Processo:0544124
Data do Acordão: 24/01/2006Relator: ISABEL PAÍS MARTINSTribunal:trp
Decisão: Meio processual:

Se, numa situação de confronto entre duas pessoas, uma diz à outra: "eu mato-te", não se está perante um anúncio de mal futuro, indisipensável à verificação do crime de ameaça.

Profissão: Data de nascimento: 1/1/1970
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Processo
0544124
Relator
ISABEL PAÍS MARTINS
Descritores
AMEAÇA
No do documento
Data do Acordão
01/25/2006
Votação
UNANIMIDADE
Texto integral
S
Meio processual
REC PENAL.
Decisão
REVOGADA A SENTENÇA.
Sumário
Se, numa situação de confronto entre duas pessoas, uma diz à outra: "eu mato-te", não se está perante um anúncio de mal futuro, indisipensável à verificação do crime de ameaça.
Decisão integral
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I
1. No processo abreviado n.º .../03..PAVNF do ..º juízo criminal de Vila Nova de Famalicão, por sentença de 16 de Dezembro de 2004, foi decidido, no que ora releva, condenar a arguida B.........., pelo crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n. os 1 e 2, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 3,00, o que perfaz a quantia de € 360,00; subsidiariamente, 80 dias de prisão.
2. Inconformada, a arguida veio interpor recurso da sentença, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:
«1.º O facto fulcral no preenchimento dos requisitos necessários à verificação do crime de ameaças e de coacção é a comunicação/anúncio do mal ameaçado; sendo o mal ameaçado imediato e iminente, estamos perante um crime de coacção, se o mal ameaçado for futuro, estaremos perante um crime de ameaças.
«2.º Sendo este anúncio efectuado oralmente, por se ter proferido determinada expressão que foi recebida pelo ameaçado, dando-se como provada expressão diferente daquela em que estava acusada, tal ocorrência consubstancia alteração substancial dos factos.
«3.º Assim estando a arguida acusada de ter cometido o crime de ameaças por haver proferido a expressão “dou-te com um pau na cabeça que te mato”, constitui alteração substancial dos factos a condenação naquele crime, mas por ter proferido a expressão “o matava”.
«4.º Esta alteração substancial dos factos, verificada na Audiência de Julgamento, não pode ser levada em conta pelo Tribunal, para efeitos de condenação, sendo nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação.
«5.º Assim sendo, não se mostrando preenchidos os condicionalismos previstos no artigo 359.º do Código de Processo Penal, a M.ª Juiz a quo ao condenar a arguida pelo crime de ameaças está a violar o n.º 1 do artigo 359.º do mesmo Código, sendo nula tal sentença condenatória.
«6.º Pelo tribunal a quo foi dado como provado que a arguida se dirigiu ao ofendido dizendo que “o matava”.
«7.º Esta expressão não encerra, em si, a ameaça de um mal futuro, mas uma ocorrência – que não se verificou – pretérita.
«8.º Para se saber se o crime de ameaças foi praticado, é essencial conhecer as circunstâncias em que o anúncio de um mal chegou ao conhecimento do ameaçado.
«9.º Não sendo conhecidas ou não constando da sentença essas circunstâncias, a matéria de facto dada como provada é insuficiente para ser tomada uma decisão condenatória.
«10.º Viola o princípio da investigação o Juiz que, na busca da verdade material, não cumpre o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente – independentemente das contribuições das partes – o facto submetido a julgamento e todas as suas circunstâncias.
«11.º Existe uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando existam circunstâncias atinentes aos factos submetidos a julgamento e relevantes para a decisão que não são conhecidas ou não foram devidamente esclarecidas.
«12.º A actividade investigatória do Tribunal deverá considerar-se extensiva ao apuramento das circunstâncias que determinam a medida concreta da pena, mesmo que não fazendo parte do tipo de crime, sob pena de violação dos artigos 71.º e seguintes do Código Penal.
«13.º Viola o artigo 71.º do Código Penal o Juiz que, na determinação concreta da pena, não atende às circunstâncias enunciadas neste artigo por as mesmas não serem conhecidas do tribunal.»
3. Admitido o recurso, e efectuadas as legais notificações, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, no sentido de ser mantida a decisão recorrida.
4. Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela absolvição da recorrente por os factos provados não consubstanciarem o crime de ameaça por que foi condenada.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP], não houve resposta.
6. Efectuado exame preliminar, e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.
II
Cumpre decidir.
1. Tratando-se de processo abreviado e não tendo sido requerida a documentação dos actos de audiência, depois do aviso a que alude o n.º 2 do artigo 391.º-E do CPP (cfr. acta de audiência de fls. 77 e ss.), este tribunal conhece apenas de direito (artigo 428.º, n.º 2, do CPP).
De acordo com as conclusões extraídas pela recorrente B.......... da respectiva motivação – que definem e delimitam o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, do CPP) -, as questões que traz à apreciação deste tribunal consistem em saber:
- se ocorre a nulidade da sentença da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação, que conformam uma alteração substancial destes, fora das condições previstas no artigo 359.º do CPP;
- se os factos provados não preenchem os elementos típicos do crime de ameaça;
- se houve violação do disposto no artigo 71.º do Código Penal [Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CP], por o tribunal não ter investigado toda a matéria de facto relevante para a determinação da medida concreta da pena.
2. Comecemos por ver o que consta do processo e da sentença e releva para o conhecimento das questões postas no recurso.
2.1. Na acusação, foi imputado à arguida, designadamente, o seguinte:
«No dia 18 de Março de 2003, pelas 11 horas, junto à residência da arguida, sita na Rua .........., n.º .., .........., concelho de Vila Nova de Famalicão, por motivos relacionados com a construção de uma vedação, a arguida dirigiu ao ofendido a seguinte expressão: “dou-te com um pau na cabeça que te mato”.
2.2. No decorrer da audiência, o Exm.º Juiz, constatando que da acusação não constava o nome do ofendido, comunicou essa alteração aos sujeitos processuais, nos termos do artigo 358. n.º 1, do CPP, e, não havendo qualquer oposição, determinou que passasse a constar da acusação pública o nome do ofendido C.......... .
2.3. Na sentença recorrida foram dados por provados os seguintes factos:
«1. No dia 18 de Março de 2003, pelas 11h00, junto à residência da arguida, sita na Rua .........., nº ..., .........., Vila Nova de Famalicão, por motivos relacionados com a construção de uma vedação, a arguida dirigiu-se ao ofendido C.......... dizendo que “o matava”.
«2. A arguida agiu com intuito de intimidar o ofendido, bem sabendo [que] a expressão por si proferida era adequada a provocar-lhe medo e inquietação e a prejudicar a sua liberdade de determinação, tal como efectivamente aconteceu e, não obstante, não se absteve de agir do modo descrito.
«3.A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei.
«4. O ofendido é senhorio da arguida e por questões relacionadas com o arrendamento as relações entre ambos encontram-se deterioradas desde há alguns anos.
«5. A arguida na sua profissão aufere cerca de € 258,00 mensais, é casada e tem dois filhos toxicodependentes que vivem consigo. O marido da arguida enquanto operário fabril aufere cerca de € 500,00 mensais e pagam de renda de casa cerca de € 11,00.
«6. A arguida tem a 4ª classe de escolaridade.
«7. A arguida é primária.»
2.4. E foi dado por não provado que:
«A arguida tenha dito ao ofendido que lhe dava com um pau na cabeça.»
3. Passando, agora, a conhecer das questões postas no recurso.
3.1. Começa a recorrente por invocar a nulidade da sentença da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação, que conformam uma alteração substancial destes, fora das condições previstas no artigo 359.º do CPP.
A alteração substancial dos factos radica, na perspectiva da recorrente, na diferença que se manifesta entre os factos imputados na acusação e os factos que foram dados por provados, no que se refere à expressão que proferiu.
Diz-se na acusação: «No dia 18 de Março de 2003, pelas 11 horas, junto à residência da arguida, sita na Rua .........., n.º .., .........., concelho de Vila Nova de Famalicão, por motivos relacionados com a construção de uma vedação, a arguida dirigiu ao ofendido a seguinte expressão: “dou-te com um pau na cabeça que te mato”.
Deu-se como provado: «1. No dia 18 de Março de 2003, pelas 11h00, junto à residência da arguida, sita na Rua .........., nº ..., .........., Vila Nova de Famalicão, por motivos relacionados com a construção de uma vedação, a arguida dirigiu-se ao ofendido C.......... dizendo que “o matava”.
Quer uma expressão quer outra servem a imputação do crime de ameaça.
O circunstancialismo em que as expressões – a constante da acusação e a dada por provada – foram proferidas não sofreu alteração na sentença que, nessa parte, reproduz o que constava da acusação.
A expressão que se veio a dar por provado que a recorrente proferiu, não é mais do que uma redução da expressão imputada na acusação; a expressão que se deu por provado que a recorrente proferiu é uma parte da expressão que na acusação lhe era imputada.
Portanto, não se verificou uma alteração substancial do objecto do processo, tal como foi definido na acusação, a reclamar que se seguisse o procedimento previsto no artigo 359.º do CPP.
E sendo a expressão que se deu por provado ter a arguida dirigido ao ofendido uma parte da expressão imputada na acusação, também não se justificava que fosse cumprido o procedimento previsto no artigo 358.º do CPP, na medida em que, conhecendo a recorrente a expressão que lhe era imputada na acusação, a sua defesa do “todo” já implicava e assegurava plenamente a defesa da parte desse “todo” que veio a ser dada por provada.
3.2. Questiona a recorrente que os factos provados preencham os elementos típicos do crime de ameaça.
3.2.1. O crime de ameaça é um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção) que vê na paz jurídica individual uma condição da sua realização.
O conceito de ameaça requer a verificação de três características essenciais: anúncio de um  mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
O mal ameaçado, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de configurar, em si mesmo, um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
O mal ameaçado tem de ser futuro; não pode, pela sua iminência, confundir-se com uma tentativa de execução do respectivo acto violento.
Por último, a concretização futura do mal depende, ou aparece como dependente, da vontade do agente.
Após a revisão de 95 do Código Penal [Em diante abreviadamente referido pelas iniciais CP], o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano, passando a ser um crime de mera acção e de perigo. Exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado [Cfr. observação de Figueiredo Dias sobre o sentido da expressão «de forma adequada a provocar», Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, p. 500].
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado) [Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 348].
O tipo subjectivo requer o dolo que exige (mas basta-se) com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
3.2.2. A questão que o recurso especialmente convoca está em saber se, nos factos provados, se encontra concretizado o anúncio, por parte da recorrente, de um mal futuro.
Deu-se como provado que a recorrente, num contexto de confronto verbal com o ofendido, motivado por razões muito concretas (a construção de uma vedação), lhe disse que “o matava”.
O mal (causar a morte) não aparece, assim, no contexto dos factos provados, em termos de vir a ocorrer no futuro. Ainda que mantendo o discurso indirecto, se se quisesse traduzir o anúncio de um mal futuro seria, seguramente, encontrada a expressão adequada, como, por exemplo, «a arguida dirigiu-se ao ofendido C.......... dizendo que o havia de matar».     
A fórmula encontrada na sentença para a descrição do que foi dito pela recorrente não pode deixar de querer significar que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas e pelos motivos referidos, a recorrente disse ao ofendido algo como: “eu mato-te”, “eu vou-te matar”.
A utilização do discurso indirecto para transmitir o que foi dito pela recorrente, no momento descrito (passado), com utilização do pretérito imperfeito do modo indicativo do verbo matar, exprime que, se fosse usado o discurso directo, no momento descrito, a recorrente tinha dito ao ofendido “eu mato-te”.
Aliás, é isto que está em consonância com a narração contida na acusação que a sentença não altera estruturalmente; só modifica por redução da expressão dita pela arguida.
Para se dizer que, no contexto dos factos provados, não se mostra caracterizado que a recorrente tenha ameaçado o ofendido com um mal futuro. A expressão proferida pela recorrente surge como a verbalização de um mal iminente.
Ora, para que se dê por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça, é necessário, desde logo, que o mal ameaçado seja futuro. O mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.
«Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: ”vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa [cf. Art. 22.º-2 c)]» [Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 348].
No contexto dos factos provados, a expressão proferida pela recorrente traduz um mal iminente e, por isso, conforma um “acto de execução” do crime de que, afinal, a recorrente “desistiu”, não prosseguindo na sua execução.
3.2.3. O que, só por si, determina a absolvição da recorrente e dispensa a análise da questão da congruência dos restantes factos provados com o que se acaba de dizer e prejudica o conhecimento da última questão posta no recurso.
III
Termos em que, na essencial procedência do recurso, revogamos a sentença recorrida e absolvemos a recorrente B.......... do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n. os 1 e 2, do Código Penal.
Não há lugar a tributação.
A 1.ª instância remeterá oportunamente boletins ao registo criminal, em conformidade.
Honorário à Exm. Defensora, nomeada em audiência, neste tribunal, de acordo com o ponto 6 da tabela anexa à portaria nº 1386/2004, de 10 de Novembro, e sem prejuízo do disposto no artigo 5, nº 1, da mesma, a suportar pelo C.G.T..
Porto, 25 de Janeiro de 2006
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
José João Teixeira Coelho Vieira
Arlindo Manuel Teixeira Pinto

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO I 1. No processo abreviado n.º .../03..PAVNF do ..º juízo criminal de Vila Nova de Famalicão, por sentença de 16 de Dezembro de 2004, foi decidido, no que ora releva, condenar a arguida B.........., pelo crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n. os 1 e 2, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 3,00, o que perfaz a quantia de € 360,00; subsidiariamente, 80 dias de prisão. 2. Inconformada, a arguida veio interpor recurso da sentença, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões: «1.º O facto fulcral no preenchimento dos requisitos necessários à verificação do crime de ameaças e de coacção é a comunicação/anúncio do mal ameaçado; sendo o mal ameaçado imediato e iminente, estamos perante um crime de coacção, se o mal ameaçado for futuro, estaremos perante um crime de ameaças. «2.º Sendo este anúncio efectuado oralmente, por se ter proferido determinada expressão que foi recebida pelo ameaçado, dando-se como provada expressão diferente daquela em que estava acusada, tal ocorrência consubstancia alteração substancial dos factos. «3.º Assim estando a arguida acusada de ter cometido o crime de ameaças por haver proferido a expressão “dou-te com um pau na cabeça que te mato”, constitui alteração substancial dos factos a condenação naquele crime, mas por ter proferido a expressão “o matava”. «4.º Esta alteração substancial dos factos, verificada na Audiência de Julgamento, não pode ser levada em conta pelo Tribunal, para efeitos de condenação, sendo nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação. «5.º Assim sendo, não se mostrando preenchidos os condicionalismos previstos no artigo 359.º do Código de Processo Penal, a M.ª Juiz a quo ao condenar a arguida pelo crime de ameaças está a violar o n.º 1 do artigo 359.º do mesmo Código, sendo nula tal sentença condenatória. «6.º Pelo tribunal a quo foi dado como provado que a arguida se dirigiu ao ofendido dizendo que “o matava”. «7.º Esta expressão não encerra, em si, a ameaça de um mal futuro, mas uma ocorrência – que não se verificou – pretérita. «8.º Para se saber se o crime de ameaças foi praticado, é essencial conhecer as circunstâncias em que o anúncio de um mal chegou ao conhecimento do ameaçado. «9.º Não sendo conhecidas ou não constando da sentença essas circunstâncias, a matéria de facto dada como provada é insuficiente para ser tomada uma decisão condenatória. «10.º Viola o princípio da investigação o Juiz que, na busca da verdade material, não cumpre o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente – independentemente das contribuições das partes – o facto submetido a julgamento e todas as suas circunstâncias. «11.º Existe uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando existam circunstâncias atinentes aos factos submetidos a julgamento e relevantes para a decisão que não são conhecidas ou não foram devidamente esclarecidas. «12.º A actividade investigatória do Tribunal deverá considerar-se extensiva ao apuramento das circunstâncias que determinam a medida concreta da pena, mesmo que não fazendo parte do tipo de crime, sob pena de violação dos artigos 71.º e seguintes do Código Penal. «13.º Viola o artigo 71.º do Código Penal o Juiz que, na determinação concreta da pena, não atende às circunstâncias enunciadas neste artigo por as mesmas não serem conhecidas do tribunal.» 3. Admitido o recurso, e efectuadas as legais notificações, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, no sentido de ser mantida a decisão recorrida. 4. Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela absolvição da recorrente por os factos provados não consubstanciarem o crime de ameaça por que foi condenada. 5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP], não houve resposta. 6. Efectuado exame preliminar, e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso. II Cumpre decidir. 1. Tratando-se de processo abreviado e não tendo sido requerida a documentação dos actos de audiência, depois do aviso a que alude o n.º 2 do artigo 391.º-E do CPP (cfr. acta de audiência de fls. 77 e ss.), este tribunal conhece apenas de direito (artigo 428.º, n.º 2, do CPP). De acordo com as conclusões extraídas pela recorrente B.......... da respectiva motivação – que definem e delimitam o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, do CPP) -, as questões que traz à apreciação deste tribunal consistem em saber: - se ocorre a nulidade da sentença da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação, que conformam uma alteração substancial destes, fora das condições previstas no artigo 359.º do CPP; - se os factos provados não preenchem os elementos típicos do crime de ameaça; - se houve violação do disposto no artigo 71.º do Código Penal [Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CP], por o tribunal não ter investigado toda a matéria de facto relevante para a determinação da medida concreta da pena. 2. Comecemos por ver o que consta do processo e da sentença e releva para o conhecimento das questões postas no recurso. 2.1. Na acusação, foi imputado à arguida, designadamente, o seguinte: «No dia 18 de Março de 2003, pelas 11 horas, junto à residência da arguida, sita na Rua .........., n.º .., .........., concelho de Vila Nova de Famalicão, por motivos relacionados com a construção de uma vedação, a arguida dirigiu ao ofendido a seguinte expressão: “dou-te com um pau na cabeça que te mato”. 2.2. No decorrer da audiência, o Exm.º Juiz, constatando que da acusação não constava o nome do ofendido, comunicou essa alteração aos sujeitos processuais, nos termos do artigo 358. n.º 1, do CPP, e, não havendo qualquer oposição, determinou que passasse a constar da acusação pública o nome do ofendido C.......... . 2.3. Na sentença recorrida foram dados por provados os seguintes factos: «1. No dia 18 de Março de 2003, pelas 11h00, junto à residência da arguida, sita na Rua .........., nº ..., .........., Vila Nova de Famalicão, por motivos relacionados com a construção de uma vedação, a arguida dirigiu-se ao ofendido C.......... dizendo que “o matava”. «2. A arguida agiu com intuito de intimidar o ofendido, bem sabendo [que] a expressão por si proferida era adequada a provocar-lhe medo e inquietação e a prejudicar a sua liberdade de determinação, tal como efectivamente aconteceu e, não obstante, não se absteve de agir do modo descrito. «3.A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei. «4. O ofendido é senhorio da arguida e por questões relacionadas com o arrendamento as relações entre ambos encontram-se deterioradas desde há alguns anos. «5. A arguida na sua profissão aufere cerca de € 258,00 mensais, é casada e tem dois filhos toxicodependentes que vivem consigo. O marido da arguida enquanto operário fabril aufere cerca de € 500,00 mensais e pagam de renda de casa cerca de € 11,00. «6. A arguida tem a 4ª classe de escolaridade. «7. A arguida é primária.» 2.4. E foi dado por não provado que: «A arguida tenha dito ao ofendido que lhe dava com um pau na cabeça.» 3. Passando, agora, a conhecer das questões postas no recurso. 3.1. Começa a recorrente por invocar a nulidade da sentença da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação, que conformam uma alteração substancial destes, fora das condições previstas no artigo 359.º do CPP. A alteração substancial dos factos radica, na perspectiva da recorrente, na diferença que se manifesta entre os factos imputados na acusação e os factos que foram dados por provados, no que se refere à expressão que proferiu. Diz-se na acusação: «No dia 18 de Março de 2003, pelas 11 horas, junto à residência da arguida, sita na Rua .........., n.º .., .........., concelho de Vila Nova de Famalicão, por motivos relacionados com a construção de uma vedação, a arguida dirigiu ao ofendido a seguinte expressão: “dou-te com um pau na cabeça que te mato”. Deu-se como provado: «1. No dia 18 de Março de 2003, pelas 11h00, junto à residência da arguida, sita na Rua .........., nº ..., .........., Vila Nova de Famalicão, por motivos relacionados com a construção de uma vedação, a arguida dirigiu-se ao ofendido C.......... dizendo que “o matava”. Quer uma expressão quer outra servem a imputação do crime de ameaça. O circunstancialismo em que as expressões – a constante da acusação e a dada por provada – foram proferidas não sofreu alteração na sentença que, nessa parte, reproduz o que constava da acusação. A expressão que se veio a dar por provado que a recorrente proferiu, não é mais do que uma redução da expressão imputada na acusação; a expressão que se deu por provado que a recorrente proferiu é uma parte da expressão que na acusação lhe era imputada. Portanto, não se verificou uma alteração substancial do objecto do processo, tal como foi definido na acusação, a reclamar que se seguisse o procedimento previsto no artigo 359.º do CPP. E sendo a expressão que se deu por provado ter a arguida dirigido ao ofendido uma parte da expressão imputada na acusação, também não se justificava que fosse cumprido o procedimento previsto no artigo 358.º do CPP, na medida em que, conhecendo a recorrente a expressão que lhe era imputada na acusação, a sua defesa do “todo” já implicava e assegurava plenamente a defesa da parte desse “todo” que veio a ser dada por provada. 3.2. Questiona a recorrente que os factos provados preencham os elementos típicos do crime de ameaça. 3.2.1. O crime de ameaça é um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção) que vê na paz jurídica individual uma condição da sua realização. O conceito de ameaça requer a verificação de três características essenciais: anúncio de um mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. O mal ameaçado, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de configurar, em si mesmo, um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor. O mal ameaçado tem de ser futuro; não pode, pela sua iminência, confundir-se com uma tentativa de execução do respectivo acto violento. Por último, a concretização futura do mal depende, ou aparece como dependente, da vontade do agente. Após a revisão de 95 do Código Penal [Em diante abreviadamente referido pelas iniciais CP], o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano, passando a ser um crime de mera acção e de perigo. Exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado [Cfr. observação de Figueiredo Dias sobre o sentido da expressão «de forma adequada a provocar», Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, p. 500]. O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado) [Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 348]. O tipo subjectivo requer o dolo que exige (mas basta-se) com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado. 3.2.2. A questão que o recurso especialmente convoca está em saber se, nos factos provados, se encontra concretizado o anúncio, por parte da recorrente, de um mal futuro. Deu-se como provado que a recorrente, num contexto de confronto verbal com o ofendido, motivado por razões muito concretas (a construção de uma vedação), lhe disse que “o matava”. O mal (causar a morte) não aparece, assim, no contexto dos factos provados, em termos de vir a ocorrer no futuro. Ainda que mantendo o discurso indirecto, se se quisesse traduzir o anúncio de um mal futuro seria, seguramente, encontrada a expressão adequada, como, por exemplo, «a arguida dirigiu-se ao ofendido C.......... dizendo que o havia de matar». A fórmula encontrada na sentença para a descrição do que foi dito pela recorrente não pode deixar de querer significar que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas e pelos motivos referidos, a recorrente disse ao ofendido algo como: “eu mato-te”, “eu vou-te matar”. A utilização do discurso indirecto para transmitir o que foi dito pela recorrente, no momento descrito (passado), com utilização do pretérito imperfeito do modo indicativo do verbo matar, exprime que, se fosse usado o discurso directo, no momento descrito, a recorrente tinha dito ao ofendido “eu mato-te”. Aliás, é isto que está em consonância com a narração contida na acusação que a sentença não altera estruturalmente; só modifica por redução da expressão dita pela arguida. Para se dizer que, no contexto dos factos provados, não se mostra caracterizado que a recorrente tenha ameaçado o ofendido com um mal futuro. A expressão proferida pela recorrente surge como a verbalização de um mal iminente. Ora, para que se dê por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça, é necessário, desde logo, que o mal ameaçado seja futuro. O mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. «Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: ”vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa [cf. Art. 22.º-2 c)]» [Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 348]. No contexto dos factos provados, a expressão proferida pela recorrente traduz um mal iminente e, por isso, conforma um “acto de execução” do crime de que, afinal, a recorrente “desistiu”, não prosseguindo na sua execução. 3.2.3. O que, só por si, determina a absolvição da recorrente e dispensa a análise da questão da congruência dos restantes factos provados com o que se acaba de dizer e prejudica o conhecimento da última questão posta no recurso. III Termos em que, na essencial procedência do recurso, revogamos a sentença recorrida e absolvemos a recorrente B.......... do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n. os 1 e 2, do Código Penal. Não há lugar a tributação. A 1.ª instância remeterá oportunamente boletins ao registo criminal, em conformidade. Honorário à Exm. Defensora, nomeada em audiência, neste tribunal, de acordo com o ponto 6 da tabela anexa à portaria nº 1386/2004, de 10 de Novembro, e sem prejuízo do disposto no artigo 5, nº 1, da mesma, a suportar pelo C.G.T.. Porto, 25 de Janeiro de 2006 Isabel Celeste Alves Pais Martins David Pinto Monteiro José João Teixeira Coelho Vieira Arlindo Manuel Teixeira Pinto