I - O despacho de não pronúncia deve ser fundamentado porque só deve modo cumpre o dever de fundamentação das decisões judiciais, delimita os poderes de cognição do JIC ao proferir o despacho de pronúncia nos casos do artº 308º CPP, e determina os efeitos do caso julgado da decisão final de não pronuncia quanto esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido. II - Deve conter, por isso, a especificação dos factos indiciados e não indiciados do RAI cuja falta afecta intrinsecamente o valor do despacho de não pronuncia. III - Constituindo irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente.
Processo n.º938-13.5TAVFR.P1 Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO No processo n.º938/13.5TAVFR que correu termos pelo 2ºJuízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira [entretanto extinto], os assistentes B… e C…, não se conformando com o despacho de arquivamento com que o Ministério Público encerrou a fase de inquérito, requereu a abertura de instrução, no termo da qual foi proferida decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos D… e E…. Inconformados com a decisão, dela interpuseram recurso os assistentes, extraindo da motivação, as seguintes conclusões [transcrição]: I - Analisados os factos descritos no Requerimento de Abertura de Instrução dos assistentes são imputados aos arguidos factos que ocorreram no dia 19 de Maio de 1993, mas com conhecimento publico e generalizado, apenas em Janeiro de 2013; II - Expõem os assistentes que, na referida data, o arguido D… interveio numa escritura de compra e venda, em representação de F…, da assistente B… e do irmão do primeiro, G…; III - Sendo certo que, na realidade, nenhum daqueles sujeitos tinha autorizado tal negócio, tendo, inclusivamente, o G… falecido seis dias antes, razão pela qual estaria caduca a procuração ao abrigo da qual aquele arguido teria actuado, vendendo quotas-partes de quatro prédios ao seu filho, aqui segundo arguido, E…. IV - Não se pode sustentar, que é com a celebração de uma escritura pública que tem por objecto tais prédios, que se inicia a inversão do título da posse e, consequentemente, o início da contagem do prazo da prescrição, conforme se justifica o Ex.mo Sr. Juiz de Instrução para não pronunciar os arguidos; V – Não se aceita que a mera publicidade do acto translativo da propriedade confira aos arguidos o direito de posse e propriedade, já que é entendimento dos Assistentes que tal, apenas se dá, quando os arguidos se passam a comportar como os donos dos identificados terrenos, praticando actos públicos e notórios de tal; VI - O crime de abuso de confiança é um crime que se reporta a coisa móvel, para além de se exigir que a coisa objecto da apropriação tenha sido entregue ao agente do crime por título não translativo da propriedade, VII - No entanto, tais elementos constitutivos do tipo legal de crime em causa, nomeadamente, o facto de se referir a “coisa móvel” não deve ser entendido, no sentido “estrito” da palavra; VIII – Isto porque, ao se restringir o referido tipo legal de crime apenas a coisas moveis, o artigo em si deixaria de ter qualquer sentido, nele não se incluindo os bens imoveis, ou moveis sujeitos a registo, o que seria, de todo, e salvo melhor opinião, contrário ao sentido e alcance que o legislador pretendeu dar à norma (já que se assim fosse, os casos que envolvessem bens imoveis ficariam por punir); IX – Pelo que a solução não poderia deixar de passar por se, interpretar extensivamente, o referido artigo no que concerne aos bens em causa, incluindo no seu teor, ou, digamos, no sentido que o legislador pretendeu dar ao artigo, além de bens moveis, também os bens imoveis; X – Efectivamente, conforme prescreve o artigo 9º do Codigo Civil aplicável subsidiariamente: A interpretação das normas “(…) não deve cingir-se à letra da Lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a Lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é apicada.” XI – Conforme prescreve o nº2 do referido artigo: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra a lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” XII – Pelo que os Assistentes entendem que, apesar de na letra da lei do referido artigo 205º nº 1 CP, senso requisitos do crime de abuso de confiança: - a apropriação ilegítima, de coisa móvel, entregue por título não translativo de propriedade., se devem compreender, também as coisas imoveis, como é o caso dos autos. XIII – Conforme prescreve Jorge Figueiredo Dias - in Comentario Conimbricense ao Codigo Penal – no que diz respeito ao artigo 205 do C.P. na sua página 98: “…. alheia é toda a coisa que, segundo este direito, pertence, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente, sendo por isso integrado o elemento típico em exame por coisas de que o agente é (apenas) comproprietário….” XIV - Portanto, verifica-se, que os Arguidos, apropriaram-se, ilegitimamente, de uma “coisa” alheia (embora em parte, por estar em compropriedade) com o prejuízo dos Assistentes; XV – Sendo certo que o facto considera-se, salvo melhor opinião, como consumado, enquanto produção do resultado típico, apenas quando os Assistentes dele tomaram conhecimento, mesmo e apesar de, volvidos vinte anos. XVI – Já que foi, exatamente na data indicada nos autos, que os Arguidos passaram a pratica atos públicos e a comportarem-se como únicos proprietários; XVII - O prazo da prescrição do procedimento criminal, iniciando-se com a consumação do crime (cfr. 119º nº 1 do Código Penal), interrompe-se, de acordo com o previsto no nº 1 do artigo 121º do Código Penal; XVIII - Nos termos do disposto no artigo 120º do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal suspende-se; quando se verificar alguma situação capaz de o fazer, o que não acontece no caso dos autos, ate porque os factos apenas se consumam – conforme supra já descrito – apenas em Janeiro de 2013 – tendo a respetiva queixa criminal dado entrada em juízo em Junho de 2013; XIX - Conforme prescreve o artigo 118º, nº 1 do C. Penal: “O procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorridos os seguintes prazos….d) 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos.” XX - Nos termos do artigo 115º, nº 1 do C. Penal: “O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores (…)”; XXI - Tendo o Abuso de Confiança praticado por ambos os Arguidos, apenas se consumado em meados de Janeiro de 2013 conforme supra exposto, só a partir dessa data se inicia a contagem dos prazos legais de caducidade e de prescrição; XXII - Nos termos do artº 256º nº 1, alínea b) do C. Penal (crime de falsificação de documento) o mesmo tem como bem jurídico protegido a fé pública, a segurança no tráfico jurídico, tratando-se de um crime intencional – neste sentido veja-se o Ac. STJ de 18.01.2001, Processo nº 2833/00-5ª secção – Ac. STJ de 17.06.1999, Proc. nº 225/99, 3ª secção, in www.dgsi.pt. XXIII – Protegendo-se, com os delitos de falsidade, a capacidade probatória de uma serie de instrumentos como são os documentos. XXIV - Pretende-se, assim, proteger a confiança pessoal de certas relações e assegurar a correspondência entre a realidade e os símbolos que a representam, a fim de permitir a fluidez do tráfico jurídico, quando estes símbolos são fundamentais para a estabilidade de uma certa relação – cfr. Joan Josep Queralt Jimenez “Derecho Penal Espanol”, PE, Barcelona, 2ª Edição, 1992, pag. 361. XXV - Ao nível objetivo distingue-se a existência de um documento, enquanto objeto da ação, diversas modalidades de condutas, enquanto que, no que respeita ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se um dolo específico, já que o agente actua com intenção de causar prejuízo a outrem, obtendo benefício ilegítimo. XXVI - Efetivamente, os Arguidos, ao conscientemente produzirem declarações falsas na escritura e ao facto de, após os Assistentes tomarem conhecimento de tais factos os interpelarem para o efeito, terem utilizado o respetivo documento falso no trafico jurídico, fizeram-no com plena consciência, dolosamente, pretendendo prejudicar, com beneficio próprio, os aqui Assistentes e restantes Herdeiros. XXVII - Ao que, os Assistentes, entendem, salvo melhor opinião, estarem verificados todos os requisitos legais dos crimes que são imputados aos Arguidos, atento o vertido nos artigos precedentes. XXVIII - Com a atuação descrita, os Arguidos praticaram os crimes de Abuso de Confiança, p. e p. pelo artigo 205º, nº 1 e 4, alínea a) e de Falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1 e 3, todos do Código Penal, pelos quais devem ser acusados e condenados. XXIX – Não devendo colher a posição assumida pelo Ex.mo Sr. Juiz de Instrução, mas antes a posição aqui defendida pelos Assistentes, com as devidas consequências legais FAZENDO-SE ASSIM, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.237 a 238]. Os arguidos não apresentaram resposta ao recurso. Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do disposto no art.416.º n.º1 do C.P.Penal, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que se pronunciou pelo no provimento do recurso [fls.246 e 246v.]. Cumprido o disposto no art.417.º nº2 do C.P.Penal, os recorrentes apresentaram resposta em que reiteram a posição que assumiram no recurso interposto [fls.250 a 254]. Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à conferência. II – FUNDAMENTAÇÃO Decisão recorrida O despacho de não pronúncia tem o seguinte teor: «Inconformados com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público de folhas 58 a 59, os assistentes B… e C… requereram a abertura da presente instrução com vista à pronúncia dos arguidos D…, melhor identificado a folhas 182, e E…, imputando-lhes a prática de factos que qualifica como a prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.°, n.ºs 1 e 4, alínea a), do Código Penal, e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.°, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, pelos fundamentos expendidos de folhas 91 a 122, os quais aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos.*Entendendo-se que o objecto da presente instrução era apenas uma questão de direito, não foi realizada qualquer diligência probatória neste âmbito, apenas tendo sido determinada a constituição como arguidos dos denunciados (cfr. folhas 167).*Questões prévias Da prescrição do procedimento criminal. Como já se referiu, por decisão de 3 de Julho de 2013, o Ministério Público arquivou liminarmente os autos por entender que o procedimento criminal pelos factos denunciados estaria prescrito (cfr. folhas 58 a 59). Os assistentes pugnam pela não prescrição do procedimento criminal, aduzindo que os arguidos não exteriorizaram o negócio simulado na escritura de compra e venda em crise, sustentando, assim, que a consumação do crime de abuso de confiança apenas teria ocorrido em meados do ano de 2013, data em que os mesmos se teriam arrogado como donos dos prédios aqui em causa. Cumpre apreciar. Ainda que se pudesse aceitar a qualificação jurídica dos factos denunciados efectuada pelos assistentes (com a qual não se concorda inteiramente, afigurando-se mais acertada a configuração do Insigne Procurador-adjunto titular dos autos de inquérito, estando em causa um crime de falsificação de documento e um crime de burla), estaríamos perante a prática de factos que integrariam um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.°, n.ºs 1 e 4, alínea a), do Código Penal, e um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.°, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, ou seja, perante incriminações cujo prazo prescricional é de dez anos [artigo 119.°, n." 1, alínea b), do Código Penal]. Ora, analisando os factos descritos no requerimento de abertura de instrução dos assistentes é inelutável a conclusão de que os factos que aos arguidos são imputados ocorreram no dia 19 de Maio de 1993. Na verdade, em síntese, aduzem os assistentes que, na referida data, o arguido D… interveio numa escritura de compra em venda, alegadamente em· representação de F… (respectivamente, marido e pai dos assistentes), da assistente B… e do irmão do primeiro, G…, quando na realidade, nenhum daqueles sujeitos tinha autorizado tal negócio, tendo inclusivamente o último (G…) falecido seis dias antes, razão pela qual estaria ademais caduca a procuração ao abrigo da qual aquele arguido teria actuado, vendendo quotas-partes de quatro prédios ao seu filho, aqui segundo arguido, E…. Singelamente vista tal factualidade, afigura-se que não pode sustentar-se como o fazem os assistentes que apenas quando os arguidos se arrogaram co-proprietários de tais prédios (o que, de resto, também não concretizam adequadamente) se pode ter o crime de abuso de confiança como consumado por só aí se ter invertido o título da posse. Na realidade, não se vê acto mais público e notório do que a celebração de uma escritura pública que tem por objecto tais prédios, não podendo aceitar-se que a publicidade do acto translativo da propriedade apenas se dá quando os arguidos se passam a comportar como os donos dos identificados terrenos. Acresce que, o crime de abuso de confiança se reporta a coisa móvel, para além de se exigir que a coisa objecto da apropriação tenha sido entregue ao agente do crime por título não translativo da propriedade, o que, no caso, não se verifica, não consubstanciando, pois, os factos denunciados o imputado crime. Por outro lado, ainda que se enquadrasse a factualidade denunciada na incriminação prevista e punida pelo artigo 217.° do Código Penal, eventualmente qualificada nos termos do n.º 1 do artigo 218.° do Código Penal (muito embora não esteja concretizado o valor do prejuízo), correspondente ao crime de burla, a solução não poderia deixar de ser idêntica à propugnada pelo Ministério Público e que esteve na base do arquivamento liminar dos autos, já que, também este crime, se consuma aquando a celebração da escritura pública em causa porque é nesse acto que eventualmente se verifica o prejuízo dos ofendidos, sendo manifestamente irrelevante para efeitos de consumação do crime - enquanto produção do resultado típico (artigo 3.° do Código Penal) - a circunstância de aqueles só dele terem tomado conhecimento volvidos vinte anos (eventualmente relevaria para efeitos de contagem do prazo para a apresentação da queixa). Por conseguinte, sendo de dez anos o prazo de prescrição a considerar, importará, pois, determinar se, por força do decurso do aludido prazo, o procedimento criminal se há-de considerar extinto, ou se, pelo contrário, ocorreu algum evento susceptível de obstar à prescrição. O prazo de prescrição do procedimento criminal, iniciando-se com a consumação do crime (cfr. artigo 119.°, n.° 1, do Código Penal), interrompe-se, de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 121.° do Código Penal, com: a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial ajuízo não penal; b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzi da, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo; c) Vigorar a declaração de contumácia; ou d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência; e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado; f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade. Nos termos do disposto no artigo 120.° do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: a) o procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para o juízo não penal; b) o procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzi da, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo; c) vigorar a declaração de contumácia; d) a sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência; e) o delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade. Ora, considerando que nenhuma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição se verifica no presente caso, uma vez que antes do dia 19 de Maio de 2003 (data em que se alcançou o prazo máximo da prescrição), os arguidos nunca foram constituídos como tal, atendendo ao lapso temporal decorrido desde a consumação do crime imputado, mais não restará senão concluir que, em face do regime instituído pelo Código Penal, o procedimento criminal se extinguiu por efeito do decurso do prazo prescricional legalmente estabelecido. Por fim, diga-se que, em face do decidido, fica prejudicada a apreciação Por fim, diga-se que, em face do decidido, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos assistentes requerentes de instrução. DECISÃO Por todo o exposto, por extinção do procedimento criminal por prescrição, decido não pronunciar os arguidos D… e E…, determinando, consequentemente, o arquivamento dos autos. Custas a cargo dos assistentes, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal [artigo 515.°, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal]. Notifique e deposite.» Apreciação Nos termos do art.412.º n.º1 do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só cabendo ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo daquelas que cumpre conhecer oficiosamente. A questão trazida à apreciação deste tribunal traduz-se em saber se, imputando os assistentes aos arguidos a prática dos crimes de abuso de confiança e de falsificação de documento p. e p., respetivamente, pelos art.s 205.º, n.º 1 e 4, alínea a) e 256.º, n.º1 e 3, ambos do C.Penal, já ocorreu a prescrição do procedimento criminal. No entanto, antes de mais, impõe-se apreciar um vício, de conhecimento oficioso, de que enferma o despacho recorrido e cuja procedência prejudica o conhecimento da questão suscitada no recurso, consubstanciando-se tal vício na falta de indicação dos factos indiciados e não indiciados por referência ao requerimento de abertura da instrução. Estabelece o art.286.º n.º1 do C.P.Penal que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Abstendo-se o Ministério Público de deduzir acusação, o requerimento de instrução do assistente deve conter, além de outros, os requisitos exigidos para a acusação no art. 283.º, n.º3 do C.P.Penal [aplicável ao requerimento de instrução ex vi art.287.º n.º2 do mesmo diploma], designadamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança. Ou seja, o requerimento de abertura de instrução, quando o Ministério Público arquiva o inquérito, fixa o objeto do processo, razão pela qual nos arts. 303.º n.º3 e 309.º n.º1, ambos do C.P.Penal, se estabelece a proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução. Por outro lado, sendo o despacho de não pronúncia um ato decisório do juiz, tem de ser fundamentado, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – art.97.º n.º5 do C.P.Penal – de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso. O Tribunal da Relação tem de conhecer quais os indícios tidos por assentes e não assentes pela 1ª instância para que possa proceder à sua valoração e enquadramento jurídico, de molde a poder confirmar o despacho de pronúncia ou de não pronúncia. Porém, o interesse da fixação da factualidade não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia nos termos do art.308.º do C.P.Penal, nem no dever de fundamentação dos atos decisórios. A sua importância é também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia[1], quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, ou seja, quando o tribunal conhece do mérito do requerimento instrutório. Há aqueles casos em que o tribunal «declara que os autos não fornecem indícios materiais da existência dos factos acusados ou que o arguido os tenha praticado e em consequência não recebe a acusação»[2]. Há ainda as situações em que o tribunal declara que os factos descritos no requerimento instrutório, embora indiciados, não são subsumíveis a qualquer tipo legal de crime. «Assim, existe decisão final quando, apesar de indiciados os factos descritos no requerimento instrutório, o Sr. Juiz de Instrução concluir que os mesmos não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos. Nessas situações, transitada em julgado essa decisão, o processo onde foi proferida só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449º, nº2, e 450º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal (…), podendo o arguido arguir a exceção do caso julgado em qualquer outro processo que seja instaurado pelos mesmos factos. Existe decisão final quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se deva à não indiciação de todos ou parte dos factos descritos no requerimento instrutório, os quais se apresentavam como essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime. Porém, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, o processo pode ser reaberto, assim como instaurado novo processo, se surgirem novos elementos de prova que abalem o fundamento da decisão de não pronúncia. Consequentemente, a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respetivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respetivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa» -Ac.R.Guimarães de 27/9/2004, proc.n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves.[3] No caso em apreço, o despacho recorrido não enumera quais os factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e os não suficientemente indiciados. A Exma. Juíza limitou-se, face à qualificação jurídica efetuada pelos assistentes [abuso de confiança e falsificação de documento], com a qual afirma até discordar parcialmente, assim como perante a que entende por adequada [burla, eventualmente qualificada, e falsificação de documento], sem cuidar de analisar se estão preenchidos os elementos constitutivos destes tipos legais, considerar que o respetivo procedimento criminal está prescrito. Porém, antes de conhecer desta questão, tem de se pronunciar sobre a suficiente, ou não, indiciação dos factos imputados aos arguidos, respetiva qualificação jurídica e então, caso se indicie a prática de infrações criminais, pronunciar-se sobre a prescrição. O não cumprimento desta exigência de especificação dos factos indiciados e não indiciados do requerimento de abertura da instrução afeta intrinsecamente o valor deste despacho judicial. Afigura-se-nos que esta omissão consubstancia irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto do art.123.º n.º2 do C.P.Penal [neste sentido, v., entre outros e para além dos acórdãos supra mencionados, Ac.R.Guimarães de 4/7/2005, relatado pelo Desembargador Tomé Branco, in Coletânea de Jurisprudência, ano XXX, Tomo IV, pág.300, Ac.R.Guimarães de 9/7/2009, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho, in www.dgsi.pt.][4] Face à procedência desta irregularidade, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada no recurso. III – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar inválida a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que supra a omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência ao requerimento de abertura da instrução. Sem custas. [texto elaborado pela relatora e revista por ambas as signatárias] Porto, 15/4/2015 Maria Luísa Arantes Ana Bacelar ______________ [1] O despacho de não pronúncia é uma decisão interlocutória e não uma decisão final quando, em vez de ter por efeito imediato o arquivamento do processo, determina a sua devolução à fase de instrução, pela ocorrência de um vício processual. [2] Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Editorial Verbo 2009, pág.196 [3] No mesmo sentido, Ac.R.Porto de 16/12/2009, proc.n.º568/07.0GFVNG.P1, relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino [4] O entendimento quer na doutrina quer na jurisprudência não é unânime quanto à natureza deste vício –cfr., a propósito, o Ac.R.Évora de 22/4/2014, proc. n.º258/12.2T3STC, relatado pelo Desembargador Proença da Costa, onde se faz uma resenha dos vários entendimentos nesta matéria.
Processo n.º938-13.5TAVFR.P1 Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO No processo n.º938/13.5TAVFR que correu termos pelo 2ºJuízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira [entretanto extinto], os assistentes B… e C…, não se conformando com o despacho de arquivamento com que o Ministério Público encerrou a fase de inquérito, requereu a abertura de instrução, no termo da qual foi proferida decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos D… e E…. Inconformados com a decisão, dela interpuseram recurso os assistentes, extraindo da motivação, as seguintes conclusões [transcrição]: I - Analisados os factos descritos no Requerimento de Abertura de Instrução dos assistentes são imputados aos arguidos factos que ocorreram no dia 19 de Maio de 1993, mas com conhecimento publico e generalizado, apenas em Janeiro de 2013; II - Expõem os assistentes que, na referida data, o arguido D… interveio numa escritura de compra e venda, em representação de F…, da assistente B… e do irmão do primeiro, G…; III - Sendo certo que, na realidade, nenhum daqueles sujeitos tinha autorizado tal negócio, tendo, inclusivamente, o G… falecido seis dias antes, razão pela qual estaria caduca a procuração ao abrigo da qual aquele arguido teria actuado, vendendo quotas-partes de quatro prédios ao seu filho, aqui segundo arguido, E…. IV - Não se pode sustentar, que é com a celebração de uma escritura pública que tem por objecto tais prédios, que se inicia a inversão do título da posse e, consequentemente, o início da contagem do prazo da prescrição, conforme se justifica o Ex.mo Sr. Juiz de Instrução para não pronunciar os arguidos; V – Não se aceita que a mera publicidade do acto translativo da propriedade confira aos arguidos o direito de posse e propriedade, já que é entendimento dos Assistentes que tal, apenas se dá, quando os arguidos se passam a comportar como os donos dos identificados terrenos, praticando actos públicos e notórios de tal; VI - O crime de abuso de confiança é um crime que se reporta a coisa móvel, para além de se exigir que a coisa objecto da apropriação tenha sido entregue ao agente do crime por título não translativo da propriedade, VII - No entanto, tais elementos constitutivos do tipo legal de crime em causa, nomeadamente, o facto de se referir a “coisa móvel” não deve ser entendido, no sentido “estrito” da palavra; VIII – Isto porque, ao se restringir o referido tipo legal de crime apenas a coisas moveis, o artigo em si deixaria de ter qualquer sentido, nele não se incluindo os bens imoveis, ou moveis sujeitos a registo, o que seria, de todo, e salvo melhor opinião, contrário ao sentido e alcance que o legislador pretendeu dar à norma (já que se assim fosse, os casos que envolvessem bens imoveis ficariam por punir); IX – Pelo que a solução não poderia deixar de passar por se, interpretar extensivamente, o referido artigo no que concerne aos bens em causa, incluindo no seu teor, ou, digamos, no sentido que o legislador pretendeu dar ao artigo, além de bens moveis, também os bens imoveis; X – Efectivamente, conforme prescreve o artigo 9º do Codigo Civil aplicável subsidiariamente: A interpretação das normas “(…) não deve cingir-se à letra da Lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a Lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é apicada.” XI – Conforme prescreve o nº2 do referido artigo: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra a lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” XII – Pelo que os Assistentes entendem que, apesar de na letra da lei do referido artigo 205º nº 1 CP, senso requisitos do crime de abuso de confiança: - a apropriação ilegítima, de coisa móvel, entregue por título não translativo de propriedade., se devem compreender, também as coisas imoveis, como é o caso dos autos. XIII – Conforme prescreve Jorge Figueiredo Dias - in Comentario Conimbricense ao Codigo Penal – no que diz respeito ao artigo 205 do C.P. na sua página 98: “…. alheia é toda a coisa que, segundo este direito, pertence, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente, sendo por isso integrado o elemento típico em exame por coisas de que o agente é (apenas) comproprietário….” XIV - Portanto, verifica-se, que os Arguidos, apropriaram-se, ilegitimamente, de uma “coisa” alheia (embora em parte, por estar em compropriedade) com o prejuízo dos Assistentes; XV – Sendo certo que o facto considera-se, salvo melhor opinião, como consumado, enquanto produção do resultado típico, apenas quando os Assistentes dele tomaram conhecimento, mesmo e apesar de, volvidos vinte anos. XVI – Já que foi, exatamente na data indicada nos autos, que os Arguidos passaram a pratica atos públicos e a comportarem-se como únicos proprietários; XVII - O prazo da prescrição do procedimento criminal, iniciando-se com a consumação do crime (cfr. 119º nº 1 do Código Penal), interrompe-se, de acordo com o previsto no nº 1 do artigo 121º do Código Penal; XVIII - Nos termos do disposto no artigo 120º do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal suspende-se; quando se verificar alguma situação capaz de o fazer, o que não acontece no caso dos autos, ate porque os factos apenas se consumam – conforme supra já descrito – apenas em Janeiro de 2013 – tendo a respetiva queixa criminal dado entrada em juízo em Junho de 2013; XIX - Conforme prescreve o artigo 118º, nº 1 do C. Penal: “O procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorridos os seguintes prazos….d) 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos.” XX - Nos termos do artigo 115º, nº 1 do C. Penal: “O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores (…)”; XXI - Tendo o Abuso de Confiança praticado por ambos os Arguidos, apenas se consumado em meados de Janeiro de 2013 conforme supra exposto, só a partir dessa data se inicia a contagem dos prazos legais de caducidade e de prescrição; XXII - Nos termos do artº 256º nº 1, alínea b) do C. Penal (crime de falsificação de documento) o mesmo tem como bem jurídico protegido a fé pública, a segurança no tráfico jurídico, tratando-se de um crime intencional – neste sentido veja-se o Ac. STJ de 18.01.2001, Processo nº 2833/00-5ª secção – Ac. STJ de 17.06.1999, Proc. nº 225/99, 3ª secção, in www.dgsi.pt. XXIII – Protegendo-se, com os delitos de falsidade, a capacidade probatória de uma serie de instrumentos como são os documentos. XXIV - Pretende-se, assim, proteger a confiança pessoal de certas relações e assegurar a correspondência entre a realidade e os símbolos que a representam, a fim de permitir a fluidez do tráfico jurídico, quando estes símbolos são fundamentais para a estabilidade de uma certa relação – cfr. Joan Josep Queralt Jimenez “Derecho Penal Espanol”, PE, Barcelona, 2ª Edição, 1992, pag. 361. XXV - Ao nível objetivo distingue-se a existência de um documento, enquanto objeto da ação, diversas modalidades de condutas, enquanto que, no que respeita ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se um dolo específico, já que o agente actua com intenção de causar prejuízo a outrem, obtendo benefício ilegítimo. XXVI - Efetivamente, os Arguidos, ao conscientemente produzirem declarações falsas na escritura e ao facto de, após os Assistentes tomarem conhecimento de tais factos os interpelarem para o efeito, terem utilizado o respetivo documento falso no trafico jurídico, fizeram-no com plena consciência, dolosamente, pretendendo prejudicar, com beneficio próprio, os aqui Assistentes e restantes Herdeiros. XXVII - Ao que, os Assistentes, entendem, salvo melhor opinião, estarem verificados todos os requisitos legais dos crimes que são imputados aos Arguidos, atento o vertido nos artigos precedentes. XXVIII - Com a atuação descrita, os Arguidos praticaram os crimes de Abuso de Confiança, p. e p. pelo artigo 205º, nº 1 e 4, alínea a) e de Falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº 1 e 3, todos do Código Penal, pelos quais devem ser acusados e condenados. XXIX – Não devendo colher a posição assumida pelo Ex.mo Sr. Juiz de Instrução, mas antes a posição aqui defendida pelos Assistentes, com as devidas consequências legais FAZENDO-SE ASSIM, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.237 a 238]. Os arguidos não apresentaram resposta ao recurso. Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do disposto no art.416.º n.º1 do C.P.Penal, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que se pronunciou pelo no provimento do recurso [fls.246 e 246v.]. Cumprido o disposto no art.417.º nº2 do C.P.Penal, os recorrentes apresentaram resposta em que reiteram a posição que assumiram no recurso interposto [fls.250 a 254]. Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à conferência. II – FUNDAMENTAÇÃO Decisão recorrida O despacho de não pronúncia tem o seguinte teor: «Inconformados com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público de folhas 58 a 59, os assistentes B… e C… requereram a abertura da presente instrução com vista à pronúncia dos arguidos D…, melhor identificado a folhas 182, e E…, imputando-lhes a prática de factos que qualifica como a prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.°, n.ºs 1 e 4, alínea a), do Código Penal, e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.°, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, pelos fundamentos expendidos de folhas 91 a 122, os quais aqui se dão, para todos os efeitos legais, como integralmente reproduzidos.*Entendendo-se que o objecto da presente instrução era apenas uma questão de direito, não foi realizada qualquer diligência probatória neste âmbito, apenas tendo sido determinada a constituição como arguidos dos denunciados (cfr. folhas 167).*Questões prévias Da prescrição do procedimento criminal. Como já se referiu, por decisão de 3 de Julho de 2013, o Ministério Público arquivou liminarmente os autos por entender que o procedimento criminal pelos factos denunciados estaria prescrito (cfr. folhas 58 a 59). Os assistentes pugnam pela não prescrição do procedimento criminal, aduzindo que os arguidos não exteriorizaram o negócio simulado na escritura de compra e venda em crise, sustentando, assim, que a consumação do crime de abuso de confiança apenas teria ocorrido em meados do ano de 2013, data em que os mesmos se teriam arrogado como donos dos prédios aqui em causa. Cumpre apreciar. Ainda que se pudesse aceitar a qualificação jurídica dos factos denunciados efectuada pelos assistentes (com a qual não se concorda inteiramente, afigurando-se mais acertada a configuração do Insigne Procurador-adjunto titular dos autos de inquérito, estando em causa um crime de falsificação de documento e um crime de burla), estaríamos perante a prática de factos que integrariam um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.°, n.ºs 1 e 4, alínea a), do Código Penal, e um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.°, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, ou seja, perante incriminações cujo prazo prescricional é de dez anos [artigo 119.°, n." 1, alínea b), do Código Penal]. Ora, analisando os factos descritos no requerimento de abertura de instrução dos assistentes é inelutável a conclusão de que os factos que aos arguidos são imputados ocorreram no dia 19 de Maio de 1993. Na verdade, em síntese, aduzem os assistentes que, na referida data, o arguido D… interveio numa escritura de compra em venda, alegadamente em· representação de F… (respectivamente, marido e pai dos assistentes), da assistente B… e do irmão do primeiro, G…, quando na realidade, nenhum daqueles sujeitos tinha autorizado tal negócio, tendo inclusivamente o último (G…) falecido seis dias antes, razão pela qual estaria ademais caduca a procuração ao abrigo da qual aquele arguido teria actuado, vendendo quotas-partes de quatro prédios ao seu filho, aqui segundo arguido, E…. Singelamente vista tal factualidade, afigura-se que não pode sustentar-se como o fazem os assistentes que apenas quando os arguidos se arrogaram co-proprietários de tais prédios (o que, de resto, também não concretizam adequadamente) se pode ter o crime de abuso de confiança como consumado por só aí se ter invertido o título da posse. Na realidade, não se vê acto mais público e notório do que a celebração de uma escritura pública que tem por objecto tais prédios, não podendo aceitar-se que a publicidade do acto translativo da propriedade apenas se dá quando os arguidos se passam a comportar como os donos dos identificados terrenos. Acresce que, o crime de abuso de confiança se reporta a coisa móvel, para além de se exigir que a coisa objecto da apropriação tenha sido entregue ao agente do crime por título não translativo da propriedade, o que, no caso, não se verifica, não consubstanciando, pois, os factos denunciados o imputado crime. Por outro lado, ainda que se enquadrasse a factualidade denunciada na incriminação prevista e punida pelo artigo 217.° do Código Penal, eventualmente qualificada nos termos do n.º 1 do artigo 218.° do Código Penal (muito embora não esteja concretizado o valor do prejuízo), correspondente ao crime de burla, a solução não poderia deixar de ser idêntica à propugnada pelo Ministério Público e que esteve na base do arquivamento liminar dos autos, já que, também este crime, se consuma aquando a celebração da escritura pública em causa porque é nesse acto que eventualmente se verifica o prejuízo dos ofendidos, sendo manifestamente irrelevante para efeitos de consumação do crime - enquanto produção do resultado típico (artigo 3.° do Código Penal) - a circunstância de aqueles só dele terem tomado conhecimento volvidos vinte anos (eventualmente relevaria para efeitos de contagem do prazo para a apresentação da queixa). Por conseguinte, sendo de dez anos o prazo de prescrição a considerar, importará, pois, determinar se, por força do decurso do aludido prazo, o procedimento criminal se há-de considerar extinto, ou se, pelo contrário, ocorreu algum evento susceptível de obstar à prescrição. O prazo de prescrição do procedimento criminal, iniciando-se com a consumação do crime (cfr. artigo 119.°, n.° 1, do Código Penal), interrompe-se, de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 121.° do Código Penal, com: a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial ajuízo não penal; b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzi da, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo; c) Vigorar a declaração de contumácia; ou d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência; e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado; f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade. Nos termos do disposto no artigo 120.° do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: a) o procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para o juízo não penal; b) o procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzi da, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo; c) vigorar a declaração de contumácia; d) a sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência; e) o delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade. Ora, considerando que nenhuma causa suspensiva ou interruptiva da prescrição se verifica no presente caso, uma vez que antes do dia 19 de Maio de 2003 (data em que se alcançou o prazo máximo da prescrição), os arguidos nunca foram constituídos como tal, atendendo ao lapso temporal decorrido desde a consumação do crime imputado, mais não restará senão concluir que, em face do regime instituído pelo Código Penal, o procedimento criminal se extinguiu por efeito do decurso do prazo prescricional legalmente estabelecido. Por fim, diga-se que, em face do decidido, fica prejudicada a apreciação Por fim, diga-se que, em face do decidido, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos assistentes requerentes de instrução. DECISÃO Por todo o exposto, por extinção do procedimento criminal por prescrição, decido não pronunciar os arguidos D… e E…, determinando, consequentemente, o arquivamento dos autos. Custas a cargo dos assistentes, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal [artigo 515.°, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal]. Notifique e deposite.» Apreciação Nos termos do art.412.º n.º1 do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só cabendo ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo daquelas que cumpre conhecer oficiosamente. A questão trazida à apreciação deste tribunal traduz-se em saber se, imputando os assistentes aos arguidos a prática dos crimes de abuso de confiança e de falsificação de documento p. e p., respetivamente, pelos art.s 205.º, n.º 1 e 4, alínea a) e 256.º, n.º1 e 3, ambos do C.Penal, já ocorreu a prescrição do procedimento criminal. No entanto, antes de mais, impõe-se apreciar um vício, de conhecimento oficioso, de que enferma o despacho recorrido e cuja procedência prejudica o conhecimento da questão suscitada no recurso, consubstanciando-se tal vício na falta de indicação dos factos indiciados e não indiciados por referência ao requerimento de abertura da instrução. Estabelece o art.286.º n.º1 do C.P.Penal que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Abstendo-se o Ministério Público de deduzir acusação, o requerimento de instrução do assistente deve conter, além de outros, os requisitos exigidos para a acusação no art. 283.º, n.º3 do C.P.Penal [aplicável ao requerimento de instrução ex vi art.287.º n.º2 do mesmo diploma], designadamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança. Ou seja, o requerimento de abertura de instrução, quando o Ministério Público arquiva o inquérito, fixa o objeto do processo, razão pela qual nos arts. 303.º n.º3 e 309.º n.º1, ambos do C.P.Penal, se estabelece a proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução. Por outro lado, sendo o despacho de não pronúncia um ato decisório do juiz, tem de ser fundamentado, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – art.97.º n.º5 do C.P.Penal – de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso. O Tribunal da Relação tem de conhecer quais os indícios tidos por assentes e não assentes pela 1ª instância para que possa proceder à sua valoração e enquadramento jurídico, de molde a poder confirmar o despacho de pronúncia ou de não pronúncia. Porém, o interesse da fixação da factualidade não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia nos termos do art.308.º do C.P.Penal, nem no dever de fundamentação dos atos decisórios. A sua importância é também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia[1], quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, ou seja, quando o tribunal conhece do mérito do requerimento instrutório. Há aqueles casos em que o tribunal «declara que os autos não fornecem indícios materiais da existência dos factos acusados ou que o arguido os tenha praticado e em consequência não recebe a acusação»[2]. Há ainda as situações em que o tribunal declara que os factos descritos no requerimento instrutório, embora indiciados, não são subsumíveis a qualquer tipo legal de crime. «Assim, existe decisão final quando, apesar de indiciados os factos descritos no requerimento instrutório, o Sr. Juiz de Instrução concluir que os mesmos não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos. Nessas situações, transitada em julgado essa decisão, o processo onde foi proferida só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449º, nº2, e 450º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal (…), podendo o arguido arguir a exceção do caso julgado em qualquer outro processo que seja instaurado pelos mesmos factos. Existe decisão final quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se deva à não indiciação de todos ou parte dos factos descritos no requerimento instrutório, os quais se apresentavam como essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime. Porém, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, o processo pode ser reaberto, assim como instaurado novo processo, se surgirem novos elementos de prova que abalem o fundamento da decisão de não pronúncia. Consequentemente, a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respetivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respetivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa» -Ac.R.Guimarães de 27/9/2004, proc.n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves.[3] No caso em apreço, o despacho recorrido não enumera quais os factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e os não suficientemente indiciados. A Exma. Juíza limitou-se, face à qualificação jurídica efetuada pelos assistentes [abuso de confiança e falsificação de documento], com a qual afirma até discordar parcialmente, assim como perante a que entende por adequada [burla, eventualmente qualificada, e falsificação de documento], sem cuidar de analisar se estão preenchidos os elementos constitutivos destes tipos legais, considerar que o respetivo procedimento criminal está prescrito. Porém, antes de conhecer desta questão, tem de se pronunciar sobre a suficiente, ou não, indiciação dos factos imputados aos arguidos, respetiva qualificação jurídica e então, caso se indicie a prática de infrações criminais, pronunciar-se sobre a prescrição. O não cumprimento desta exigência de especificação dos factos indiciados e não indiciados do requerimento de abertura da instrução afeta intrinsecamente o valor deste despacho judicial. Afigura-se-nos que esta omissão consubstancia irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto do art.123.º n.º2 do C.P.Penal [neste sentido, v., entre outros e para além dos acórdãos supra mencionados, Ac.R.Guimarães de 4/7/2005, relatado pelo Desembargador Tomé Branco, in Coletânea de Jurisprudência, ano XXX, Tomo IV, pág.300, Ac.R.Guimarães de 9/7/2009, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho, in www.dgsi.pt.][4] Face à procedência desta irregularidade, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada no recurso. III – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar inválida a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que supra a omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência ao requerimento de abertura da instrução. Sem custas. [texto elaborado pela relatora e revista por ambas as signatárias] Porto, 15/4/2015 Maria Luísa Arantes Ana Bacelar ______________ [1] O despacho de não pronúncia é uma decisão interlocutória e não uma decisão final quando, em vez de ter por efeito imediato o arquivamento do processo, determina a sua devolução à fase de instrução, pela ocorrência de um vício processual. [2] Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Editorial Verbo 2009, pág.196 [3] No mesmo sentido, Ac.R.Porto de 16/12/2009, proc.n.º568/07.0GFVNG.P1, relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino [4] O entendimento quer na doutrina quer na jurisprudência não é unânime quanto à natureza deste vício –cfr., a propósito, o Ac.R.Évora de 22/4/2014, proc. n.º258/12.2T3STC, relatado pelo Desembargador Proença da Costa, onde se faz uma resenha dos vários entendimentos nesta matéria.