I Relativamente ao casamento entre dois cidadãos portugueses em França, realizado em 1970 por oficial do registo civil francês, cujo registo é lavrado por transcrição, exige-se um prévio processo de publicações. II Caso mesmo não tenha tido lugar, aplica-se o regime da separação de bens por aplicação do disposto no artº. 1720º, nº. 1, a), do C.C.. III- Resultando do registo “apenas” a declaração de não existência de convenção antenupcial, e não constando qualquer referência ao regime imperativo da separação de bens por aplicação daquela disposição legal, o regime de bens a ter em conta é o da comunhão de adquiridos, como regime supletivo aplicável (artº. 1717º do C.C.), face à força probatória do registo.
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância). Nos presentes autos de inventário por óbito de AA, foi nomeado cabeça de casal BB. Este declarou nos autos que: “Conforme oportunamente já explicado o inventariado casou em ..., França, sem convenção antenupcial. Não foi o casamento precedido de processo preliminar em Portugal, pelo que com a transcrição do casamento celebrado no estrangeiro, determinou o regime imperativo da separação de bens nos termos do disposto no art.º 1720.º al. a) do Código Civil. ( Cfr Certidão de casamento junta aos autos)”. Sobre essa questão recaiu o seguinte despacho: “I. Em primeiro lugar, o requerente requer a prestação de esclarecimentos pelo cabeça de casal em relação ao regime de bens. Sobre esta questão veio o cabeça de casal prestar esclarecimentos, que não mereceram reparo do requerente. Assim, cremos que tal questão se mostra ultrapassada.”*Interposto recurso do mesmo, foi proferido Acórdão por esta Relação em 30/11/2022 que considerou que essa matéria ainda não tinha sido alvo de decisão pelo Tribunal de 1ª instância. Nessa sequência foi proferido o seguinte despacho: “(…) Na medida do exposto, nada impede que nos debrucemos sobre a dita matéria na presente fase dos autos. Note-se, porém, que o requerente, em bom rigor, não suscita tal questão no seu requerimento, limitando a solicitar que o Tribunal “se pronuncie quanto ao regime de bens que entende ter vigorado na constância do matrimónio entre o ora aqui inventariado e o seu cônjuge sobrevivo e que consequentemente regerá a presente partilha de bens”. De feito, o requerente não toma posição alguma sobre o assunto nem contraria o alegado pelo cabeça-de-casal a esse propósito. Não obstante, sempre se dirá, a talho de foice, que, não tendo o requerente posto em causa que o casamento em questão foi celebrado não foi precedido do competente processo preliminar, se deverá que consequentemente considerar que o regime que vigorou entre os cônjuges foi o da separação de bens, pois que: - Nos termos do disposto no artigo 51.º, n.º 2, do Código Civil, na redacção em vigor à data do casamento, “O casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de português e estrangeiro pode ser celebrado perante agente diplomático ou consular do Estado português ou perante os ministros do culto católico; em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicações, organizado pela entidade competente, a menos que ele seja dispensado nos termos do artigo 1599.º” (sendo certo que, neste último caso, não está em causa o casamento “in articulo mortis, na iminência de parto ou cuja celebração imediata seja expressamente autorizada pelo ordinário próprio por grave motivo de ordem moral”). - Nos termos do disposto no artigo 201.º do Código do Registo Civil, na redacção em vigor à data do casamento (Decreto-lei 47678, de 5 de Maio), “O casamento previsto no artigo anterior deve ser precedido do processo de publicações organizado, nos termos dos artigos 166.º e seguintes, pelos agentes diplomáticos ou consulares portugueses competentes, ou pela Conservatória dos Registos Centrais, a menos que seja dele dispensado pela lei civil”. - Nos termos do artigo 1720.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redacção em vigor à data do casamento (Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro), “Consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens:… O casamento celebrado sem precedência do processo de publicações”. Pois bem, conforme resulta do teor da certidão de assento de casamento junta com o requerimento inicial, o inventariado e a interessada CC casaram, sem estipulação de convenção antenupcial, no dia ... de Abril de 1970, na Câmara Municipal ..., em França. sendo que tal matrimónio não foi precedido do competente processo preliminar de publicações perante os serviços do registo civil nacionais. Em face do exposto, consigna-se que o casamento celebrado entre o inventariado e a interessada CC foi contraído sob o regime da separação de bens. (…)”.*Inconformado, o requerente/interessado DD apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes -CONCLUSÕES-(que se reproduzem) “1. Discorda o apelante do Douto Despacho em crise proferida em 20 de abril de 2023, por entender, salvo o devido respeito, que: 2. O Tribunal a quo, não fez uma correta interpretação da lei quando se limitou à aplicação direta do artigo 1720º nº 1 al. a) do Código Civil e afirmou que o matrimónio não foi precedido do competente processo preliminar, quando do assento de casamento, única prova careada para o processo, não resulta tal entendimento, resulta antes o contrário, uma vez que o cônsul estava obrigado legalmente a fazê-lo na sua falta, para poder proceder à sua tradução e transcrição. 3. Discorda ainda o apelante do tribunal a quo quando o mesmo afirma que o apelante não colocou em causa que o casamento em questão foi celebrado sem o precedido e competente processo preliminar, uma vez que esta foi já questão de recurso judicial, para além de ser tema desde do primeiro ato processual. 4. É sobejamente conhecida, por todos os intervenientes neste processo, a questão do aqui apelante quanto ao regime de bens que vigorou durante a vigência do matrimónio de seus pais. Tenha ele deixado subentendido a base legal de seu entendimento nos seus articulados, tenha ele expressamente firmado em sede de recurso. 5. Agora a questão ao tribunal a quo foi direta e claramente realizada pelo apelante quanto ao regime de bens que vigorou na vigência do matrimónio, não podendo restar dúvidas quanto a isso, 6. tendo o tribunal se pronunciado claramente sob a sua posição que já tinha mostrado, timidamente, no despacho anteriormente recorrido. 7. O Tribunal a quo entendeu que o casamento celebrado entre inventariado e a interessada CC foi contraído sob o regime da separação de bens ”. 8. Mas o apelante sabe que o casamento foi celebrado em 1970 perante o conservador do registo civil ..., em França, e a sua transcrição no registo pelo consulado de Portugal em ... foi efetuada em ... de outubro de 1976; 9. A tal ato de registo era, pois, aplicável o Código de Registo Civil vigente à data. O aprovado pelo Decreto-Lei nº47678, de 5 de Maio de 1967. Como resultava do disposto nos arts. 228º nºs 1 e 2 e 229º nº1 daquele diploma, se o casamento não tivesse sido precedido de publicações a transcrição do mesmo no registo consular era “subordinada à prévia organização” de tal processo; 10. Naquele diploma estava ainda, que sempre que o regime matrimonial de bens tivesse carácter imperativo dever-se-ia, na transcrição, tal mencionar, indicando a disposição legal que o impunha. 11. Consentaneamente com este detalhe acabado de referir, até no próprio documento-formulário de transcrição sob a epígrafe “Menções especiais” era “reservado à menção especial prevista no nº3 do art. 219º (do Código do Registo Civil em vigor). 12. Decorre do regime de transcrição daquele tipo de casamento (celebrado por nacionais perante autoridade estrangeira) que tal ato de transcrição – que integra o ingresso do casamento na ordem jurídica portuguesa – foi delineado de modo a controlar sempre a existência do processo de publicações, já que, como dele emerge: - se havia processo de publicações prévio ao casamento, o cônsul, como é óbvio, não tinha que o realizar e efetuava (ou recusava, com base no que ao tempo se preceituava no art. 229º nº3 do diploma aplicável) a transcrição do casamento; - se não existia tal processo, o cônsul teria que o efetuar como ato necessariamente prévio à transcrição; 13. Logo, se o cônsul procedeu à transcrição é porque verificou que havia processo de publicações prévio ao casamento ou porque verificou que não existia tal processo e ele próprio o elaborou. 14. A efetividade da transcrição faz pressupor necessariamente uma ou outra coisa: isto é, ou houve processo de publicações prévio à celebração do casamento ou houve processo de publicações elaborado pelo cônsul. 15. Por outro lado, como supra se referiu, havendo que mencionar na transcrição, sob a epígrafe “Menções especiais” constante da mesma, o regime matrimonial de bens quando este tivesse carácter imperativo, indicando a disposição legal que o impunha, e nada ali constando, também por este lado nada temos que nos inculque que não houve processo de publicações prévio ao casamento. 16. Ora, se no documento não existe a menção da existência de qualquer convenção antenupcial nem consta ali referido o regime imperativo da separação de bens, o regime de bens a ter em conta é o da comunhão de adquiridos, como regime supletivo aplicável (art. 1717º do C. Civil). 17. Existindo assim todo o cabimento para o relacionamento de todos os bens titularizados quer pelo inventariado quer pelo seu cônjuge sobrevivo no processo de inventário intentado pelo apelante. .... De aludir ainda, que os próprios cônjuges ao longo do seu matrimónio se consideraram sempre casados sob o regime da comunhão de adquiridos. Veja-se a este respeito o declarado por ambos, aquando a compra da sua habitação e terreno de cultivo, em 9 de setembro de 2013, cfr. documento nº ... que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido.” Pede o provimento do recurso.*Não foram apresentadas contra-alegações.*O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo, o que foi confirmado por este Tribunal. Após os vistos legais, cumpre decidir.***II QUESTÕES A DECIDIR. Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos. Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir qual o regime de bens em que estavam casados o inventariado AA e a viúva e interessada CC. ***III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. Importa atender ao assento de casamento civil junto aos autos com o requerimento inicial, bem como ao assento de óbito junto, donde decorre que: -AA e CC, nascidos em Portugal e domiciliados em ..., apresentaram-se na Câmara Municipal ..., no dia .../4/1970, tendo declarado que não foi feita convenção antenupcial, e desejaram-se tornar-se esposos, pelo que foram declarados unidos pelo casamento em nome da Lei pelo adjunto ao Presidente da Câmara Municipal ..., oficial do Registo Civil por delegação, o que foi levado ao registo na Conservatória de Registo Civil .... -Aos .../10/1976, no Consulado de Portugal em ... foi transcrita a tradução do duplicado do registo original arquivado na Conservatória do Registo Civil ..., passada em .../10/1976 e apresentada naquele dia .../10. -Em “Menções especiais” nada consta. -O assento de casamento foi inscrito nos Registos Centrais. ***IV MÉRITO DO RECURSO. -DECISÃO DE DIREITO. As partes não discutem o teor da certidão do assento de casamento entre o inventariado e CC, junta aos autos. O que diz o recorrente é que ou já havia tido lugar o processo preliminar de publicações quando é pedida ao Consulado a transcrição do registo, ou o Cônsul, constatando tal omissão, estava obrigado a fazer o processo preliminar de publicações para poder proceder à tradução e transcrição do registo. Nada constando do assento quanto ao regime imperativo, pressupõe-se que houve lugar ao dito processo, e portanto vigora o regime supletivo. O Tribunal recorrido por sua vez deu por assente que não houve tal processo, pressupondo que o recorrente aceita tal facto. E, portanto, entendeu que por força do artº. 1720º, nº. 1, a), do C.C., vigora o regime da separação de bens. Estamos perante um documento autêntico (artº. 369º do C.C.), cuja força probatória resulta do disposto no artº. 371º do C.C.: “1. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.” Esta força probatória só pode ser ilidida mediante o incidente de falsidade, o que no caso não se suscita –artº. 372º do C.C.. Significa isto que não está em causa que os dois cônjuges declararam que não foi feita convenção antenupcial. Discute-se então a lei aplicável em relação ao regime de bens. O casamento foi celebrado em .../4/1970; trata-se de dois cidadãos portugueses, em França; e foi celebrado por oficial de registo civil. Dispunha o artº. 51º do C.C. na redação vigente à data que “2. O casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de português e estrangeiro pode ser celebrado perante agente diplomático ou consular do Estado português ou perante os ministros do culto católico; em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicações, organizado pela entidade competente, a menos que ele seja dispensado nos termos do artigo 1599.” Neste caso o casamento foi celebrado perante oficial do registo civil francês. Dizia o artº. 53º do mesmo C.C. que “1. A substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo da celebração do casamento.” Por sua vez o artº. 1720º, dispunha: “1. Consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens: a) O casamento celebrado sem precedência do processo de publicações;”. O registo do casamento de portugueses realizado no estrangeiro é, de acordo com o artº. 1665º, nº. 1, do mesmo diploma … lavrado por transcrição do documento comprovativo do casamento, passado de harmonia com a lei do lugar da celebração e devidamente legalizado. O artº. 201º do Código do Registo Civil, na redação em vigor à data do casamento (Decreto-lei nº. 47 678, de 5 de maio de 1967), dispunha quanto ao casamento no estrangeiro entre dois portugueses “O casamento previsto no artigo anterior deve ser precedido do processo de publicações organizado, nos termos dos artigos 166.º e seguintes, pelos agentes diplomáticos ou consulares portugueses competentes, ou pela Conservatória dos Registos Centrais, a menos que seja dele dispensado pela lei civil”. Do disposto nos artºs. 228º nºs. 1 e 2 e 229º nº. 1 daquele mesmo diploma, resultava que se o casamento não tivesse sido precedido de publicações a transcrição do mesmo no registo consular era “subordinada à prévia organização” de tal processo. O artº. 1666º do C.C. também dispunha que “1. Se o casamento não tiver sido precedido das publicações exigidas na lei, o cônsul organizará o respectivo processo. 2. No despacho final, o cônsul relatará as diligências feitas e as informações recebidas da repartição competente, e decidirá se o casamento pode ou não ser transcrito.” E o artº. 1667º que “A transcrição será recusada se, pelo processo de publicações ou por outro modo, o cônsul verificar que o casamento foi celebrado com algum impedimento que o torne anulável; sendo o casamento católico, a transcrição só será recusada nos mesmos termos em que o pode ser a transcrição dos casamentos católicos celebrados em Portugal.” Relativamente ao processo de publicações, dispunham os artºs. 1610º e segs., remetendo quanto à sua regulação para as leis de registo civil, e afirmando que se destina à averiguação da inexistência de impedimentos. Esta redação encontrava-se em vigor à data da transcrição. Por sua vez resultava do disposto nos artºs. 222º nº. 3 e 214º nº. 7 (ex vi do art. 228º nº2) da versão à data do Código de Registo Civil que, sempre que o regime matrimonial de bens tivesse carácter imperativo, dever-se-ia mencionar na transcrição, com indicação da disposição legal que o impunha. Aplicando ao caso, tendo o cônsul recebido o pedido de transcrição, e se nada constasse quanto às publicações legais, cabia-lhe a sua organização. Após decidia pela sua transcrição. Sucede que nada consta/nada sabemos quanto à realização do processo, nem antes da celebração do casamento, nem antes da sua decisão de transcrição. Por outro lado, o cônsul realizou a transcrição. Cabe desde já estabelecer aqui a diferença entre este caso que nos ocupa e o tratado no Ac. da Relação de Lisboa de 1/7/2003 (relator António Santos Abrantes Geraldes, www.dgsi.pt): neste caso do acórdão está assente que o casamento não foi procedido do processo de publicações, mediante informação prestada por ofício, e por isso a decisão incide antes de mais sobre a questão da aplicabilidade do artº. 1720º, nº. 1, a), do C.C. aos casos não só de dispensa do processo mas também aos casos em que indevidamente ele não foi organizado. Depois, no caso ali tratado, foi em momento posterior feito o averbamento "Sem convenção antenupcial mas sob o regime imperativo da separação de bens, por força do disposto na alínea a) do nº 1 do art. 1720º do Código Civil"; porém, aplicando a figura do abuso de direito, entendeu-se que o regime que devia reger as relações patrimoniais pós divórcio deveria ser o supletivo, de comunhão de adquiridos. Antes como atualmente, de acordo com o Código de Registo Civil, o registo civil é obrigatório e tem por objeto, além do mais, “As convenções antenupciais e as alterações do regime de bens convencionado ou legalmente fixado” –alínea e) do atual artº. 1º, nº. 1. Os factos sujeitos a registo obrigatório só podem ser invocados depois de registados –artº. 2º. A prova dos factos sujeitos a registo só pode ser feita pelos meios previstos no respetivo Código –artº. 4º. Atentos estes princípios, o Código de Registo Civil prevê formas de sanar/corrigir omissões, erros, e outros vícios do registo, mediante a eliminação ou introdução de averbamentos –cfr. artº. 70º quanto ao casamento (cfr. a título ilustrativo os Acs. da Relação de Lisboa de 2/10/2008, relator António Valente, e de 2/5/2023, relatora Cristina Coelho, este assumindo posição idêntica á que seguiremos na questão em apreciação, ambos em www.dgsi.pt). Aplicando ao caso, cremos que o Tribunal recorrido efetivamente parte de uma premissa errada: que o recorrente não pôs em causa que o casamento foi celebrado sem que tivesse sido elaborado o processo de publicações. E dá como assente essa premissa. Desde logo porque não importa se o recorrente questiona ou não esse facto, depois ele não pode ter-se por assente porque não resulta do teor do assento junto aos autos. Não resultando, e resultando “apenas” que o casamento não foi precedido de convenção antenupcial, não constando a referência ao carater imperativo resultado do artº. 1720º, nº. 1, a), do C.C., face à prevalência do que consta do registo de acordo com as normas citadas, temos que aplicar o regime de bens supletivo à data, ou seja, comunhão de adquiridos –artº. 1717º do C.C.. Daí que também não seja relevante a tentativa de apurar se efetivamente o processo não teve lugar, precisamente porque não tendo sido levado ao registo o regime imperativo por força legal, tal facto não releva. No Ac. da Relação do Porto de 3/10/2011 (relator Mendes Coelho, www.dgsi.pt), com decisão idêntica à que aqui assumimos, conclui-se até de forma mais assertiva: “Decorre do regime de transcrição daquele tipo de casamento (celebrado por nacionais perante autoridade estrangeira) que tal acto de transcrição – que integra o ingresso do casamento na ordem jurídica portuguesa – foi delineado de modo a controlar sempre a existência do processo de publicações, já que, como dele emerge: - se havia processo de publicações prévio ao casamento, o cônsul, como é óbvio, não tinha que o realizar e efectuava (ou recusava, com base no que ao tempo se preceituava no art. 229º nº3 do diploma aplicável) a transcrição do casamento; - se não existia tal processo, o cônsul teria que o efectuar como acto necessariamente prévio à transcrição. Logo, se o cônsul procedeu à transcrição é porque verificou que havia processo de publicações prévio ao casamento ou porque verificou que não existia tal processo e ele próprio o elaborou. A efectividade da transcrição – já que nada nos diz que a mesma não deveria ter ocorrido (por exemplo por falta de algum documento ou formalidade necessária) ou que a mesma enferma de alguma invalidade – faz pressupor necessariamente uma ou outra coisa: isto é, ou houve processo de publicações prévio à celebração do casamento ou houve processo de publicações elaborado pelo cônsul. Por outro lado, como supra se referiu, havendo que mencionar na transcrição, sob a epígrafe “Menções especiais” constante da mesma, o regime matrimonial de bens quando este tivesse carácter imperativo, indicando a disposição legal que o impunha, e nada ali constando, também por este lado nada temos que nos inculque que não houve processo de publicações prévio ao casamento (aquela circunstância, prima facie, até inculca que foi verificado que houve aquele processo, pois se se tivesse verificado que o mesmo não existiu tinha que ali constar mencionado o regime imperativo da separação de bens com base no disposto no art. 1720º nº1 a) do C. Civil)”. Acrescentaríamos apenas o seguinte, procurando clarificar: esta menção teria de ser averbada, se fosse o caso de se ter assim averiguado e constatado, através da organização do processo respetivo imposto pelo regime do registo civil, para poder ser invocada. Igual sentido teve a decisão do Ac. do STJ de 16/4/1998 (relator Herculano Namora, www.dgsi.pt) e o Ac. da Relação. do Porto de 26/01/1998 (relator Simões Freire, CJ 1998, Tomo I, págs. 193 a 195). Deve por isso ser revogada a decisão sob recurso, no sentido de se considerar antes que o casamento celebrado entre o inventariado e a interessada CC foi contraído sob o regime da comunhão de adquiridos.***V DISPOSITIVO. Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso do requerente/interessado procedente, e em consequência, conceder provimento à apelação, revogando a decisão recorrida na parte que considera o casamento celebrado entre o inventariado e a interessada CC contraído sob o regime da separação de bens, e consignando antes que foi contraído sob o regime da comunhão de adquiridos.*Custas do recurso a cargo do cabeça de casal (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.). * Guimarães, 28/setembro/2023. *Os Juízes Desembargadores Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade 1º Adjunto: Maria Gorete Morais 2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte (A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância). Nos presentes autos de inventário por óbito de AA, foi nomeado cabeça de casal BB. Este declarou nos autos que: “Conforme oportunamente já explicado o inventariado casou em ..., França, sem convenção antenupcial. Não foi o casamento precedido de processo preliminar em Portugal, pelo que com a transcrição do casamento celebrado no estrangeiro, determinou o regime imperativo da separação de bens nos termos do disposto no art.º 1720.º al. a) do Código Civil. ( Cfr Certidão de casamento junta aos autos)”. Sobre essa questão recaiu o seguinte despacho: “I. Em primeiro lugar, o requerente requer a prestação de esclarecimentos pelo cabeça de casal em relação ao regime de bens. Sobre esta questão veio o cabeça de casal prestar esclarecimentos, que não mereceram reparo do requerente. Assim, cremos que tal questão se mostra ultrapassada.”*Interposto recurso do mesmo, foi proferido Acórdão por esta Relação em 30/11/2022 que considerou que essa matéria ainda não tinha sido alvo de decisão pelo Tribunal de 1ª instância. Nessa sequência foi proferido o seguinte despacho: “(…) Na medida do exposto, nada impede que nos debrucemos sobre a dita matéria na presente fase dos autos. Note-se, porém, que o requerente, em bom rigor, não suscita tal questão no seu requerimento, limitando a solicitar que o Tribunal “se pronuncie quanto ao regime de bens que entende ter vigorado na constância do matrimónio entre o ora aqui inventariado e o seu cônjuge sobrevivo e que consequentemente regerá a presente partilha de bens”. De feito, o requerente não toma posição alguma sobre o assunto nem contraria o alegado pelo cabeça-de-casal a esse propósito. Não obstante, sempre se dirá, a talho de foice, que, não tendo o requerente posto em causa que o casamento em questão foi celebrado não foi precedido do competente processo preliminar, se deverá que consequentemente considerar que o regime que vigorou entre os cônjuges foi o da separação de bens, pois que: - Nos termos do disposto no artigo 51.º, n.º 2, do Código Civil, na redacção em vigor à data do casamento, “O casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de português e estrangeiro pode ser celebrado perante agente diplomático ou consular do Estado português ou perante os ministros do culto católico; em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicações, organizado pela entidade competente, a menos que ele seja dispensado nos termos do artigo 1599.º” (sendo certo que, neste último caso, não está em causa o casamento “in articulo mortis, na iminência de parto ou cuja celebração imediata seja expressamente autorizada pelo ordinário próprio por grave motivo de ordem moral”). - Nos termos do disposto no artigo 201.º do Código do Registo Civil, na redacção em vigor à data do casamento (Decreto-lei 47678, de 5 de Maio), “O casamento previsto no artigo anterior deve ser precedido do processo de publicações organizado, nos termos dos artigos 166.º e seguintes, pelos agentes diplomáticos ou consulares portugueses competentes, ou pela Conservatória dos Registos Centrais, a menos que seja dele dispensado pela lei civil”. - Nos termos do artigo 1720.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redacção em vigor à data do casamento (Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro), “Consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens:… O casamento celebrado sem precedência do processo de publicações”. Pois bem, conforme resulta do teor da certidão de assento de casamento junta com o requerimento inicial, o inventariado e a interessada CC casaram, sem estipulação de convenção antenupcial, no dia ... de Abril de 1970, na Câmara Municipal ..., em França. sendo que tal matrimónio não foi precedido do competente processo preliminar de publicações perante os serviços do registo civil nacionais. Em face do exposto, consigna-se que o casamento celebrado entre o inventariado e a interessada CC foi contraído sob o regime da separação de bens. (…)”.*Inconformado, o requerente/interessado DD apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes -CONCLUSÕES-(que se reproduzem) “1. Discorda o apelante do Douto Despacho em crise proferida em 20 de abril de 2023, por entender, salvo o devido respeito, que: 2. O Tribunal a quo, não fez uma correta interpretação da lei quando se limitou à aplicação direta do artigo 1720º nº 1 al. a) do Código Civil e afirmou que o matrimónio não foi precedido do competente processo preliminar, quando do assento de casamento, única prova careada para o processo, não resulta tal entendimento, resulta antes o contrário, uma vez que o cônsul estava obrigado legalmente a fazê-lo na sua falta, para poder proceder à sua tradução e transcrição. 3. Discorda ainda o apelante do tribunal a quo quando o mesmo afirma que o apelante não colocou em causa que o casamento em questão foi celebrado sem o precedido e competente processo preliminar, uma vez que esta foi já questão de recurso judicial, para além de ser tema desde do primeiro ato processual. 4. É sobejamente conhecida, por todos os intervenientes neste processo, a questão do aqui apelante quanto ao regime de bens que vigorou durante a vigência do matrimónio de seus pais. Tenha ele deixado subentendido a base legal de seu entendimento nos seus articulados, tenha ele expressamente firmado em sede de recurso. 5. Agora a questão ao tribunal a quo foi direta e claramente realizada pelo apelante quanto ao regime de bens que vigorou na vigência do matrimónio, não podendo restar dúvidas quanto a isso, 6. tendo o tribunal se pronunciado claramente sob a sua posição que já tinha mostrado, timidamente, no despacho anteriormente recorrido. 7. O Tribunal a quo entendeu que o casamento celebrado entre inventariado e a interessada CC foi contraído sob o regime da separação de bens ”. 8. Mas o apelante sabe que o casamento foi celebrado em 1970 perante o conservador do registo civil ..., em França, e a sua transcrição no registo pelo consulado de Portugal em ... foi efetuada em ... de outubro de 1976; 9. A tal ato de registo era, pois, aplicável o Código de Registo Civil vigente à data. O aprovado pelo Decreto-Lei nº47678, de 5 de Maio de 1967. Como resultava do disposto nos arts. 228º nºs 1 e 2 e 229º nº1 daquele diploma, se o casamento não tivesse sido precedido de publicações a transcrição do mesmo no registo consular era “subordinada à prévia organização” de tal processo; 10. Naquele diploma estava ainda, que sempre que o regime matrimonial de bens tivesse carácter imperativo dever-se-ia, na transcrição, tal mencionar, indicando a disposição legal que o impunha. 11. Consentaneamente com este detalhe acabado de referir, até no próprio documento-formulário de transcrição sob a epígrafe “Menções especiais” era “reservado à menção especial prevista no nº3 do art. 219º (do Código do Registo Civil em vigor). 12. Decorre do regime de transcrição daquele tipo de casamento (celebrado por nacionais perante autoridade estrangeira) que tal ato de transcrição – que integra o ingresso do casamento na ordem jurídica portuguesa – foi delineado de modo a controlar sempre a existência do processo de publicações, já que, como dele emerge: - se havia processo de publicações prévio ao casamento, o cônsul, como é óbvio, não tinha que o realizar e efetuava (ou recusava, com base no que ao tempo se preceituava no art. 229º nº3 do diploma aplicável) a transcrição do casamento; - se não existia tal processo, o cônsul teria que o efetuar como ato necessariamente prévio à transcrição; 13. Logo, se o cônsul procedeu à transcrição é porque verificou que havia processo de publicações prévio ao casamento ou porque verificou que não existia tal processo e ele próprio o elaborou. 14. A efetividade da transcrição faz pressupor necessariamente uma ou outra coisa: isto é, ou houve processo de publicações prévio à celebração do casamento ou houve processo de publicações elaborado pelo cônsul. 15. Por outro lado, como supra se referiu, havendo que mencionar na transcrição, sob a epígrafe “Menções especiais” constante da mesma, o regime matrimonial de bens quando este tivesse carácter imperativo, indicando a disposição legal que o impunha, e nada ali constando, também por este lado nada temos que nos inculque que não houve processo de publicações prévio ao casamento. 16. Ora, se no documento não existe a menção da existência de qualquer convenção antenupcial nem consta ali referido o regime imperativo da separação de bens, o regime de bens a ter em conta é o da comunhão de adquiridos, como regime supletivo aplicável (art. 1717º do C. Civil). 17. Existindo assim todo o cabimento para o relacionamento de todos os bens titularizados quer pelo inventariado quer pelo seu cônjuge sobrevivo no processo de inventário intentado pelo apelante. .... De aludir ainda, que os próprios cônjuges ao longo do seu matrimónio se consideraram sempre casados sob o regime da comunhão de adquiridos. Veja-se a este respeito o declarado por ambos, aquando a compra da sua habitação e terreno de cultivo, em 9 de setembro de 2013, cfr. documento nº ... que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido.” Pede o provimento do recurso.*Não foram apresentadas contra-alegações.*O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo, o que foi confirmado por este Tribunal. Após os vistos legais, cumpre decidir.***II QUESTÕES A DECIDIR. Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos. Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir qual o regime de bens em que estavam casados o inventariado AA e a viúva e interessada CC. ***III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. Importa atender ao assento de casamento civil junto aos autos com o requerimento inicial, bem como ao assento de óbito junto, donde decorre que: -AA e CC, nascidos em Portugal e domiciliados em ..., apresentaram-se na Câmara Municipal ..., no dia .../4/1970, tendo declarado que não foi feita convenção antenupcial, e desejaram-se tornar-se esposos, pelo que foram declarados unidos pelo casamento em nome da Lei pelo adjunto ao Presidente da Câmara Municipal ..., oficial do Registo Civil por delegação, o que foi levado ao registo na Conservatória de Registo Civil .... -Aos .../10/1976, no Consulado de Portugal em ... foi transcrita a tradução do duplicado do registo original arquivado na Conservatória do Registo Civil ..., passada em .../10/1976 e apresentada naquele dia .../10. -Em “Menções especiais” nada consta. -O assento de casamento foi inscrito nos Registos Centrais. ***IV MÉRITO DO RECURSO. -DECISÃO DE DIREITO. As partes não discutem o teor da certidão do assento de casamento entre o inventariado e CC, junta aos autos. O que diz o recorrente é que ou já havia tido lugar o processo preliminar de publicações quando é pedida ao Consulado a transcrição do registo, ou o Cônsul, constatando tal omissão, estava obrigado a fazer o processo preliminar de publicações para poder proceder à tradução e transcrição do registo. Nada constando do assento quanto ao regime imperativo, pressupõe-se que houve lugar ao dito processo, e portanto vigora o regime supletivo. O Tribunal recorrido por sua vez deu por assente que não houve tal processo, pressupondo que o recorrente aceita tal facto. E, portanto, entendeu que por força do artº. 1720º, nº. 1, a), do C.C., vigora o regime da separação de bens. Estamos perante um documento autêntico (artº. 369º do C.C.), cuja força probatória resulta do disposto no artº. 371º do C.C.: “1. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.” Esta força probatória só pode ser ilidida mediante o incidente de falsidade, o que no caso não se suscita –artº. 372º do C.C.. Significa isto que não está em causa que os dois cônjuges declararam que não foi feita convenção antenupcial. Discute-se então a lei aplicável em relação ao regime de bens. O casamento foi celebrado em .../4/1970; trata-se de dois cidadãos portugueses, em França; e foi celebrado por oficial de registo civil. Dispunha o artº. 51º do C.C. na redação vigente à data que “2. O casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de português e estrangeiro pode ser celebrado perante agente diplomático ou consular do Estado português ou perante os ministros do culto católico; em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicações, organizado pela entidade competente, a menos que ele seja dispensado nos termos do artigo 1599.” Neste caso o casamento foi celebrado perante oficial do registo civil francês. Dizia o artº. 53º do mesmo C.C. que “1. A substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo da celebração do casamento.” Por sua vez o artº. 1720º, dispunha: “1. Consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens: a) O casamento celebrado sem precedência do processo de publicações;”. O registo do casamento de portugueses realizado no estrangeiro é, de acordo com o artº. 1665º, nº. 1, do mesmo diploma … lavrado por transcrição do documento comprovativo do casamento, passado de harmonia com a lei do lugar da celebração e devidamente legalizado. O artº. 201º do Código do Registo Civil, na redação em vigor à data do casamento (Decreto-lei nº. 47 678, de 5 de maio de 1967), dispunha quanto ao casamento no estrangeiro entre dois portugueses “O casamento previsto no artigo anterior deve ser precedido do processo de publicações organizado, nos termos dos artigos 166.º e seguintes, pelos agentes diplomáticos ou consulares portugueses competentes, ou pela Conservatória dos Registos Centrais, a menos que seja dele dispensado pela lei civil”. Do disposto nos artºs. 228º nºs. 1 e 2 e 229º nº. 1 daquele mesmo diploma, resultava que se o casamento não tivesse sido precedido de publicações a transcrição do mesmo no registo consular era “subordinada à prévia organização” de tal processo. O artº. 1666º do C.C. também dispunha que “1. Se o casamento não tiver sido precedido das publicações exigidas na lei, o cônsul organizará o respectivo processo. 2. No despacho final, o cônsul relatará as diligências feitas e as informações recebidas da repartição competente, e decidirá se o casamento pode ou não ser transcrito.” E o artº. 1667º que “A transcrição será recusada se, pelo processo de publicações ou por outro modo, o cônsul verificar que o casamento foi celebrado com algum impedimento que o torne anulável; sendo o casamento católico, a transcrição só será recusada nos mesmos termos em que o pode ser a transcrição dos casamentos católicos celebrados em Portugal.” Relativamente ao processo de publicações, dispunham os artºs. 1610º e segs., remetendo quanto à sua regulação para as leis de registo civil, e afirmando que se destina à averiguação da inexistência de impedimentos. Esta redação encontrava-se em vigor à data da transcrição. Por sua vez resultava do disposto nos artºs. 222º nº. 3 e 214º nº. 7 (ex vi do art. 228º nº2) da versão à data do Código de Registo Civil que, sempre que o regime matrimonial de bens tivesse carácter imperativo, dever-se-ia mencionar na transcrição, com indicação da disposição legal que o impunha. Aplicando ao caso, tendo o cônsul recebido o pedido de transcrição, e se nada constasse quanto às publicações legais, cabia-lhe a sua organização. Após decidia pela sua transcrição. Sucede que nada consta/nada sabemos quanto à realização do processo, nem antes da celebração do casamento, nem antes da sua decisão de transcrição. Por outro lado, o cônsul realizou a transcrição. Cabe desde já estabelecer aqui a diferença entre este caso que nos ocupa e o tratado no Ac. da Relação de Lisboa de 1/7/2003 (relator António Santos Abrantes Geraldes, www.dgsi.pt): neste caso do acórdão está assente que o casamento não foi procedido do processo de publicações, mediante informação prestada por ofício, e por isso a decisão incide antes de mais sobre a questão da aplicabilidade do artº. 1720º, nº. 1, a), do C.C. aos casos não só de dispensa do processo mas também aos casos em que indevidamente ele não foi organizado. Depois, no caso ali tratado, foi em momento posterior feito o averbamento "Sem convenção antenupcial mas sob o regime imperativo da separação de bens, por força do disposto na alínea a) do nº 1 do art. 1720º do Código Civil"; porém, aplicando a figura do abuso de direito, entendeu-se que o regime que devia reger as relações patrimoniais pós divórcio deveria ser o supletivo, de comunhão de adquiridos. Antes como atualmente, de acordo com o Código de Registo Civil, o registo civil é obrigatório e tem por objeto, além do mais, “As convenções antenupciais e as alterações do regime de bens convencionado ou legalmente fixado” –alínea e) do atual artº. 1º, nº. 1. Os factos sujeitos a registo obrigatório só podem ser invocados depois de registados –artº. 2º. A prova dos factos sujeitos a registo só pode ser feita pelos meios previstos no respetivo Código –artº. 4º. Atentos estes princípios, o Código de Registo Civil prevê formas de sanar/corrigir omissões, erros, e outros vícios do registo, mediante a eliminação ou introdução de averbamentos –cfr. artº. 70º quanto ao casamento (cfr. a título ilustrativo os Acs. da Relação de Lisboa de 2/10/2008, relator António Valente, e de 2/5/2023, relatora Cristina Coelho, este assumindo posição idêntica á que seguiremos na questão em apreciação, ambos em www.dgsi.pt). Aplicando ao caso, cremos que o Tribunal recorrido efetivamente parte de uma premissa errada: que o recorrente não pôs em causa que o casamento foi celebrado sem que tivesse sido elaborado o processo de publicações. E dá como assente essa premissa. Desde logo porque não importa se o recorrente questiona ou não esse facto, depois ele não pode ter-se por assente porque não resulta do teor do assento junto aos autos. Não resultando, e resultando “apenas” que o casamento não foi precedido de convenção antenupcial, não constando a referência ao carater imperativo resultado do artº. 1720º, nº. 1, a), do C.C., face à prevalência do que consta do registo de acordo com as normas citadas, temos que aplicar o regime de bens supletivo à data, ou seja, comunhão de adquiridos –artº. 1717º do C.C.. Daí que também não seja relevante a tentativa de apurar se efetivamente o processo não teve lugar, precisamente porque não tendo sido levado ao registo o regime imperativo por força legal, tal facto não releva. No Ac. da Relação do Porto de 3/10/2011 (relator Mendes Coelho, www.dgsi.pt), com decisão idêntica à que aqui assumimos, conclui-se até de forma mais assertiva: “Decorre do regime de transcrição daquele tipo de casamento (celebrado por nacionais perante autoridade estrangeira) que tal acto de transcrição – que integra o ingresso do casamento na ordem jurídica portuguesa – foi delineado de modo a controlar sempre a existência do processo de publicações, já que, como dele emerge: - se havia processo de publicações prévio ao casamento, o cônsul, como é óbvio, não tinha que o realizar e efectuava (ou recusava, com base no que ao tempo se preceituava no art. 229º nº3 do diploma aplicável) a transcrição do casamento; - se não existia tal processo, o cônsul teria que o efectuar como acto necessariamente prévio à transcrição. Logo, se o cônsul procedeu à transcrição é porque verificou que havia processo de publicações prévio ao casamento ou porque verificou que não existia tal processo e ele próprio o elaborou. A efectividade da transcrição – já que nada nos diz que a mesma não deveria ter ocorrido (por exemplo por falta de algum documento ou formalidade necessária) ou que a mesma enferma de alguma invalidade – faz pressupor necessariamente uma ou outra coisa: isto é, ou houve processo de publicações prévio à celebração do casamento ou houve processo de publicações elaborado pelo cônsul. Por outro lado, como supra se referiu, havendo que mencionar na transcrição, sob a epígrafe “Menções especiais” constante da mesma, o regime matrimonial de bens quando este tivesse carácter imperativo, indicando a disposição legal que o impunha, e nada ali constando, também por este lado nada temos que nos inculque que não houve processo de publicações prévio ao casamento (aquela circunstância, prima facie, até inculca que foi verificado que houve aquele processo, pois se se tivesse verificado que o mesmo não existiu tinha que ali constar mencionado o regime imperativo da separação de bens com base no disposto no art. 1720º nº1 a) do C. Civil)”. Acrescentaríamos apenas o seguinte, procurando clarificar: esta menção teria de ser averbada, se fosse o caso de se ter assim averiguado e constatado, através da organização do processo respetivo imposto pelo regime do registo civil, para poder ser invocada. Igual sentido teve a decisão do Ac. do STJ de 16/4/1998 (relator Herculano Namora, www.dgsi.pt) e o Ac. da Relação. do Porto de 26/01/1998 (relator Simões Freire, CJ 1998, Tomo I, págs. 193 a 195). Deve por isso ser revogada a decisão sob recurso, no sentido de se considerar antes que o casamento celebrado entre o inventariado e a interessada CC foi contraído sob o regime da comunhão de adquiridos.***V DISPOSITIVO. Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso do requerente/interessado procedente, e em consequência, conceder provimento à apelação, revogando a decisão recorrida na parte que considera o casamento celebrado entre o inventariado e a interessada CC contraído sob o regime da separação de bens, e consignando antes que foi contraído sob o regime da comunhão de adquiridos.*Custas do recurso a cargo do cabeça de casal (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.). * Guimarães, 28/setembro/2023. *Os Juízes Desembargadores Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade 1º Adjunto: Maria Gorete Morais 2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte (A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)