqui se tendo recusado o argumento, também invocado nestes autos pelo D. recorrente, segundo o qual, visando a norma do art.º 1376.º, n.º 1 a protecção do interesse público, tendo em vista a estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados, deverá prevalecer sobre a usucapião que, contrastando com tal disposição, tutelaria interesses individuais. A tal respondeu-se no aresto citado, citando Durval Ferreira, in “Posse e Usucapião”, Almedina, 3.ª ed., pág. 494, argumento que aqui se perfilha, que também as regras atinentes à usucapião são determinadas por razões de interesse público, visando “assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e à sua titularidade».[2] Acresce que nada na lei permite negar ao possuidor de parcela inferior à unidade de cultura o direito potestativo de aquisição por usucapião, atenta a fórmula constante do art.º 1287.º do CC, não autorizando interpretação nesse sentido o disposto no art.º 1376.º. Por último, e decisivamente, há que ter presente que a usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, tornando irrelevantes eventuais vícios, de natureza formal ou substancial precedentes, atinentes à alienação ou transferência da coisa para o seu novo titular. Assim o entende o Prof. A. Varela (vide nota 6. do comentário ao art.º 1379.º, no CC anotado), quando escreve “Se, através de um negócio jurídico nulo (v.g. por falta de forma) se realizar um fracionamento ou troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 13768.º e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obviam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais nesse sentido” (cf. ainda neste sentido aresto do STJ de 6/4/2017, processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/137354" target="_blank">1578/11.9TBVNG.P1</a>.S1, acessível em www.dgsi.pt). O D. recorrente sustenta ter sido o negócio jurídico formalizado na escritura uma “forma de camuflar o negócio jurídico de doação realizado entre os mesmos”, negócio que “contrariava as normas legais imperativas que proíbem o fracionamento pretendido”, pelo que a aquisição por usucapião, além de ilegal, “consubstancia um negócio de fraude à lei”. Antes de mais, impõe-se referir que os autos não revelam nenhum facto que indicie, sequer ao de leve, má-fé dos outorgantes na escritura de justificação judicial, nem tão pouco que os factos então declarados atinentes à posse pública, pacífica e de boa-fé que o justificante vem exercendo sobre a parcela nela identificada não correspondam rigorosamente à verdade; pelo contrário, impugnada a escritura em juízo, rectior, o acto por ela titulado[3], resultou antes demonstrado que as declarações nela exaradas tinham absoluta correspondência com a verdade. Impõe-se ainda precisar que a usucapião não é um negócio jurídico, surgindo definida como “um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa” (cf. Prof. A. Varela, Código Civil anotado, vol. III, em anotação ao art.º 1287.º), não sendo portanto afectada pelo mesmo quadro de vícios. De todo o modo, conforme se referiu e agora se reitera, tratando-se de um modo de aquisição originária, “os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas da posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes. Porque a usucapião se funda directa e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa, a invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada, e a ilegalidade do fraccionamento (falta de escritura pública e área inferior à da unidade de cultura), carecem de potencialidade ou idoneidade para interferir na operância daquela forma de aquisição da parcela” (do aresto do STJ de 27/6/2006, processo 06 A 1471, que se debruçou sobre questão similar, também disponível em www.dgsi.pt). Em conclusão, improcedendo todos os fundamentos recursivos, impõe-se confirmar a douta sentença apelada. * III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença apelada. Sem custas, por delas estar isento o M.P. (art.º 4.º, n.º 1, al. a), do RCP). * Sumário: I. Nada prevê a lei no sentido de não ser possível ao possuidor de parcela inferior à unidade de cultura que tenha resultado de divisão material exercer o direito potestativo de aquisição por usucapião, atenta a fórmula constante do art.º 1287.º do CC, não dispondo nesse sentido o art.º 1376.º do mesmo diploma legal. II. A usucapião, enquanto forma de aquisição originária do direito de propriedade, torna irrelevantes eventuais vícios precedentes, de natureza formal ou substancial, atinentes à alienação ou transferência da coisa para o seu novo titular. III. Não padece do vício da anulabilidade com que a lei vigente ao tempo sancionava o fraccionamento ilegal (n.º 1 do art.º 1379.º do CC, na versão anterior à entrada em vigor da Lei 111/2015, de 27 de Agosto) o acto titulado por escritura de justificação notarial na qual se declarou a aquisição por usucapião de parcela com unidade inferior à unidade de cultura, resultado de divisão material ocorrida há mais de 20 anos, sobre a qual o justificante veio exercendo desde então actos de posse pública, pacífica e de boa-fé. * Évora, 07 de Junho de 2018 Maria Domingas Alves Simões Vítor Sequinho dos Santos Maria da Conceição Ferreira __________________________________________________ [1] Subscrito pela ora relatora e pelo 2.º adjunto como 1.º e 2.º adjuntos, respectivamente, encontrando-se disponível em www.dgsi.pt. [2] In, “ Posse e Usucapião”, Almedina, 3ª ed., pág. 494. [3] Faz-se notar que os art.ºs 70.º e 71.º do Código do Notariado não prevêem como causa de nulidade dos actos notariais, nomeadamente das escrituras, qualquer vício do facto escriturado, ocupando-se tão-somente dos vícios formais do próprio acto e dos decorrentes da incompetência ou impedimento do funcionário que o lavra. Deste modo, a escritura em si mesma considerada, ou seja, como acto notarial, não padece do vício da nulidade, sendo antes, no caso de titular acto afectado do vício da nulidade ou anulabilidade, ineficaz e de nenhum efeito.
Proc. N.º 145/16.5T8CCH.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Juízo de Competência Genérica de Coruche I. Relatório: O Ministério Público, em representação do Estado Português, instaurou acção declarativa constitutiva, a seguir a forma única do processo comum, contra (…), casado, residente na Rua e Lugar de (…), São José da (…), Coruche, e (…) e mulher, (…), residentes no Lugar da (…), da sobredita freguesia de São José da (…), concelho de Coruche, pedindo a final seja “anulado o acto de fracionamento consubstanciado na escritura de justificação lavrada no Cartório Notarial de Ana Fernanda Clara de Almeida no dia (…), com todas as consequências legais decorrentes de tal declaração, designadamente para efeitos de registo”. Em fundamento alegou, em síntese, terem os RR outorgado a aludida escritura de justificação, na qual ficou consignado ter o 1.º R declarado ser o legítimo possuidor do prédio misto que identificou, sito no lugar de (…) ou Foros de (…), com a área de 4.3355 m2, a destacar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche sob o n.º (…) e aí inscrito a favor dos 2.ºs RR. Mais declarou no acto que o aludido prédio veio à sua posse mediante doação verbal efectuada pelos 2.ºs RR, seus pais, no ano de 1995, vindo desde então a usá-lo e frui-lo de modo exclusivo, sobre ele praticando actos de posse pública, pacífica e de boa-fé que, por ter perdurado por mais de 20 anos, conduziu à aquisição do direito de propriedade respectivo por usucapião. Ocorre, porém, que o prédio do qual foi desanexada a aludida parcela tinha a área total de 10.500 m2, sendo de classificar como terreno de sequeiro arvense, integrado na RAN, consubstanciado a descrita desanexação uma operação de fraccionamento ilegal, por violadora do art.º 1376.º, n.º 1, do CC conjugado com a Portaria 202/70, de 21/4, e art.º 27º do DL 73/2009, de 31/3, sendo portanto anulável nos termos do art.º 1379.º, n.º 1 daquele primeiro diploma. * Citados os RR, contestou apenas o demandado (…), sustentando serem verdadeiros os factos declarados na escritura de justificação, pelo que adquiriu o prédio assim autonomizado por usucapião, que expressamente invocou, a qual prevalece sobre eventual ilegalidade do dito fraccionamento, devendo a acção ser julgada improcedente. * Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, delimitado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova nos termos constantes do despacho exarado a fls. 66-67, sem reclamação das partes. Teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo-se a Mm.ª juíza deslocado ao local em questão, vindo a final a ser proferida douta sentença que decretou a total improcedência da acção, absolvendo os RR dos pedidos formulados. Irresignado, apelou o M.P. e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes necessárias conclusões: “1.ª- As normas vigentes que visam a proibição de fracionamento de prédios rústicos são normas imperativas que visam a preservação do ambiente, o ordenamento do território e a qualidade de vida; 2.ª- São erigidos em normas que defendem os interesses de toda a coletividade e são exemplos de interesses difusos (art.º 52.º, n.º 3, al. a), da Constituição), cuja defesa incumbe ao M. Público. 3.ª- Na sentença recorrida conferiu-se prevalência aos interesses dos particulares intervenientes na escritura de justificação notarial, admitindo-se a aquisição por usucapião de um prédio rústico, ainda que com violação das normas de proibição de fracionamento, em detrimento das normas imperativas a que subjazem interesses de ordem pública, que proíbem o fracionamento de prédios rústicos. 4.ª- Tal interpretação não é, porém, consentânea com a regra definida no artigo 9.º do Código Civil, que prevê que na interpretação deve ponderar-se a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 5.ª- Na verdade, na ponderação das normas em confronto (por um lado, as normas que regem o instituto de aquisição por usucapião e, por outro lado, as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos), o fulcro da questão está em saber o valor que a posse invocada para aquisição por usucapião tem, se a mesma se impõe mesmo contrariando normas de interesse público de valor constitucional (art.º 66.º da Constituição). 6.ª A pergunta que se coloca é: os atos de posse baseados num facto proibido pelas leis imperativas de interesse público permitem a aquisição por usucapião? 7.ª Sufragamos o entendimento que não é assim atualmente – como já se admitia que não o fosse no âmbito do Código de Seabra – «não obstante o artigo 1287.º do Código Civil excluir a usucapião quando haja "disposição em contrário" – no Código de 1867, o artigo 506.º, excluía do objeto da usucapião as coisas "que não forem exceptuadas por lei" – que o seu âmbito de aplicação é mais vasto, não sendo de excluir a usucapião apenas quando uma disposição legal o determine. Mencionava-se já no âmbito do Código de Seabra que a lei consentia exceções implícitas, tal o caso das coisas incorpóreas.» 8.ª Na verdade, como se referiu supra «A exclusão da usucapião sobre parcelas de propriedade justifica-se quando dela resulte ofensa de princípios de direito público; justifica-se igualmente noutros casos no sentido em que a usucapião, enquanto instrumento legal de aquisição originária de um direito, não pode servir, qual esponja que apaga o ato constitutivo da aquisição derivada da propriedade, para afastar normas imperativas que sujeitam quem adquiriu a coisa por aquisição derivada.» 9.ª Não é, destarte, admissível a aquisição por usucapião de uma parcela de um prédio rústico resultante de fracionamento ilegal, por desrespeitar as regras de proibição de fracionamento de prédios com a área mínima correspondente à unidade de cultura para a região – estando o prédio inserido em Reserva Agrícola Nacional. 10.ª Já que tal aquisição, contendendo com normas de caráter imperativo, que visam a tutela de interesses predominantemente públicos por traduzirem o reconhecimento jurídico de um bem que, em primeira linha, compete à comunidade, não pode considerar-se eficaz. 11.ª Ao decidir em sentido contrário, a Mma Juiz “a quo” violou o disposto nos artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil e Portaria n.º 202/70, de 21/04 (vd. atualmente a Portaria 219/2016, de 09/08) conjugada com o artigo 27.º do Dec.-Lei n.º 73/2009, de 31/03) e o artigo 66.º da CRP e o artigo 294.º do Código Civil. 12.ª Ademais, é notório que sendo “in casu” outorgantes na escritura de justificação notarial pais e filho, alegando os primeiros que o filho possui a parcela do prédio que pretende usucapir há mais de vinte anos, já que lho doaram verbalmente, tal negócio jurídico apresenta-se como uma forma de camuflar o negócio jurídico de doação realizado entre os mesmos. 13.ª Doação essa que os Réus não formalizaram nem formalizam, por se traduzir em negócio contrário às normas legais imperativas que proíbem o fracionamento pretendido. 14.ª Assim, in casu, a aquisição por usucapião, além de ser ilegal (contrária a normas legais imperativas), consubstancia um negócio de fraude à lei («procedimento pelo qual um particular realiza, por forma inusitada, um tipo legal em vez de um outro, a fim de provocar a consequência jurídica daquele, em vez deste, sendo seus elementos constitutivos: a) norma fraudada; b) norma-instrumento; c) actividade fraudatória; d) intenção fraudatória»). 15.ª Sendo a usucapião invocada na escritura um negócio através do qual se pretendeu obter um resultado que pela via da doação não seria admissível – ou seja, um negócio de fraude à lei, que é nulo. 16.ª «A fraude à lei tem o mesmo valor da directa violação da lei, sendo por isso abrangida pelo disposto nos artigos 294.º e 280.º do Código Civil». 17.ª Pelo exposto, é manifesto que estando demonstrado nos factos provados na sentença recorrida que pela escritura de justificação notarial os Réus operaram um fracionamento contrário a normas legais imperativas de um prédio rustico inserido em Reserva Agrícola Nacional, a única decisão compatível com os factos apurados é a declaração de invalidade da escritura e consequente cancelamento do respetivo registo. 18.ª Nestes termos e nos demais de direito, deve julgar-se procedente o presente recurso e, em consequência, ser a ação intentada pelo Ministério Público ser julgada procedente com todas as consequências legais”. Os RR não contra-alegaram. * Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, sãs as seguintes as questões suscitadas pelo apelante: i. Da (in)admissibilidade da aquisição por usucapião de parcela de um prédio rústico por força de uma operação “de fracionamento ilegal”; ii. Da fraude à lei. * II. Fundamentação De facto Não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto e inexistindo motivo para proceder à sua alteração oficiosa, são os seguintes os factos a considerar, todos eles julgados provados: 1. No dia sete de Setembro de dois mil e quinze, no Cartório Notarial de Coruche, foi outorgada escritura nos seguintes termos “(…) compareceram como outorgantes: PRIMEIRO (…), viúvo (…); SEGUNDOS (…), (…), (…); TERCEIROS (…) e mulher (…); e disse o primeiro outorgante que é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, do bem imóvel a seguir identificado: Misto, com a área de quatro mil trezentos e cinquenta e cinco metros quadrados, sito no lugar de (…) ou Foros de (…), freguesia de São José da (…), concelho de Coruche, composto, a parte rústica por figueiras, oliveiras, vinha, hortejo e laranjeiras, e a parte urbana composta por uma casa de rés-de-chão, para habitação, com duas divisões e um palheiro, com a superfície coberta de oitenta e seis, vírgula, setenta metros quadrados; inscrito na matriz rústica sob parte do artigo (…), secção M, (…), e na matriz urbana sob o artigo (…); a confrontar a Norte com (…), de Sul com (…), de Nascente com Rua (…) e de Poente com Rua (…); a desanexar do descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche sob o número (…), da freguesia de São José da (…), onde se encontra registada a aquisição a favor dos terceiros outorgantes, pela inscrição resultante da apresentação (…), de oito de Outubro de dois mil e nove, mas resultante do inventário obrigatório que correu termos no Tribunal Judicial de Coruche sob o número trinta e quatro barra oitenta e sete, transitado em cinco de Julho de mil novecentos e oitenta e nove, de que me foi exibida certidão emitida pelo referido tribunal em dezassete de Outubro de dois mil e nove. Que o justificante não é detentor de qualquer título formal que legitime o domínio sobre esse prédio, o qual veio à sua posse por lhe haver sido doado, em Maio de mil novecentos e noventa e cinco, sob a forma meramente verbal, por seus pais: (…) e (…), sem nunca terem lavrado o correspondente título, mas existindo como unidade predial autónoma e devidamente demarcado desde essa data. (…) Que, dadas as enunciadas características de tal posse, o justificante adquiriu o mencionado prédio por usucapião – título este, que, por natureza, não é susceptível de ser comprovado pelos meios normais, invocando, por isso, esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais. Pelos segundos outorgantes foi dito: que por serem verdadeiras, confirmam, para todos os efeitos legais, as antecedentes declarações. Os Terceiros Outorgantes disseram: Que confirmam, na qualidade de titulares inscritos e restantes herdeiros dos titulares inscritos, por serem verdadeiras, as declarações do Primeiro outorgante, reconhecendo o direito invocado (…) ”. 2. O prédio situado em (…), inscrito na matriz rústica sob o n.º (…) da secção M e na matriz urbana sob os artigos (…), (…) e (…), com a área total de 10.500m2, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche, sob o n.º …/20091008. 3. O prédio referido em 2. tem registada pela Ap. (…) de 2009/10/08 a aquisição a favor de (…), casada com (…), tendo por causa partilha judicial. 4. A sentença que homologou o mapa de partilha que fundamenta o registo referido em 3. transitou em julgado em 11 de Julho de 1989. 5. O prédio objecto da escritura de justificação referida em 1. encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche sob o n.º (…)/20151026, tendo sido desanexado do prédio identificado em 2., e encontra-se registado a favor do Réu pela Ap. (…) de 2015/10/26, por aquisição por usucapião. 6. Com data de 19 de Fevereiro de 2016, a Direcção-Geral do Território – Delegação Regional de Lisboa e Vale do Tejo emitiu parecer desfavorável à desanexação do prédio objecto da escritura de justificação referida em 1., referindo “O prédio justificado com área de 0,4355 ha não possui a área mínima de cultura de 12.000 ha de acordo com a tipologia dominante – Terrenos de Sequeiro Arvenses integrados na Reserva Agrícola Nacional, conforme Portaria nº 202/70 de 21 de Abril e art.º 27º do Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional. A justificação notarial da usucapião que visa titular a aquisição de parte de um prédio rústico, resultando no fraccionamento deste, é ilegal por violar as normas relativas ao fraccionamento de prédios rústicos dispostas no artigo 1376.º do Código Civil. (…)”. 7. Quando foi efectuado o registo referido em 3. o prédio objecto da escritura de justificação notarial referido em 1. já se encontrava demarcado nas suas estremas por (…) e (…) terem dividido o prédio referido em 2. e haverem doado as parcelas deles resultantes aos seus filhos (…) e ao ora réu no ano de 1995. 8. O prédio do qual foi desanexada a parcela objecto da escritura de justificação notarial referido em 1. adveio à posse dos pais do réu por sentença transitada em Julho de 1989, que homologou o mapa da partilha em inventário que correu termos por óbito de (…), tendo aqueles procedido à divisão do prédio em Maio de 1995 em duas parcelas, tendo doado uma ao réu e outra ao filho (…). 9. Desde Maio de 1995 é o 1.º réu quem cultiva a vinha e o olival, deles colhendo os frutos, fazendo vinho e azeite para consumo próprio. 10. Quem plantou ameixoeiras, macieiras, pessegueiros, pereiras, laranjeiras, semeia e colhe produtos hortícolas. 11. Quem limpa o terreno à volta da casa, procede à sua manutenção e a caia anualmente, e onde guarda alfaias agrícolas e um pequeno trator para cuidar do terreno. 12. Construiu um caminho em Junho de 1995 que dá acesso à Rua (…) e à Rua (…), atravessando todo o terreno objecto da escritura de justificação, tendo para o efeito arrancado parte da vinha. 13. O que faz à vista de toda a gente. 14. E sem oposição de quem quer que seja. 15. Na convicção de não ofender o direito de quem quer que seja e que não prejudica ninguém. 16. Pelo 1.º R. e pelo seu irmão (…) é respeitada a divisão feita em Maio de 1995. * De Direito O autor veio pedir que seja “anulado o acto de fracionamento consubstanciado na escritura de justificação lavrada no Cartório Notarial de Ana Fernanda Clara de Almeida no dia 7/9/2015, com todas as consequências legais decorrentes de tal declaração, designadamente para efeitos de registo”, por violar o disposto no art.º 1376.º, infracção de lei sancionada com a anulabilidade nos termos do n.º 1 do art.º 1379.º na redacção em vigor ao tempo (anterior à introduzida pela Lei 111/2015, de 27/8). A questão de fundo, todavia, reconduz-se a saber se a usucapião opera e produz os seus efeitos em detrimento das normas que proíbem o fraccionamento de terrenos aptos para cultura. Resulta apurado nos autos que os 2.ºs RR, tendo-lhes sido adjudicado em inventário no ano de 1989 o prédio descrito em 2., dividiram-no em duas parcelas no ano de 1995, doando verbalmente uma a cada um dos filhos, (…) e (…), aqui 1.º R., encontrando-se fisicamente delimitadas desde então. Parece ainda inequívoco, perante a factualidade descrita nos pontos 7. a 16., que desde aquele ano de 1995 o 1.º R, de forma exclusiva, vem exercitando sobre a parcela que lhe foi doada -de área inferior à unidade de cultura para a zona, o que também não está em discussão nos autos e, de resto, se verificava igualmente no que concerne ao prédio mãe- actos de posse pública, pacífica e de boa-fé, situação que se manteve até à data da celebração da escritura de justificação referida no ponto 1. Atentas as apuradas características da posse que pelo 1.º R vem sendo exercida sobre a referida parcela de terreno, tendo perdurado por mais de 20 anos, é a mesma susceptível de conduzir à aquisição originária da porção de terreno sobre que incidiu, como prédio autónomo, por via da usucapião, tal como foi declarado na aludida escritura de justificação notarial e reconhecido na sentença impugnada. Com efeito, nos termos do art.º 1316.º, o direito de propriedade adquire-se, dentre os demais modos ali enumerados, por usucapião. Assim, a posse que perdure por determinado lapso de tempo tem a virtualidade de conferir ao possuidor o direito de propriedade sobre a coisa possuída (vide art.º 1287.º). Havendo título de aquisição e registo, a usucapião tem lugar quando a posse, sendo de boa-fé, tenha durado 10 anos contados do registo, ou 15, no caso de ser de má-fé; tais prazos, não existindo registo do título ou da mera posse, elevam-se para 15 e 20 anos, consoante estejamos perante posse de boa ou de má-fé (cf. art.ºs. 1294.º a 1296.º). A posse, define-a a lei como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real (art.º 1257.º). A actuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor constitui o “corpus”, resultando ainda da lei a exigência do “animus” ou intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela. Todavia, consciente da dificuldade, senão impossibilidade, de “fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente”, estabelece o n.º 2 do artigo 1252.º uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (“corpus”), tendo o STJ afirmado a doutrina de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” o que vale por dizer, numa outra formulação, que “no exercente do poder de facto presume-se o “animus” (Cf. o AUJ de 14 de Maio de 1996, in DR n.º 144 de 24/6/96). Atento o que vem de se expor, e considerando que o D. recorrente não questiona a factualidade apurada e acima enunciada, somos a concluir, secundando a conclusão a que chegou a 1.ª instância, que a posse exercida pelo 1.º R. reúne os caracteres conducentes à aquisição originária da aludida parcela por efeito da usucapião. No entanto, reconhecendo-se que o prédio assim autonomizado tem unidade inferior à unidade de cultura fixada para a zona, facto que se mostra identicamente indiscutido nos autos, estaremos perante um fracionamento ilegal, conforme defende o M.P., impondo-se a anulação do acto? Antes de mais, retroagindo a usucapião ao momento de início da posse, nos termos do art.º 1288.º, o que no caso vertente ocorreu nos idos de 1995, temos a maior dificuldade em considerar que o dito “fraccionamento” se deu no e com o acto de celebração da escritura de justificação, por via da declaração nela exarada. Assinalando precisamente este aspecto, o acórdão do TRE de 25/1/2018, proferido no processo 7651/16.0T8STB.E1[1], sublinhou que “O fracionamento de prédio rústico não ocorre por via do ato declarativo titulado na escritura de justificação em que é invocada a usucapião; antes tem lugar por via da aquisição, aquando do início da posse, do direito de propriedade ali declarado”. Precisou-se ainda, quanto à natureza da escritura de justificação notarial, tratar-se de um expediente técnico simplificado, legalmente concebido para titular, de forma especial, direitos sobre imóveis para efeitos de Registo na Conservatória do Registo Predial (baseado apenas em declarações dos próprios interessados, ainda que confirmadas por três declarantes), sendo os actos por tais escrituras titulados “negócios jurídicos unilaterais declarativos de aquisição originária das parcelas nelas identificados, não consubstanciando actos constitutivos ou translativos do direito de propriedade”. Por outro lado, afigura-se que o disposto no art.º 1376.º não constitui obstáculo a que a usucapião opere nos termos declarados na escritura de justificação a que se reportam os autos. A questão, amiúde recentemente suscitada nos nossos tribunais, foi tratada com desenvolvimento pelo STJ de 1 de Março de 2018, proferido na revista 1011/16.0T8STB.E1.S1.A, aqui se tendo recusado o argumento, também invocado nestes autos pelo D. recorrente, segundo o qual, visando a norma do art.º 1376.º, n.º 1 a protecção do interesse público, tendo em vista a estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados, deverá prevalecer sobre a usucapião que, contrastando com tal disposição, tutelaria interesses individuais. A tal respondeu-se no aresto citado, citando Durval Ferreira, in “Posse e Usucapião”, Almedina, 3.ª ed., pág. 494, argumento que aqui se perfilha, que também as regras atinentes à usucapião são determinadas por razões de interesse público, visando “assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e à sua titularidade».[2] Acresce que nada na lei permite negar ao possuidor de parcela inferior à unidade de cultura o direito potestativo de aquisição por usucapião, atenta a fórmula constante do art.º 1287.º do CC, não autorizando interpretação nesse sentido o disposto no art.º 1376.º. Por último, e decisivamente, há que ter presente que a usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, tornando irrelevantes eventuais vícios, de natureza formal ou substancial precedentes, atinentes à alienação ou transferência da coisa para o seu novo titular. Assim o entende o Prof. A. Varela (vide nota 6. do comentário ao art.º 1379.º, no CC anotado), quando escreve “Se, através de um negócio jurídico nulo (v.g. por falta de forma) se realizar um fracionamento ou troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 13768.º e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obviam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais nesse sentido” (cf. ainda neste sentido aresto do STJ de 6/4/2017, processo 1578/11.9TBVNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt). O D. recorrente sustenta ter sido o negócio jurídico formalizado na escritura uma “forma de camuflar o negócio jurídico de doação realizado entre os mesmos”, negócio que “contrariava as normas legais imperativas que proíbem o fracionamento pretendido”, pelo que a aquisição por usucapião, além de ilegal, “consubstancia um negócio de fraude à lei”. Antes de mais, impõe-se referir que os autos não revelam nenhum facto que indicie, sequer ao de leve, má-fé dos outorgantes na escritura de justificação judicial, nem tão pouco que os factos então declarados atinentes à posse pública, pacífica e de boa-fé que o justificante vem exercendo sobre a parcela nela identificada não correspondam rigorosamente à verdade; pelo contrário, impugnada a escritura em juízo, rectior, o acto por ela titulado[3], resultou antes demonstrado que as declarações nela exaradas tinham absoluta correspondência com a verdade. Impõe-se ainda precisar que a usucapião não é um negócio jurídico, surgindo definida como “um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa” (cf. Prof. A. Varela, Código Civil anotado, vol. III, em anotação ao art.º 1287.º), não sendo portanto afectada pelo mesmo quadro de vícios. De todo o modo, conforme se referiu e agora se reitera, tratando-se de um modo de aquisição originária, “os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas da posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes. Porque a usucapião se funda directa e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa, a invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada, e a ilegalidade do fraccionamento (falta de escritura pública e área inferior à da unidade de cultura), carecem de potencialidade ou idoneidade para interferir na operância daquela forma de aquisição da parcela” (do aresto do STJ de 27/6/2006, processo 06 A 1471, que se debruçou sobre questão similar, também disponível em www.dgsi.pt). Em conclusão, improcedendo todos os fundamentos recursivos, impõe-se confirmar a douta sentença apelada. * III. Decisão Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença apelada. Sem custas, por delas estar isento o M.P. (art.º 4.º, n.º 1, al. a), do RCP). * Sumário: I. Nada prevê a lei no sentido de não ser possível ao possuidor de parcela inferior à unidade de cultura que tenha resultado de divisão material exercer o direito potestativo de aquisição por usucapião, atenta a fórmula constante do art.º 1287.º do CC, não dispondo nesse sentido o art.º 1376.º do mesmo diploma legal. II. A usucapião, enquanto forma de aquisição originária do direito de propriedade, torna irrelevantes eventuais vícios precedentes, de natureza formal ou substancial, atinentes à alienação ou transferência da coisa para o seu novo titular. III. Não padece do vício da anulabilidade com que a lei vigente ao tempo sancionava o fraccionamento ilegal (n.º 1 do art.º 1379.º do CC, na versão anterior à entrada em vigor da Lei 111/2015, de 27 de Agosto) o acto titulado por escritura de justificação notarial na qual se declarou a aquisição por usucapião de parcela com unidade inferior à unidade de cultura, resultado de divisão material ocorrida há mais de 20 anos, sobre a qual o justificante veio exercendo desde então actos de posse pública, pacífica e de boa-fé. * Évora, 07 de Junho de 2018 Maria Domingas Alves Simões Vítor Sequinho dos Santos Maria da Conceição Ferreira __________________________________________________ [1] Subscrito pela ora relatora e pelo 2.º adjunto como 1.º e 2.º adjuntos, respectivamente, encontrando-se disponível em www.dgsi.pt. [2] In, “ Posse e Usucapião”, Almedina, 3ª ed., pág. 494. [3] Faz-se notar que os art.ºs 70.º e 71.º do Código do Notariado não prevêem como causa de nulidade dos actos notariais, nomeadamente das escrituras, qualquer vício do facto escriturado, ocupando-se tão-somente dos vícios formais do próprio acto e dos decorrentes da incompetência ou impedimento do funcionário que o lavra. Deste modo, a escritura em si mesma considerada, ou seja, como acto notarial, não padece do vício da nulidade, sendo antes, no caso de titular acto afectado do vício da nulidade ou anulabilidade, ineficaz e de nenhum efeito.