O acordo (obrigatório) para atribuição da casa de morada de família produzido no processo de divórcio por mútuo consentimento é susceptível de alteração posterior à sombra do disposto no art. 1411.º n.º1 do CPC.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto 1 – B………. deduziu, em 21.07.06, perante a 4ª Conservatória do Registo Civil do Porto e contra C………., incidente de alteração da atribuição da casa de morada da família, para o que invocou os fundamentos constantes da respectiva petição inicial. Deduzida oposição pela requerida e preenchidos os subsequentes e legais requisitos, foram os autos remetidos ao Tribunal de Família e Menores do Porto, onde vieram a ser processados por apenso ao Proc. nº …./03.4TMPRT, do .º Juízo/.ª Secção. No início da designada audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão por via da qual a requerida foi absolvida da instância, por, oficiosamente, se haver entendido que ocorria a excepção dilatória do caso julgado, por referência ao trânsito em julgado da sentença homologatória do divórcio por mútuo consentimento entre requerente e requerida, no respectivo âmbito gravitando o prévio e imprescindível acordo entre os cônjuges quanto ao destino da casa de morada da família. Inconformado, interpôs o requerente o presente recurso de agravo, visando a revogação da decisão recorrida, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:/ 1ª – O art. 1411º, do CPC consagra que, nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes (tanto as ocorridas posteriormente à decisão, como as anteriores que não tenham sido alegadas, por ignorância ou outro motivo ponderoso), o que permite dizer que, nestes processos, impende o caso julgado formal e não o caso julgado material, constituindo caso julgado formal e não material a homologação que recai sobre os acordos referidos nas als. b), c), d) e f) do art. 1419º do CPC; 2ª – O facto de ser constituído ou alterado, relativamente a um dos titulares, o arrendamento da casa de morada de família não significa que esta e qualquer decisão sobre o mesmo passe somente para o domínio dos contratos e com disciplina que só à natureza destes pertença; 3ª – Se o Tribunal gera um contrato de arrendamento, “maxime”, impondo ao ex – cônjuge proprietário o arrendamento titulado pelo outro, nem por isso deixa o Tribunal de poder resolver o mesmo, alteradas as circunstâncias e a pedido do proprietário locador; 4ª – Se tal acontecer no domínio desta situação, não se vislumbra razão por que não possa acontecer o mesmo no caso em apreço, ou seja, no caso de um acordo, acordo este a que, tantas vezes, os acordantes são impelidos pelo contexto cerceante da sua vontade; 5ª – Não releva o facto de somente ser prevista a alteração relativamente ao acordo da prestação de alimentos (arts. 2012º do CC e 1121º do CPC) e sobre o exercício do poder paternal (arts. 1920º do CC e 182º da O. T. M.); 6ª – A não inclusão da al. f) nos citados normativos não significa a sua exclusão, mas sim a necessidade de explicitar as mais relevantes, sociológica e familiarmente; 7ª – O despacho recorrido faz uma interpretação restrita e, salvo melhor opinião, inadequada, pois a O. T. M., ao regular como regula no art. 182º, não pretende, nem pode pretender excluir o que estipula o nº 1 do art. 1411º do CPC; 8ª – Ou seja, a reapreciação das situações consignadas nas als. c) e d) do art. 1419º é possível, não só porque em lei especial é consignado, mas porque o mesmo determina o art. 1411º do CPC; 9ª – Assim sendo, não existindo norma que o proíba, nem sequer a alegada natureza contratual gerada pelo acordo e homologado pelo Tribunal, não pode vir negar-se o que a lei não proíbe, mas que até a própria lei permite: o nº 1 do art. 1411º do CPC; 10ª – O despacho recorrido é, assim, violador do art. 1411º, nº1, com remissão para o art. 1419º, nº1 do CPC, devendo, pois, ser revogado. Não foram apresentadas contra-alegações, tendo a decisão recorrida sido objecto de tabelar sustentação. Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir, para o que releva a factualidade emergente do antecedente relatório, aditada de que, na sobredita audiência de discussão e julgamento e precedendo a prolação da correspondente sentença homologatória de divórcio por mútuo consentimento (em que fora convertido o originário divórcio litigioso), requerente e requerida acordaram (entre o mais) que: “A casa de morada da família (cujo titular do arrendamento é o R. – requerente) fica atribuída a ambas as partes sem prejuízo de ulterior decisão uma vez que ambos necessitam neste momento de habitar a casa”. *2 – Como é pacífico, são as conclusões formuladas pelo recorrente que, em princípio (exceptuando as questões de oficioso conhecimento e que não tenham sido objecto de decisão com trânsito em julgado), delimitam o âmbito e objecto do recurso (Cfr. arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC – como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados). Assim, a questão suscitada pelo agravante e que demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso consiste, unicamente, em saber se, contra o sustentado na douta decisão recorrida, o acordo celebrado entre os cônjuges, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 1407º, nº/s 3 e 4 e 1419º, nº1, al. f), é susceptível de alteração, à sombra do disposto no art. 1411º, nº1. Vejamos: *3 – I – Fundamentalmente, a decisão agravada alicerça-se na consideração de que, por via do trânsito em julgado da sentença homologatória do acordado divórcio por mútuo consentimento do requerente e da requerida, não pode, sem ofensa do correspondente caso julgado (Cfr. arts. 671º, nº1 e 673º), ser alterado o acordo, aí, exarado quanto ao destino da casa de morada da família. Questão esta que, como é bom de ver, tem natureza, exclusivamente, adjectivo – processual, sem necessária correspondência no mérito – a apreciar, ulteriormente – da pretensão formulada pelo requerente e que – com respeito pela opinião contrária – nos merece total discordância. Tentemos justificar:/II – Desde logo, não se suscitam quaisquer dúvidas de que a regulamentação legal da matéria respeitante a “Separação ou divórcio por mútuo consentimento” (para onde remete o mencionado art. 1407º, nº3) está subordinada ao “Capítulo XVIII – Dos processos de jurisdição voluntária”, de que constitui a respectiva “Secção III”. Sendo que, nos termos previstos no art. 1411º, nº1, em tal tipo de processos (e sem que se faça qualquer reserva ou excepção) “…as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração”[1] O que, à partida, parece retirar qualquer consistência à posição que merece a nossa integral rejeição, porquanto a alteração daquelas resoluções só está dependente, como se viu, da superveniência (no apontado sentido amplo) de circunstâncias que a justifiquem. Observam, no entanto, os defensores da posição adversa que a aplicação, sem mais, do disposto no mencionado art. 1411º, nº1 resultará no desrespeito do caso julgado, entretanto, formado e respeitante ao simultâneo decretamento do divórcio por mútuo consentimento. Porém, em nosso modesto entendimento, não poderá proceder uma tal argumentação. Com efeito, diz-nos o art. 1788º, do CC que “O divórcio dissolve o casamento…”, estatuindo-se, no imediato art. 1789º, nº1, que “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença…” Assim, coincidindo, temporalmente, a possibilidade da invocação do trânsito em julgado da sobredita sentença com a produção dos respectivos efeitos, jamais poderá ser, em tal segmento, alterada aquela sentença, atenta a ressalva dos “efeitos já produzidos” constante do citado art. 1411º, nº1. Risco esse, aliás, não comprovado pela vivência diária dos nossos tribunais. /III – Esgrime-se, também, em apoio da corrente adversa, o facto de, ao contrário do que sucede com os acordos respeitantes à prestação de alimentos a um dos cônjuges e à regulação do exercício do poder paternal relativamente aos filhos menores – als. d) e c), respectivamente, do nº1 do art. 1419º –, não haver dispositivo legal que contemple a alteração do questionado acordo respeitante ao destino da casa de morada da família[2]. Sem quebra do respeito devido a tal opinião, que se entende tributária de raciocínio meramente formal e desvalorizador dos atendíveis interesses e necessidades quase sempre subjacentes à pretensão de alteração do acordo em causa, entendemos que a mesma não poderá ser perfilhada: por um lado, porque um tal argumento não decorre duma interpretação imposta pela consideração do correspondente elemento sistemático (Cfr. art. 9º, nº1, do CC), antes resultando da convocação de preceitos legais não insertos na lei adjectiva integrante do mencionado art. 1411º, nº1, mas, antes, noutros diplomas legais; por outro lado, porque, sobre a inexistência de preceitos legais que prevejam e desenvolvam a matéria, emerge e afirma-se, insofismavelmente, a permissão da discutida alteração, na decorrência da previsão clara constante daquele art. da lei adjectiva. Tudo sendo reforçado pelo facto de a sustentada inalterabilidade não ter na letra do questionado art. 1411º, nº1 um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa, o que impõe a respectiva rejeição, à luz do disposto no art. 9º, nº2, do CC./IV – Também se aduz, “ex adverso”, que a posição por nós perfilhada poderá conduzir “à frustração do equilíbrio e interesses que foram postos em equação e ponderação pelos cônjuges e pelo próprio juiz (ou conservador)”, a quando da celebração do acordo respeitante ao destino da casa de morada da família[3]. Afirmando, aqui, a elevadíssima consideração que nos merecem os autores do respectivo e douto aresto, ousamos do mesmo, respeitosamente, discordar. É que, para além de tal posição dar inteira prevalência ao papel de mero exegeta da lei, em detrimento da função de verdadeiro arquitecto social que o juiz desperto para as realidades da vida deve protagonizar, a mesma parece relegar para segundo plano que, nos processos de jurisdição voluntária, o tribunal pode investigar livremente os factos (art. 1409º, nº2) e nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art. 1410º). Assim sendo, não se vê qualquer razão para que o juiz, ao decidir do mérito da correspondente pretensão e à semelhança dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 1778º, do CC, não possa, até por maioria de razão, prevenir e salvaguardar os mencionados equilíbrio e interesses, inviabilizando e não dando guarida a oportunistas tentativas de subversão de tais valores que se reconhece deverem ser salvaguardados. Ou seja, a posição a que se adere permite compatibilizar ambos os quadros de valores, ao contrário daquela que merece a nossa rejeição./V – A finalizar, algumas notas:/A primeira para acentuar que a Jurisprudência dos nossos tribunais superiores se encontra muito dividida quanto à solução da questão em análise, tendo sido defendida posição contrária à por nós perfilhada, designadamente e para além do já citado Ac. do STJ, nos Acs. deste mesmo Tribunal, de 02.10.03 (Cons. Ferreira Girão e com um voto de vencido) – COL/STJ – 3º/74 – e de 19.03.02 (Cons. Simões Freire) – in www.dgsi.pt., Proc . nº 02B555 e nos Acs. desta Relação, de 02.05.95 - Col. – 3º/197 – de 17.02.00 – Col. – 1º/218 – de 05.05.05 – Col. 3º/160 – e de 22.11.05 – in www.dgsi.pt., Proc. 0525693. Em contrapartida, foi perfilhada posição coincidente nos Acs. da Rel. de Lisboa, de 27.05.03 – Col. 3º/91 – e nos Acs. desta Relação, de 30.09.02, 03.03.04, 26.10.06 e 05.02.07 (este relatado pelo, ora, 1º Adjunto e tendo no mesmo intervindo o, ora, 2º Adjunto), disponíveis em www.dgsi.pt., Procs. 0250994, 0322808, 0634785 e com o nº convencional JTRP00040033, respectivamente. Sendo, igualmente, a posição defendida, vigorosamente, por Nuno de Salter Cid, in “A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português”, pags. 310 e segs. A segunda para trazer à colação o exarado (entre o mais) pelo Ex. mo Cons. Lucas Coelho, no sobredito voto de vencido: “Nas condições expostas desnecessariamente se preocupará o intérprete partindo em busca de especial permissão para o efeito. Bem ao invés, preocupante seria a existência de normação que interditasse uma similar alteração, cuja conformidade com os ditames da autonomia privada e com os princípios de acesso à justiça, da jurisdição e do Estado de direito democrático não poderia deixar de se questionar. (…) Não se objecte, salvo o devido respeito, com o bem jurídico da estabilidade familiar, um parâmetro a ponderar necessariamente pelo juiz da jurisdição voluntária dentro da ampla margem de investigação (art. 1409º, nº2) e decisão (art. 1410º) que lhe assiste, e valor paradoxalmente susceptível, em casos concretos, de aconselhar por si a alteração da situação anteriormente definida”. A terceira para acentuar que, no caso dos autos, acrescidas razões existem para assumirmos a posição que ficou exposta, porquanto, no acordo em causa, se fez constar “sem prejuízo de ulterior decisão”, o que, então consentido, não pode, agora, ser olvidado. *4 – Em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, com o ulterior prosseguimento dos autos. Sem custas (art. 2º, nº1, al. g), do C. C. Jud.)./ Porto, 23 de Abril de 2007 José Augusto Fernandes do Vale Rui de Sousa Pinto Ferreira Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira __________________________________ [1] Nestas se compreendendo tanto as ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso. [2] Reportam-se à alteração dos mencionados acordos, respectivamente, os arts. 2012º, do CC e 1121º, de um lado, e 1920º-A, do CC e 182º da O.T.M., por outro. [3] Ac. do STJ, de 15.02.05 (Cons. Alves Velho), disponível em www.dgsi.pt., Proc. nº 04ª3621.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto 1 – B………. deduziu, em 21.07.06, perante a 4ª Conservatória do Registo Civil do Porto e contra C………., incidente de alteração da atribuição da casa de morada da família, para o que invocou os fundamentos constantes da respectiva petição inicial. Deduzida oposição pela requerida e preenchidos os subsequentes e legais requisitos, foram os autos remetidos ao Tribunal de Família e Menores do Porto, onde vieram a ser processados por apenso ao Proc. nº …./03.4TMPRT, do .º Juízo/.ª Secção. No início da designada audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão por via da qual a requerida foi absolvida da instância, por, oficiosamente, se haver entendido que ocorria a excepção dilatória do caso julgado, por referência ao trânsito em julgado da sentença homologatória do divórcio por mútuo consentimento entre requerente e requerida, no respectivo âmbito gravitando o prévio e imprescindível acordo entre os cônjuges quanto ao destino da casa de morada da família. Inconformado, interpôs o requerente o presente recurso de agravo, visando a revogação da decisão recorrida, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:/ 1ª – O art. 1411º, do CPC consagra que, nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes (tanto as ocorridas posteriormente à decisão, como as anteriores que não tenham sido alegadas, por ignorância ou outro motivo ponderoso), o que permite dizer que, nestes processos, impende o caso julgado formal e não o caso julgado material, constituindo caso julgado formal e não material a homologação que recai sobre os acordos referidos nas als. b), c), d) e f) do art. 1419º do CPC; 2ª – O facto de ser constituído ou alterado, relativamente a um dos titulares, o arrendamento da casa de morada de família não significa que esta e qualquer decisão sobre o mesmo passe somente para o domínio dos contratos e com disciplina que só à natureza destes pertença; 3ª – Se o Tribunal gera um contrato de arrendamento, “maxime”, impondo ao ex – cônjuge proprietário o arrendamento titulado pelo outro, nem por isso deixa o Tribunal de poder resolver o mesmo, alteradas as circunstâncias e a pedido do proprietário locador; 4ª – Se tal acontecer no domínio desta situação, não se vislumbra razão por que não possa acontecer o mesmo no caso em apreço, ou seja, no caso de um acordo, acordo este a que, tantas vezes, os acordantes são impelidos pelo contexto cerceante da sua vontade; 5ª – Não releva o facto de somente ser prevista a alteração relativamente ao acordo da prestação de alimentos (arts. 2012º do CC e 1121º do CPC) e sobre o exercício do poder paternal (arts. 1920º do CC e 182º da O. T. M.); 6ª – A não inclusão da al. f) nos citados normativos não significa a sua exclusão, mas sim a necessidade de explicitar as mais relevantes, sociológica e familiarmente; 7ª – O despacho recorrido faz uma interpretação restrita e, salvo melhor opinião, inadequada, pois a O. T. M., ao regular como regula no art. 182º, não pretende, nem pode pretender excluir o que estipula o nº 1 do art. 1411º do CPC; 8ª – Ou seja, a reapreciação das situações consignadas nas als. c) e d) do art. 1419º é possível, não só porque em lei especial é consignado, mas porque o mesmo determina o art. 1411º do CPC; 9ª – Assim sendo, não existindo norma que o proíba, nem sequer a alegada natureza contratual gerada pelo acordo e homologado pelo Tribunal, não pode vir negar-se o que a lei não proíbe, mas que até a própria lei permite: o nº 1 do art. 1411º do CPC; 10ª – O despacho recorrido é, assim, violador do art. 1411º, nº1, com remissão para o art. 1419º, nº1 do CPC, devendo, pois, ser revogado. Não foram apresentadas contra-alegações, tendo a decisão recorrida sido objecto de tabelar sustentação. Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir, para o que releva a factualidade emergente do antecedente relatório, aditada de que, na sobredita audiência de discussão e julgamento e precedendo a prolação da correspondente sentença homologatória de divórcio por mútuo consentimento (em que fora convertido o originário divórcio litigioso), requerente e requerida acordaram (entre o mais) que: “A casa de morada da família (cujo titular do arrendamento é o R. – requerente) fica atribuída a ambas as partes sem prejuízo de ulterior decisão uma vez que ambos necessitam neste momento de habitar a casa”. *2 – Como é pacífico, são as conclusões formuladas pelo recorrente que, em princípio (exceptuando as questões de oficioso conhecimento e que não tenham sido objecto de decisão com trânsito em julgado), delimitam o âmbito e objecto do recurso (Cfr. arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC – como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados). Assim, a questão suscitada pelo agravante e que demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso consiste, unicamente, em saber se, contra o sustentado na douta decisão recorrida, o acordo celebrado entre os cônjuges, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 1407º, nº/s 3 e 4 e 1419º, nº1, al. f), é susceptível de alteração, à sombra do disposto no art. 1411º, nº1. Vejamos: *3 – I – Fundamentalmente, a decisão agravada alicerça-se na consideração de que, por via do trânsito em julgado da sentença homologatória do acordado divórcio por mútuo consentimento do requerente e da requerida, não pode, sem ofensa do correspondente caso julgado (Cfr. arts. 671º, nº1 e 673º), ser alterado o acordo, aí, exarado quanto ao destino da casa de morada da família. Questão esta que, como é bom de ver, tem natureza, exclusivamente, adjectivo – processual, sem necessária correspondência no mérito – a apreciar, ulteriormente – da pretensão formulada pelo requerente e que – com respeito pela opinião contrária – nos merece total discordância. Tentemos justificar:/II – Desde logo, não se suscitam quaisquer dúvidas de que a regulamentação legal da matéria respeitante a “Separação ou divórcio por mútuo consentimento” (para onde remete o mencionado art. 1407º, nº3) está subordinada ao “Capítulo XVIII – Dos processos de jurisdição voluntária”, de que constitui a respectiva “Secção III”. Sendo que, nos termos previstos no art. 1411º, nº1, em tal tipo de processos (e sem que se faça qualquer reserva ou excepção) “…as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração”[1] O que, à partida, parece retirar qualquer consistência à posição que merece a nossa integral rejeição, porquanto a alteração daquelas resoluções só está dependente, como se viu, da superveniência (no apontado sentido amplo) de circunstâncias que a justifiquem. Observam, no entanto, os defensores da posição adversa que a aplicação, sem mais, do disposto no mencionado art. 1411º, nº1 resultará no desrespeito do caso julgado, entretanto, formado e respeitante ao simultâneo decretamento do divórcio por mútuo consentimento. Porém, em nosso modesto entendimento, não poderá proceder uma tal argumentação. Com efeito, diz-nos o art. 1788º, do CC que “O divórcio dissolve o casamento…”, estatuindo-se, no imediato art. 1789º, nº1, que “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença…” Assim, coincidindo, temporalmente, a possibilidade da invocação do trânsito em julgado da sobredita sentença com a produção dos respectivos efeitos, jamais poderá ser, em tal segmento, alterada aquela sentença, atenta a ressalva dos “efeitos já produzidos” constante do citado art. 1411º, nº1. Risco esse, aliás, não comprovado pela vivência diária dos nossos tribunais. /III – Esgrime-se, também, em apoio da corrente adversa, o facto de, ao contrário do que sucede com os acordos respeitantes à prestação de alimentos a um dos cônjuges e à regulação do exercício do poder paternal relativamente aos filhos menores – als. d) e c), respectivamente, do nº1 do art. 1419º –, não haver dispositivo legal que contemple a alteração do questionado acordo respeitante ao destino da casa de morada da família[2]. Sem quebra do respeito devido a tal opinião, que se entende tributária de raciocínio meramente formal e desvalorizador dos atendíveis interesses e necessidades quase sempre subjacentes à pretensão de alteração do acordo em causa, entendemos que a mesma não poderá ser perfilhada: por um lado, porque um tal argumento não decorre duma interpretação imposta pela consideração do correspondente elemento sistemático (Cfr. art. 9º, nº1, do CC), antes resultando da convocação de preceitos legais não insertos na lei adjectiva integrante do mencionado art. 1411º, nº1, mas, antes, noutros diplomas legais; por outro lado, porque, sobre a inexistência de preceitos legais que prevejam e desenvolvam a matéria, emerge e afirma-se, insofismavelmente, a permissão da discutida alteração, na decorrência da previsão clara constante daquele art. da lei adjectiva. Tudo sendo reforçado pelo facto de a sustentada inalterabilidade não ter na letra do questionado art. 1411º, nº1 um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa, o que impõe a respectiva rejeição, à luz do disposto no art. 9º, nº2, do CC./IV – Também se aduz, “ex adverso”, que a posição por nós perfilhada poderá conduzir “à frustração do equilíbrio e interesses que foram postos em equação e ponderação pelos cônjuges e pelo próprio juiz (ou conservador)”, a quando da celebração do acordo respeitante ao destino da casa de morada da família[3]. Afirmando, aqui, a elevadíssima consideração que nos merecem os autores do respectivo e douto aresto, ousamos do mesmo, respeitosamente, discordar. É que, para além de tal posição dar inteira prevalência ao papel de mero exegeta da lei, em detrimento da função de verdadeiro arquitecto social que o juiz desperto para as realidades da vida deve protagonizar, a mesma parece relegar para segundo plano que, nos processos de jurisdição voluntária, o tribunal pode investigar livremente os factos (art. 1409º, nº2) e nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art. 1410º). Assim sendo, não se vê qualquer razão para que o juiz, ao decidir do mérito da correspondente pretensão e à semelhança dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 1778º, do CC, não possa, até por maioria de razão, prevenir e salvaguardar os mencionados equilíbrio e interesses, inviabilizando e não dando guarida a oportunistas tentativas de subversão de tais valores que se reconhece deverem ser salvaguardados. Ou seja, a posição a que se adere permite compatibilizar ambos os quadros de valores, ao contrário daquela que merece a nossa rejeição./V – A finalizar, algumas notas:/A primeira para acentuar que a Jurisprudência dos nossos tribunais superiores se encontra muito dividida quanto à solução da questão em análise, tendo sido defendida posição contrária à por nós perfilhada, designadamente e para além do já citado Ac. do STJ, nos Acs. deste mesmo Tribunal, de 02.10.03 (Cons. Ferreira Girão e com um voto de vencido) – COL/STJ – 3º/74 – e de 19.03.02 (Cons. Simões Freire) – in www.dgsi.pt., Proc . nº 02B555 e nos Acs. desta Relação, de 02.05.95 - Col. – 3º/197 – de 17.02.00 – Col. – 1º/218 – de 05.05.05 – Col. 3º/160 – e de 22.11.05 – in www.dgsi.pt., Proc. 0525693. Em contrapartida, foi perfilhada posição coincidente nos Acs. da Rel. de Lisboa, de 27.05.03 – Col. 3º/91 – e nos Acs. desta Relação, de 30.09.02, 03.03.04, 26.10.06 e 05.02.07 (este relatado pelo, ora, 1º Adjunto e tendo no mesmo intervindo o, ora, 2º Adjunto), disponíveis em www.dgsi.pt., Procs. 0250994, 0322808, 0634785 e com o nº convencional JTRP00040033, respectivamente. Sendo, igualmente, a posição defendida, vigorosamente, por Nuno de Salter Cid, in “A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português”, pags. 310 e segs. A segunda para trazer à colação o exarado (entre o mais) pelo Ex. mo Cons. Lucas Coelho, no sobredito voto de vencido: “Nas condições expostas desnecessariamente se preocupará o intérprete partindo em busca de especial permissão para o efeito. Bem ao invés, preocupante seria a existência de normação que interditasse uma similar alteração, cuja conformidade com os ditames da autonomia privada e com os princípios de acesso à justiça, da jurisdição e do Estado de direito democrático não poderia deixar de se questionar. (…) Não se objecte, salvo o devido respeito, com o bem jurídico da estabilidade familiar, um parâmetro a ponderar necessariamente pelo juiz da jurisdição voluntária dentro da ampla margem de investigação (art. 1409º, nº2) e decisão (art. 1410º) que lhe assiste, e valor paradoxalmente susceptível, em casos concretos, de aconselhar por si a alteração da situação anteriormente definida”. A terceira para acentuar que, no caso dos autos, acrescidas razões existem para assumirmos a posição que ficou exposta, porquanto, no acordo em causa, se fez constar “sem prejuízo de ulterior decisão”, o que, então consentido, não pode, agora, ser olvidado. *4 – Em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, com o ulterior prosseguimento dos autos. Sem custas (art. 2º, nº1, al. g), do C. C. Jud.)./ Porto, 23 de Abril de 2007 José Augusto Fernandes do Vale Rui de Sousa Pinto Ferreira Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira __________________________________ [1] Nestas se compreendendo tanto as ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso. [2] Reportam-se à alteração dos mencionados acordos, respectivamente, os arts. 2012º, do CC e 1121º, de um lado, e 1920º-A, do CC e 182º da O.T.M., por outro. [3] Ac. do STJ, de 15.02.05 (Cons. Alves Velho), disponível em www.dgsi.pt., Proc. nº 04ª3621.