I - O detentor de letra com endosso em branco é seu portador legítimo, nos termos do disposto no artigo 16, primeira parte, da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças. II - O beneficiário de um endosso em branco não carece de preencher a letra a seu favor para exercer os seus direitos cambiários por via de execução. III - Estando no domínio das relações mediatas, ao portador da letra não pode o aceitante opor excepções fundadas nas suas relações pessoais com o sacador sem provar que aquele, ao adquirir a letra, procedeu conscientemente em detrimento do devedor.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto: No Tribunal Judicial da comarca de Póvoa de Varzim, Armando... deduziu embargos de executado à execução que lhe moveu o Banco T..., para pagamento de dívida baseada em letra de câmbio. O embargado contestou, concluindo pela improcedência dos embargos. No saneador, após se declarar a improcedência da alegada excepção da ilegitimidade activa, decidiu-se do mérito, julgando-se improcedentes os embargos. Inconformado, o embargante recorreu para esta Relação, terminando a sua alegação com o enunciado das seguintes conclusões: 1. A alegada excepção da ilegitimidade activa deveria ter sido deferida ao invés de se concluir pela improcedência da mesma; 2. O título executivo que serve de base à execução é uma letra com endosso em branco, permitido por lei, muito embora a letra sacada ao portador seja também por imperativo legal considerada nula; 3. Mas apesar de permitido o endosso em branco da letra, a sua situação não pode ser confundida com a dos títulos ao portador, uma vez que na letra com endosso em branco o adquirente não se torna juridicamente credor com o facto da posse; 4. Assim, o portador da letra com endosso em branco apenas adquire o direito de se tomar credor através do preenchimento do endosso a seu favor ou da prática de um acto que revele ou suponha a qualidade de endossado; 5. Acontece que no caso dos autos a letra com endosso em branco nunca foi preenchida a favor do exequente, pelo que o mesmo de serve considerar ineficaz; 6. Pelo que a consequência será inequivocamente a falta de legitimidade do exequente para exercer o direito consubstanciado na letra; 7. Salvo o devido respeito e melhor opinião, também não assiste razão ao M.mº Juiz "a quo" para indeferir os embargos, com base no entendimento da inoponibilidade ao exequente/embargado das excepções invocadas pelo embargante e atinentes à relação subjacente à emissão da letra; 8. Na situação sub judice, em virtude de estarmos perante um endosso ineficaz, apenas podemos vislumbrar a existência de uma mera cessão de créditos, através da qual se transferem todas as excepções pessoais, 9. É que o portador da letra que a tenha recebido por cessão está na situação do portador imediato; 10. É portanto legítimo ao embargante por ao embargado livremente toda e qualquer defesa uma vez que este assumindo a posição de cessionário mais não é do que um representante do cedente, 11. A decisão do M.mº Juiz "a quo" de proferir de imediato decisão sobre o mérito da causa foi, em nosso entender, prematura, uma vez que foi esquecida uma questão fundamental para o desfecho da causa, qual seja, a de ter sido efectuado um pagamento parcial da letra dada à execução; 12. Na verdade, o pagamento pode ser efectuado pelo devedor ou por qualquer terceiro, pelo que, saber se foi ou não efectuado o pagamento parcial da letra é um facto que assume especial relevância para a boa decisão da causa e que se apresenta de forma totalmente independente do nó górdio traçado pelo M.º Juiz "a quo" e que deveria bastar, só por si, para determinar a continuação do processo. Pediu que, na procedência do recurso, se revogue a decisão recorrida, deferindo-se a alegada excepção da ilegitimidade activa, com a consequente procedência dos embargos, ou assim não se entendendo, se anule a mesma decisão, ordenando-se a continuação dos termos do processo com vista à realização de audiência de julgamento. Não houve contra-alegações. Colhidos os vistos, cumpre decidir. Estão dados como assentes, sem discussão, os seguintes factos: - O embargante Armando... subscreveu a letra dada à execução e que consta de fls. 4 dos autos de execução, apondo a sua assinatura no local destinado ao aceite, sendo sacador de tal letra "Armazém de Tecidos...", com a data de emissão de 99/01/04 e a data de vencimento de 99/03/04; - Tal letra foi endossada, tal como se vislumbra do verso da mesma onde constam as assinaturas dos gerentes do sacador. A questão fundamental levantada no recurso - a da ilegitimidade do exequente - prende-se com os requisitos da eficácia do endosso em branco. Sem questionar que estamos perante um endosso em branco, consistente simplesmente na assinatura do endossante no verso da letra, defende-se que o mesmo é ineficaz por não ter sido preenchido a seu favor pelo exequente, para daí se concluir pela ilegitimidade deste. Mas, será assim? Acerca da legitimidade das partes na acção executiva, estabelece o art. 55 do CPC que: "1. A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor. 2. Se o título for ao portador, será a execução promovida pelo portador do título". Afere-se, deste modo, a legitimidade, na acção executiva, através de um critério formal, diversamente do que ocorre na acção declarativa, onde se faz apelo a um critério substancial, identificando-se aqui a legitimidade com o interesse que o autor e o réu têm, respectivamente, em demandar e contradizer (art. 26, nº 1 do CPC.). [Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 3ª edição, p. 52.] No caso dos autos, o exequente não figura no título como credor, já que não assinou o endosso em branco. Julgamos, no entanto, que, enquanto portador legítimo da letra, não pode deixar de lhe ser reconhecida legitimidade activa na acção executiva. O endosso vem regulado nos arts. 11 a 20 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças. Como ensina Ferrer Correia, [Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, p. 170 1 e ss.] "o endosso realiza o que alguns chamam a "dinâmica da letra". Com efeito, é por via de endosso que a letra é normalmente transmitida e a transmissibilidade por endosso constitui uma qualidade natural do título em questão; somente pela aposição de cláusula expressa em contrário a letra deixará de ser endossável. (...) Além da função de transferência do título, importa apontar que o endosso realiza também as funções de legitimação do portador e de garantia. De garantia, porque o endossante, salvo cláusula em contrário, assume a responsabilidade pelo aceite e pagamento da letra; de legitimação formal, visto que o portador pode exercer os direitos cambiários desde que justifique a sua posse através de uma série ininterrupta de endossos. Posto isto, podemos agora definir o endosso como a declaração cambiária que normalmente tem os efeitos de transmitir a letra, garantir ao portador a sua aceitação e pagamento e justificar a sua posse". Constitui este acto uma nova ordem de pagamento, dada pelo endossante (o tomador ou um posterior endossado) ao sacador para que pague a letra, no vencimento, ao portador, através de uma declaração no verso (em dos) da letra seguida da assinatura. Por vezes, limita-se à assinatura do endossante, constituindo então o chamado endosso em branco (art. 13, II). Se for feito ao portador valerá também como endosso em branco (art. 12, I e II). Ensina, ainda, Ferrer Correia, na obra citada, p. 177 e ss: "Nos termos do art. 16, I, o detentor da letra com endosso em branco é seu portador legítimo. Se quiser preencher o espaço em branco com o seu nome pode fazê-lo (art. 14, 1º). Pode também integrar o espaço em branco com o nome de outra pessoa, ou simplesmente transmitir a outrem o título tal como o recebeu (art. 14, 1º e 3º). Por último, é-lhe concedido ainda (art. 14, 2º) endossar de novo a letra (quer em branco, quer com o nome do beneficiário) sem completar o endosso em branco. Em conexão com esta hipótese, estabelece o art. 16 que "quando um endosso em branco é seguido de um outro endosso, presume-se que o signatário deste adquiriu a letra pelo endosso em branco". Da admissibilidade do endosso em branco resulta que a letra pode circular como título ao portador, sendo, porém, ignoradas pela lei as transmissões manuais intermédias, até que o título seja preenchido com o nome de um endossado". A dificuldade que se suscita é, como vimos, a de saber se será exigível ao beneficiário de um endosso em branco que assine a letra para poder accioná-la. Cita o embargante Pinto Coelho (Letras, I, p. 90), para quem, o adquirente do título não se torna credor pelo facto da posse; para se tornar credor, precisa de preencher o endosso a seu favor (ou praticar um acto que suponha e revele a qualidade de endossado). Apreciando essa doutrina, observa, porém, Oliveira Ascensão [Direito Comercial, volume III, Títulos de Crédito, 1992, p. 153.] que não parece resultar da LU esta necessidade de preenchimento. "Antes, a doutrina contrária parece resultar do art. 16, 1ª parte, ao dizer que o detentor é portador legítimo se justificar o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, "mesmo se o último for em branco". Quer dizer pois que, mesmo estando o endosso em branco, ele já é titular de direitos cambiários." Prosseguindo: "Não há pois nenhuma suspensão de direitos cambiários, com o endosso em branco. Há sempre um credor cambiário. O facto de este não deixar traço literal é exactamente o que caracteriza os títulos ao portador. Diríamos assim que a letra é um documento gizado, salvo cláusula em contrário, para circular à ordem; mas pode validamente ser convertida em título ao portador, embora não perca nunca a susceptibilidade de voltar a circular à ordem". [Também segundo Vaz Serra (Bol. 61, 212), aquele que adquira uma letra por endosso em branco tem a mesma posição jurídica que teria o adquirente por endosso nominal... podendo protestar e accionar a letra sem preencher o endosso com o seu nome.] Aliás, Pinto Coelho, na obra citada, acaba, afinal, por escrever que "o beneficiário de um endosso em branco não tem sequer que preencher a seu favor o endosso incompleto, para exercer os seus direitos cambiários, quer se trate de reclamar o pagamento da letra, quer de a transmitir a terceiro" (fasc. II, p. 75). Neste sentido, decidiu já o Ac. da Relação de Coimbra de 27 de Maio de 1977 (CJ Ano II, p. 713 e ss.), ponderando, nomeadamente, o seguinte: "Primeiro - nos expressos termos do art. 13 da LU, o endosso pode não designar o beneficiário, ou consistir simplesmente na assinatura do endossante, devendo, neste último caso, ser escrito no verso da letra ou na folha anexa, para ser válido. E, segundo o disposto no art. 14 da mesma LU, transmite aquele todos os direitos emergentes da letra, podendo o portador, no caso do endosso em branco - ou seja, do resultante da simples assinatura do endossante no verso da letra -, preencher o espaço em branco quer com o seu nome, quer com o nome de outra pessoa... Segundo - Estatui-se no art. 16 da citada LU que o detentor duma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. E a verdade é que se não circunscreve tal efeito, ou eficácia jurídica dessa legitimidade, a exercibilidade do direito cambiário, aos casos em que, sendo o endosso em branco, se mostre subscrito pelo beneficiário. É, antes, saliente a faculdade que a este se concede, naquele já citado art. 14, de apor o seu nome no título ou não". É a opinião para que nos inclinamos. O detentor de letra com endosso em branco é seu portador legítimo, nos termos do disposto no art. 16, 1ª parte da LU. O beneficiário de um endosso em branco não carece de preencher a letra a seu favor para exercer os seus direitos cambiários por via de execução. [A questão não é pacífica na doutrina espanhola. Escreve JOSÉ MOXICA ROMÁN, in LEY CAMBIARIA y DEL CHEQUE, ANÁLISIS de DOCTRINA y JURISPRUDENCIA, 6ª edição, 2002, ARAZANDI EDITORIAL, p. 236: "Outra cuestión que se plantea respecto a todo tipo de endoso en blanco es la de determinar si necesita completarse com la designación de la identidad del endosatario, antes de que se pretenda ejercitar los derechos inherentes a la letra, o si por la simple circunstancia del endoso, la transmisión de titularidad opera automaticamente, y el mero tenedor-portador de la letra puede exigir la sactisfación de tales derechos, sin rellenar com su nombre la cláusula del endoso. Com anterioridad a la LCCH se habián mantenido ambas posturas, estando generalizada la primera tesis defendida esencialmente por URIA Y SÁNCHEZ CALERO, aunque no faltaban autores como RUBIO Y BROSETA que consideraban al endoso en blanco como una declaración suficiente e eficaz, que no necesitaba ser completada previamente por el tenedor de la letra para hacer posible el ejercicio de los derechos cambiarios. La LCCH no resuelve explícitamente el problema, en cuanto se limita a acoger en sus artículos 15 a 19 el contenido de los artículos 12 al 16 de la Ley Uniforme de Geniebra, cuyo texto era de sobra conocido en nuestro país y habia sido tenido en cuenta por la doctrina antes de su incorporación a nuestro derecho positivo. CALAVIA Y BALDÓ siguiendo a APARACIO RAMOS sañalan que el último tenedor que há adquirido una letra por endoso en blanco es tenedor legítimo incluso sin necesidad de completar el endoso com su nombre, y en su apoyo citan el artículo 19 que establece "el tenedor de la letra de cambio se considerará portador legítimo de la misma cuando justifique su derecho por una serie no interrompida de endoso, aun cuando el último endoso esté en blanco". GARCIA LUENGO Y SOTO VÁSQUEZ siguen el parecer de la doctrina mayoritaria reinante antes de la LCCH y que ésta no há desvirtuado, básandose en que la letra de cambio es un documento que há de expresar el nombre del sujeto a quien se há de hacer el pago (art. 1.6) y que el artículo 17 que describe una serie de conductas posibles del tenedor de una letra com endoso en blanco, y sin embargo no há prevsito la posibilidad de que pueda cobrarla sin plasmar su nombre, de lo que puede deducirse la necesidad de tal complemento. En mi opinión considero más ajustado este criterio pues, indudablemente, si la ley hubiera querido que el endosatario en blanco pudiera ejercitar todos los derechos cambiarios lo hubiera expresado asi, y no indicando específicamente (art. 17) lo que puede realizar, y entre cuyas facultades no figura la expresada de ejercicio de todos los derechos inherentes a la letra de cambio, ya que al incluir unas determinadas facultades se entienden excluidas las demás".] Mas, sendo assim, temos de concluir que bem andou o Ex.mº Juiz "a quo" ao conhecer imediatamente do mérito da causa, sem necessidade de mais provas. Na verdade, preceitua o art. 17 da LULL que: "As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor". Voltando à lição de Ferrer Correia (obra citada, p. 67 e ss.): "Nas relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado; sacador-tomador; tomador-1º endossante, etc.), nas quais, os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem. Esta diversidade de regimes decorre do art. 17. E na situação do portador imediato está também o possuidor da letra que a tenha recebido por título diferente do endosso: cessão, sucessão mortis causa. Com efeito, trata-se aqui de um representante do transmitente e, portanto, são-lhe oponíveis todas as excepções que seriam oponíveis a este. Por outro lado, oponíveis são igualmente as excepções pessoais ao portador mediato que "ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor"(art. 17). Por conseguinte, um sujeito cambiário também poderá opor ao portador da letra excepções fundadas em relações extra-cartulares estabelecidas com outrem. Mas, para tal, necessário é que o portador "ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento" do sujeito cambiário que lhe opõe a excepção. Confrontando o art. 17 com o art. 16, logo se alcança que o pressuposto necessário, segundo aquele preceito, da oponibilidade da excepção não é a simples má fé: conhecimento do vício anterior. Mais se exige, além do simples conhecimento, que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de causar por esse facto um prejuízo ao devedor". O embargante invocou a excepção do pagamento parcial da letra ao sacador. Ora, tal como se considerou, na decisão recorrida, estando no domínio das relações mediatas, ao portador da letra não pode o aceitante opor excepção fundada nas suas relações pessoais com o sacador, sem provar que aquele ao adquirir a letra procedeu conscientemente em detrimento do devedor. O endossado adquire, efectivamente, pelo endosso, um direito autónomo, o que quer, precisamente, dizer que lhe não podem ser opostas as excepções que podiam ser invocadas contra os anteriores portadores da letra. Conforme refere Abel Delgado, [Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 7ª edição, 1996, p. 123 e ss.] "A expressão "tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor" constante da parte final do art. 17, presta-se a dúvidas. Parece, porém, que a melhor interpretação é a da Prof. Ferrer Correia, segundo a qual, não basta a simples má fé - conhecimento do vício anterior -; é necessário, ainda, que o portador, ao adquirir a letra, tenha agido com a consciência de prejudicar o devedor". Não tendo o embargante alegado, sequer, este pressuposto, a consequência jurídica só podia ser a da improcedência dos embargos. Decisão: Em face do exposto, acordam os Juizes desta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo apelante. Porto, 16 de Setembro de 2002. Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira Manuel José Caimoto Jácome Carlos Alberto Macedo Domingues
Acordam no Tribunal da Relação do Porto: No Tribunal Judicial da comarca de Póvoa de Varzim, Armando... deduziu embargos de executado à execução que lhe moveu o Banco T..., para pagamento de dívida baseada em letra de câmbio. O embargado contestou, concluindo pela improcedência dos embargos. No saneador, após se declarar a improcedência da alegada excepção da ilegitimidade activa, decidiu-se do mérito, julgando-se improcedentes os embargos. Inconformado, o embargante recorreu para esta Relação, terminando a sua alegação com o enunciado das seguintes conclusões: 1. A alegada excepção da ilegitimidade activa deveria ter sido deferida ao invés de se concluir pela improcedência da mesma; 2. O título executivo que serve de base à execução é uma letra com endosso em branco, permitido por lei, muito embora a letra sacada ao portador seja também por imperativo legal considerada nula; 3. Mas apesar de permitido o endosso em branco da letra, a sua situação não pode ser confundida com a dos títulos ao portador, uma vez que na letra com endosso em branco o adquirente não se torna juridicamente credor com o facto da posse; 4. Assim, o portador da letra com endosso em branco apenas adquire o direito de se tomar credor através do preenchimento do endosso a seu favor ou da prática de um acto que revele ou suponha a qualidade de endossado; 5. Acontece que no caso dos autos a letra com endosso em branco nunca foi preenchida a favor do exequente, pelo que o mesmo de serve considerar ineficaz; 6. Pelo que a consequência será inequivocamente a falta de legitimidade do exequente para exercer o direito consubstanciado na letra; 7. Salvo o devido respeito e melhor opinião, também não assiste razão ao M.mº Juiz "a quo" para indeferir os embargos, com base no entendimento da inoponibilidade ao exequente/embargado das excepções invocadas pelo embargante e atinentes à relação subjacente à emissão da letra; 8. Na situação sub judice, em virtude de estarmos perante um endosso ineficaz, apenas podemos vislumbrar a existência de uma mera cessão de créditos, através da qual se transferem todas as excepções pessoais, 9. É que o portador da letra que a tenha recebido por cessão está na situação do portador imediato; 10. É portanto legítimo ao embargante por ao embargado livremente toda e qualquer defesa uma vez que este assumindo a posição de cessionário mais não é do que um representante do cedente, 11. A decisão do M.mº Juiz "a quo" de proferir de imediato decisão sobre o mérito da causa foi, em nosso entender, prematura, uma vez que foi esquecida uma questão fundamental para o desfecho da causa, qual seja, a de ter sido efectuado um pagamento parcial da letra dada à execução; 12. Na verdade, o pagamento pode ser efectuado pelo devedor ou por qualquer terceiro, pelo que, saber se foi ou não efectuado o pagamento parcial da letra é um facto que assume especial relevância para a boa decisão da causa e que se apresenta de forma totalmente independente do nó górdio traçado pelo M.º Juiz "a quo" e que deveria bastar, só por si, para determinar a continuação do processo. Pediu que, na procedência do recurso, se revogue a decisão recorrida, deferindo-se a alegada excepção da ilegitimidade activa, com a consequente procedência dos embargos, ou assim não se entendendo, se anule a mesma decisão, ordenando-se a continuação dos termos do processo com vista à realização de audiência de julgamento. Não houve contra-alegações. Colhidos os vistos, cumpre decidir. Estão dados como assentes, sem discussão, os seguintes factos: - O embargante Armando... subscreveu a letra dada à execução e que consta de fls. 4 dos autos de execução, apondo a sua assinatura no local destinado ao aceite, sendo sacador de tal letra "Armazém de Tecidos...", com a data de emissão de 99/01/04 e a data de vencimento de 99/03/04; - Tal letra foi endossada, tal como se vislumbra do verso da mesma onde constam as assinaturas dos gerentes do sacador. A questão fundamental levantada no recurso - a da ilegitimidade do exequente - prende-se com os requisitos da eficácia do endosso em branco. Sem questionar que estamos perante um endosso em branco, consistente simplesmente na assinatura do endossante no verso da letra, defende-se que o mesmo é ineficaz por não ter sido preenchido a seu favor pelo exequente, para daí se concluir pela ilegitimidade deste. Mas, será assim? Acerca da legitimidade das partes na acção executiva, estabelece o art. 55 do CPC que: "1. A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor. 2. Se o título for ao portador, será a execução promovida pelo portador do título". Afere-se, deste modo, a legitimidade, na acção executiva, através de um critério formal, diversamente do que ocorre na acção declarativa, onde se faz apelo a um critério substancial, identificando-se aqui a legitimidade com o interesse que o autor e o réu têm, respectivamente, em demandar e contradizer (art. 26, nº 1 do CPC.). [Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 3ª edição, p. 52.] No caso dos autos, o exequente não figura no título como credor, já que não assinou o endosso em branco. Julgamos, no entanto, que, enquanto portador legítimo da letra, não pode deixar de lhe ser reconhecida legitimidade activa na acção executiva. O endosso vem regulado nos arts. 11 a 20 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças. Como ensina Ferrer Correia, [Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, p. 170 1 e ss.] "o endosso realiza o que alguns chamam a "dinâmica da letra". Com efeito, é por via de endosso que a letra é normalmente transmitida e a transmissibilidade por endosso constitui uma qualidade natural do título em questão; somente pela aposição de cláusula expressa em contrário a letra deixará de ser endossável. (...) Além da função de transferência do título, importa apontar que o endosso realiza também as funções de legitimação do portador e de garantia. De garantia, porque o endossante, salvo cláusula em contrário, assume a responsabilidade pelo aceite e pagamento da letra; de legitimação formal, visto que o portador pode exercer os direitos cambiários desde que justifique a sua posse através de uma série ininterrupta de endossos. Posto isto, podemos agora definir o endosso como a declaração cambiária que normalmente tem os efeitos de transmitir a letra, garantir ao portador a sua aceitação e pagamento e justificar a sua posse". Constitui este acto uma nova ordem de pagamento, dada pelo endossante (o tomador ou um posterior endossado) ao sacador para que pague a letra, no vencimento, ao portador, através de uma declaração no verso (em dos) da letra seguida da assinatura. Por vezes, limita-se à assinatura do endossante, constituindo então o chamado endosso em branco (art. 13, II). Se for feito ao portador valerá também como endosso em branco (art. 12, I e II). Ensina, ainda, Ferrer Correia, na obra citada, p. 177 e ss: "Nos termos do art. 16, I, o detentor da letra com endosso em branco é seu portador legítimo. Se quiser preencher o espaço em branco com o seu nome pode fazê-lo (art. 14, 1º). Pode também integrar o espaço em branco com o nome de outra pessoa, ou simplesmente transmitir a outrem o título tal como o recebeu (art. 14, 1º e 3º). Por último, é-lhe concedido ainda (art. 14, 2º) endossar de novo a letra (quer em branco, quer com o nome do beneficiário) sem completar o endosso em branco. Em conexão com esta hipótese, estabelece o art. 16 que "quando um endosso em branco é seguido de um outro endosso, presume-se que o signatário deste adquiriu a letra pelo endosso em branco". Da admissibilidade do endosso em branco resulta que a letra pode circular como título ao portador, sendo, porém, ignoradas pela lei as transmissões manuais intermédias, até que o título seja preenchido com o nome de um endossado". A dificuldade que se suscita é, como vimos, a de saber se será exigível ao beneficiário de um endosso em branco que assine a letra para poder accioná-la. Cita o embargante Pinto Coelho (Letras, I, p. 90), para quem, o adquirente do título não se torna credor pelo facto da posse; para se tornar credor, precisa de preencher o endosso a seu favor (ou praticar um acto que suponha e revele a qualidade de endossado). Apreciando essa doutrina, observa, porém, Oliveira Ascensão [Direito Comercial, volume III, Títulos de Crédito, 1992, p. 153.] que não parece resultar da LU esta necessidade de preenchimento. "Antes, a doutrina contrária parece resultar do art. 16, 1ª parte, ao dizer que o detentor é portador legítimo se justificar o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, "mesmo se o último for em branco". Quer dizer pois que, mesmo estando o endosso em branco, ele já é titular de direitos cambiários." Prosseguindo: "Não há pois nenhuma suspensão de direitos cambiários, com o endosso em branco. Há sempre um credor cambiário. O facto de este não deixar traço literal é exactamente o que caracteriza os títulos ao portador. Diríamos assim que a letra é um documento gizado, salvo cláusula em contrário, para circular à ordem; mas pode validamente ser convertida em título ao portador, embora não perca nunca a susceptibilidade de voltar a circular à ordem". [Também segundo Vaz Serra (Bol. 61, 212), aquele que adquira uma letra por endosso em branco tem a mesma posição jurídica que teria o adquirente por endosso nominal... podendo protestar e accionar a letra sem preencher o endosso com o seu nome.] Aliás, Pinto Coelho, na obra citada, acaba, afinal, por escrever que "o beneficiário de um endosso em branco não tem sequer que preencher a seu favor o endosso incompleto, para exercer os seus direitos cambiários, quer se trate de reclamar o pagamento da letra, quer de a transmitir a terceiro" (fasc. II, p. 75). Neste sentido, decidiu já o Ac. da Relação de Coimbra de 27 de Maio de 1977 (CJ Ano II, p. 713 e ss.), ponderando, nomeadamente, o seguinte: "Primeiro - nos expressos termos do art. 13 da LU, o endosso pode não designar o beneficiário, ou consistir simplesmente na assinatura do endossante, devendo, neste último caso, ser escrito no verso da letra ou na folha anexa, para ser válido. E, segundo o disposto no art. 14 da mesma LU, transmite aquele todos os direitos emergentes da letra, podendo o portador, no caso do endosso em branco - ou seja, do resultante da simples assinatura do endossante no verso da letra -, preencher o espaço em branco quer com o seu nome, quer com o nome de outra pessoa... Segundo - Estatui-se no art. 16 da citada LU que o detentor duma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. E a verdade é que se não circunscreve tal efeito, ou eficácia jurídica dessa legitimidade, a exercibilidade do direito cambiário, aos casos em que, sendo o endosso em branco, se mostre subscrito pelo beneficiário. É, antes, saliente a faculdade que a este se concede, naquele já citado art. 14, de apor o seu nome no título ou não". É a opinião para que nos inclinamos. O detentor de letra com endosso em branco é seu portador legítimo, nos termos do disposto no art. 16, 1ª parte da LU. O beneficiário de um endosso em branco não carece de preencher a letra a seu favor para exercer os seus direitos cambiários por via de execução. [A questão não é pacífica na doutrina espanhola. Escreve JOSÉ MOXICA ROMÁN, in LEY CAMBIARIA y DEL CHEQUE, ANÁLISIS de DOCTRINA y JURISPRUDENCIA, 6ª edição, 2002, ARAZANDI EDITORIAL, p. 236: "Outra cuestión que se plantea respecto a todo tipo de endoso en blanco es la de determinar si necesita completarse com la designación de la identidad del endosatario, antes de que se pretenda ejercitar los derechos inherentes a la letra, o si por la simple circunstancia del endoso, la transmisión de titularidad opera automaticamente, y el mero tenedor-portador de la letra puede exigir la sactisfación de tales derechos, sin rellenar com su nombre la cláusula del endoso. Com anterioridad a la LCCH se habián mantenido ambas posturas, estando generalizada la primera tesis defendida esencialmente por URIA Y SÁNCHEZ CALERO, aunque no faltaban autores como RUBIO Y BROSETA que consideraban al endoso en blanco como una declaración suficiente e eficaz, que no necesitaba ser completada previamente por el tenedor de la letra para hacer posible el ejercicio de los derechos cambiarios. La LCCH no resuelve explícitamente el problema, en cuanto se limita a acoger en sus artículos 15 a 19 el contenido de los artículos 12 al 16 de la Ley Uniforme de Geniebra, cuyo texto era de sobra conocido en nuestro país y habia sido tenido en cuenta por la doctrina antes de su incorporación a nuestro derecho positivo. CALAVIA Y BALDÓ siguiendo a APARACIO RAMOS sañalan que el último tenedor que há adquirido una letra por endoso en blanco es tenedor legítimo incluso sin necesidad de completar el endoso com su nombre, y en su apoyo citan el artículo 19 que establece "el tenedor de la letra de cambio se considerará portador legítimo de la misma cuando justifique su derecho por una serie no interrompida de endoso, aun cuando el último endoso esté en blanco". GARCIA LUENGO Y SOTO VÁSQUEZ siguen el parecer de la doctrina mayoritaria reinante antes de la LCCH y que ésta no há desvirtuado, básandose en que la letra de cambio es un documento que há de expresar el nombre del sujeto a quien se há de hacer el pago (art. 1.6) y que el artículo 17 que describe una serie de conductas posibles del tenedor de una letra com endoso en blanco, y sin embargo no há prevsito la posibilidad de que pueda cobrarla sin plasmar su nombre, de lo que puede deducirse la necesidad de tal complemento. En mi opinión considero más ajustado este criterio pues, indudablemente, si la ley hubiera querido que el endosatario en blanco pudiera ejercitar todos los derechos cambiarios lo hubiera expresado asi, y no indicando específicamente (art. 17) lo que puede realizar, y entre cuyas facultades no figura la expresada de ejercicio de todos los derechos inherentes a la letra de cambio, ya que al incluir unas determinadas facultades se entienden excluidas las demás".] Mas, sendo assim, temos de concluir que bem andou o Ex.mº Juiz "a quo" ao conhecer imediatamente do mérito da causa, sem necessidade de mais provas. Na verdade, preceitua o art. 17 da LULL que: "As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor". Voltando à lição de Ferrer Correia (obra citada, p. 67 e ss.): "Nas relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado; sacador-tomador; tomador-1º endossante, etc.), nas quais, os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem. Esta diversidade de regimes decorre do art. 17. E na situação do portador imediato está também o possuidor da letra que a tenha recebido por título diferente do endosso: cessão, sucessão mortis causa. Com efeito, trata-se aqui de um representante do transmitente e, portanto, são-lhe oponíveis todas as excepções que seriam oponíveis a este. Por outro lado, oponíveis são igualmente as excepções pessoais ao portador mediato que "ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor"(art. 17). Por conseguinte, um sujeito cambiário também poderá opor ao portador da letra excepções fundadas em relações extra-cartulares estabelecidas com outrem. Mas, para tal, necessário é que o portador "ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento" do sujeito cambiário que lhe opõe a excepção. Confrontando o art. 17 com o art. 16, logo se alcança que o pressuposto necessário, segundo aquele preceito, da oponibilidade da excepção não é a simples má fé: conhecimento do vício anterior. Mais se exige, além do simples conhecimento, que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de causar por esse facto um prejuízo ao devedor". O embargante invocou a excepção do pagamento parcial da letra ao sacador. Ora, tal como se considerou, na decisão recorrida, estando no domínio das relações mediatas, ao portador da letra não pode o aceitante opor excepção fundada nas suas relações pessoais com o sacador, sem provar que aquele ao adquirir a letra procedeu conscientemente em detrimento do devedor. O endossado adquire, efectivamente, pelo endosso, um direito autónomo, o que quer, precisamente, dizer que lhe não podem ser opostas as excepções que podiam ser invocadas contra os anteriores portadores da letra. Conforme refere Abel Delgado, [Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Anotada, 7ª edição, 1996, p. 123 e ss.] "A expressão "tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor" constante da parte final do art. 17, presta-se a dúvidas. Parece, porém, que a melhor interpretação é a da Prof. Ferrer Correia, segundo a qual, não basta a simples má fé - conhecimento do vício anterior -; é necessário, ainda, que o portador, ao adquirir a letra, tenha agido com a consciência de prejudicar o devedor". Não tendo o embargante alegado, sequer, este pressuposto, a consequência jurídica só podia ser a da improcedência dos embargos. Decisão: Em face do exposto, acordam os Juizes desta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo apelante. Porto, 16 de Setembro de 2002. Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira Manuel José Caimoto Jácome Carlos Alberto Macedo Domingues