I - Na compra e venda de animais infectados o comprador pode indistintamente usar da acção de cumprimento (817.º C.C.), anular o contrato por venda de coisa defeituosa (913.º C.C.) ou resolver o contrato por incumprimento definitivo (432.º C.C.), sem prejuízo de, em nalguns casos, poder ser ainda invocada a excepção de não cumprimento (428.º C.C.). II - No caso de compra e venda de animais defeituosos ficam ressalvadas as leis especiais (920.º C. C.), como seja o Decreto de 16.12.1886. III - O cumprimento defeituoso ocorre quando a prestação está inquinada desde o seu início, por força do vício da coisa que a contagia, acarretando a desconformidade entre a prestação devida e a realizada, gerando a insatisfação do interesse do credor, traduzindo-se essencialmente numa “perturbação na equivalência das prestações”.
Proc. nº 35976/19.5YIPRT.P1Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim - Juiz 2Acordam no Tribunal da Relação do PortoI – RelatórioB…, Unipessoal, Lda, pessoa colectiva nº ………., com sede no Largo…, .., …, Vila do Conde, intentou a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor inferior à alçada do Tribunal de 2ª instância, subsequente a injunção, pedindo a sua condenação no pagamento do valor de 4.880,00€, a título de capital em dívida, do valor de 291,96€, a título de juros de mora vencidos, do valor de 102,00€, a título de taxa de justiça paga e de 102,00€, a título de outras quantias devidas, bem ainda como de juros de mora vincendos. Alegou, para tanto, em suma, que, no âmbito da sua actividade de comercialização de animais vendeu à Ré 7 animais bovinos, no valor total de 7.049,00€, encontrando-se em divida o valor peticionado. Regularmente notificada a Requerida deduziu oposição reconhecendo o contrato celebrado com a Requerente, mas invocou que um dos animais vendidos padecia de doença contagiosa tendo de ser abatido. Mais invocou que o referido animal contagiou outros animais não tendo sido possível, até à data, apurar os danos sofridos. Assim, alega que acordou com a suspensão do pagamento até se apurar qual dos créditos é superior por forma a proceder á compensação. Pronunciou-se a Requerente pela improcedência da oposição. Foi realizada audiência de discussão e julgamento com estrita observância do formalismo legal e proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e em consequência, a condenar a requerida a pagar à requerente a quantia de 5.030,17€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos sobre a quantia de 4.880,00€, desde 18.11.2018 até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de 8% e às taxas que se vierem a fixar para os juros comerciais. A ré C… interpôs recurso, concluindo: 1ª. Na sentença recorrida ficou provado que um dos bovinos fornecidos pela A. à R. estava infetado com uma enfermidade denominada “diarreia viral bovina (BVD)”, doença que acabou por se transmitir a animais da exploração da R. 2ª. Conforme resulta da factualidade provada, a subsunção da mesma ao Direito está, salvo melhor opinião, concretizada de forma incorrecta, uma vez que tal matéria se enquadra não apenas no regime da venda de coisa defeituosa mas também no do cumprimento defeituoso da obrigação. 3ª. Resulta da função normal das coisas da mesma categoria em causa nos autos, que os animais vendidos pela A. deveriam ser saudáveis e não padecer de nenhuma doença que impedisse o normal objectivo inerente à compra e venda de animais bovinos, quais sejam a produção de carne para consumo ou a produção de leite e, num caso ou noutro, a ausência de doenças que atentem contra a vida e saúde do próprio animal e dos demais animais do grupo e local em que o mesmo irá ser integrado. 4ª. Não possuindo a mercadoria vendida as qualidades asseguradas, não haverá apenas uma venda de coisa defeituosa mas também cumprimento defeituoso da obrigação, pois que o vendedor não realizou a prestação a que, por força do contrato e da função normal do objecto da venda, se encontrava adstrito. 5ª. Estando, no caso dos autos, perante uma situação de cumprimento defeituoso da obrigação, já que a prestação realizada pelo A. não corresponde, pela falta das suas qualidades, ao objeto da obrigação a que se vinculara, para a A. ter direito ao pagamento do preço dos animais não bastava que se limitasse a fazer a entrega do número encomendado, impunha-se ainda que eles tivessem a qualidade devida e não padecessem de doença. 6ª. Verifica-se da matéria fática apurada (ponto 7.) que, dos animais fornecidos pela A. à R., um deles vinha infetado com uma enfermidade denominada diarreia viral bovina (BVD); que a R. comunicou a situação de doença do animal à A., que a reconheceu (ponto 9), sendo ainda certo que essa doença contaminou um número não apurado de bovinos da exploração da R. (ponto 8). 7ª. Perante uma prestação viciada ou incompleta, a contraparte pode recusar a sua prestação até que o mal seja remediado, pelo que, face à factualidade apurada nos autos, especialmente nos pontos 7, 8 e 9 dos factos provados, é legítimo à R./recorrente recusar o cumprimento da obrigação principal, atenta a bilateralidade das obrigações contraídas pelas partes, enquanto a A. não cumprir integralmente a sua obrigação, independentemente de não ter resultado provado qualquer acordo entre as partes quanto ao protelamento do pagamento do preço por parte da R.. 8ª. Face ao direito que cabe à R./recorrente de recusar o cumprimento da sua obrigação enquanto a obrigação da A. não for devidamente cumprida, não existe mora na obrigação de pagamento do preço, pelo que também não está obrigada ao pagamento dos juros peticionados na acção, atenta a legitimidade de recusa do cumprimento da obrigação principal, que assim afasta a mora. 9ª. O atraso no cumprimento (do pagamento do preço dos animais) não é imputável à R., mas antes à conduta da A. que, estando contratualmente obrigada a cumprir em primeiro lugar, efectuou a sua prestação de forma qualitativamente deficitária, conferindo àquela, desse modo, a faculdade de recusar a sua contraprestação. 10ª. A douta sentença recorrida, ao assim não julgar, contém uma interpretação incorrecta do disposto nos artºs 762º, nºs 1 e 2, 798º, 804º, nº 1 e 806º, nº 1, todos do Cód. Civil. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deverá ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue não estar a R./recorrente adstrita ao cumprimento da sua obrigação enquanto a obrigação da A. não se mostrar devidamente cumprida, assim se fazendo JUSTIÇA. A autora B…, UNIPESSOAL LDA apresentou contra-alegações, concluindo: Não pode proceder o presente recurso porquanto a Recorrente não sustentou a sua pretensão. Desde logo, não existe qualquer fundamento para o não cumprimento. A Recorrente encontra-se em mora e é apenas a si imputável. Não há qualquer prova de que algum dos animais vendidos se encontrava infetado. Em momento algum o Recorrido aceitou a existência da doença em qualquer animal vendido. Ficou provado, apenas, a presença do vírus na exploração, mas não em que animal em específico ou qual o foco da mesma. O incumprimento da obrigação do pagamento do preço é anterior à deteção do vírus na exploração. Não foi provada que tivessem sequer sido os animais em causa a levar o vírus para a exploração. Os animais cumpriam todos os requisitos legais para a venda. A Recorrente não exigiu qualquer análise adicional, nem teve qualquer precaução para despistar a doença. A única precaução foi o despiste através da ordenha e que deu negativa, segundo a prova produzida na audiência de discussão e julgamento. Nestes termos e nos melhores de direito que V/Exas. Doutamente suprirão, deverá ser a decisão de condenação da Recorrente mantida, fazendo-se assim a acostumada JUSTIÇA. Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal. Assim, a questão a resolver consiste em saber se à recorrente é lícito recusar a sua contraprestação II – Fundamentação de facto O tribunal recorrido considerou: A) Os factos provados1. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de animais vivos. 2. A Requerente forneceu à Requerida, com atividade aberta para a criação de bovinos e produção de leite, 7 bovinos em gestação para produção de leite para a sua exploração. 3. A entrega ocorreu a 6 de Agosto de 2018, tendo o valor da venda sido fixado em 7.049,00€ (sete mil e quarenta e nove euros). 4. Os animais – analisados segundo as exigências da Direção Geral de Alimentação e Veterinária – têm as marcas auriculares PT…….., PT…….., PT …….., PT…….., PT…….., PT………, PT……... 5. Na mesma data a Requerente adquiriu um animal à Requerida pelo valor de 669,00€ (seiscentos e sessenta e nove euros) tendo feito por isso compensação no valor em dívida pela Requerida. 6. Em 18.11.2018 foi feita pela Requerida uma transferência bancária no valor de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros). 7. De entre os animais vendidos, um deles estava contaminado com um vírus que provoca a doença denominada diarreia viral bovina (BVD) e contaminou animais da mesma exploração da Requerida, cujo número não se apurou. 8. Tal doença pode ocasionar nos restantes animais sintomas reprodutivos, como abortos, natimortos, má formação fetal e absorção embrionária. 9. A Requerida comunicou a doença à Requerente que a reconheceu. B) Factos Não Provados: 1. Face às características dessa doença, o animal em causa foi abatido logo que as análises clínicas feitas regularmente revelaram ser portador dessa doença, 2. A Requerente aceitou que, antes de se proceder a mais pagamentos se iria aguardar pela possibilidade clínica de se apurar em definitivo os impactos negativos nos demais animais contaminados para que se procedesse à redução do preço da venda através da compensação com o valor dos prejuízos. 3. A exploração da qual são provenientes os animais era uma exploração onde não entravam animais, apenas eram vendidos, e os mesmos encontravam-se vacinados contra esta doença. III - Fundamentação de direitoAlega a recorrente que da matéria fática apurada (ponto 7.) verifica-se que dos animais que lhe foram fornecidos pela autora/recorrida um deles vinha infectado com uma enfermidade denominada diarreia viral bovina (BVD); que comunicou a situação de doença do animal à autora/recorrida, o que foi reconhecido por esta e que essa doença contaminou um número não apurado de bovinos da exploração da R. (ponto 8). Conclui que perante que esta prestação viciada ou incompleta tem o direito de recusar a sua prestação até que o mal seja remediado. Que lhe é legítimo recusar o cumprimento da obrigação principal, atenta a bilateralidade das obrigações contraídas pelas partes, enquanto a autora/recorrida não cumprir integralmente a sua obrigação, independentemente de não ter resultado provado qualquer acordo entre as partes quanto ao protelamento do pagamento do preço. Atentemos. A disciplina prevista nos artigos 913º e ss. do C. Civil está moldada no regime do erro e do dolo e na sanção da anulabilidade, só podendo o comprador ser indemnizado pelos danos emergentes (e nunca pelos lucros cessantes) e não podendo ser indemnizado sequer dos danos emergentes quando o vendedor desconhecesse sem culpa o vicio ou a falta de qualidade de que a coisa padecia (artigos 909º, 915º e 914º). Dada esta limitação a doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender que nestes casos o comprador pode lançar mão deste regime da venda de coisa defeituosa, anulando o contrato (ou reduzindo o preço a pagar em casos específicos) e sendo indemnizado em função daqueles referidos parâmetros restritivos, mas também pode optar, desde logo, pela resolução contratual por se tratar de um contrato bilateral incumprido pela contraparte (artigos 432º e ss.) Os efeitos resolutivos assemelham-se aos da anulação (artigos 433º e 289º); simplesmente o âmbito indemnizatório é aqui mais vasto porque é determinado pelo interesse contratual negativo (ou seja, em função dos danos que o credor não teria se não tivesse outorgado o contrato) sem as limitações legais que o regime específico de venda de coisa defeituosa impõe ao credor - comprador. Com efeito, se a prestação incide sobre coisa que tem que ser entregue, o vício da coisa acarreta inelutavelmente a deficiência da prestação que jamais poderá conformar-se com o que negocialmente se clausulou. Se a coisa a prestar tem vício que a impede de satisfazer o interesse a que se destina, o que verdadeiramente existe é um incumprimento ou um cumprimento defeituoso porque a prestação a isso destinada está inquinada ab initio por força do vício da coisa que a contagia. Esta posição tem tido eco na hodierna legislação de transposição de directivas comunitárias, como por exemplo o D.L. nº 67/03 de 8/4 que transpõe a directiva nº 1999/44/CE, como se refere no acórdão do STJ de 04-11-2004, Proc. 04B086 in www.dgsi.pt. Se não se divisasse esta solução poderíamos embarcar, no caso em que se trata de venda de animais defeituosos, numa situação estranhíssima de total ausência de direito que se passa a explicar. O artigo 920º, respeitante à venda de animais defeituosos, ressalva a aplicação das “leis especiais ou, na falta destas, os usos sobre a venda de animais defeituosos.” E a lei especial contém-se no vetusto mas não revogado Decreto de 16.12.1886, sendo controversa na doutrina a aplicação supletiva das normas gerais relativas à compra e venda de coisa defeituosa. António Pinto Monteiro, Agostinho Cardoso Guedes - Venda de animal defeituoso: parecer - Colectânea de Jurisprudência. ISSN 0870-7979. Ano XIX, tomo 5 (1994), p. 5V-V11, defendem que os artigos 913º e ss. do C. Civil constituem um regime especial com conotações objectivas e características particulares que o afastam decisivamente do regime geral do erro e do dolo. Que com a ressalva contida no artigo 920º do Código Civil pretendeu o legislador subtrair ao domínio de aplicação dos artigos 913º e ss. do Código Civil a venda de animais defeituosos, mantendo esta questão na alçada do Decreto de 16 de Dezembro de 1886, o qual, além de enumerar os vícios juridicamente relevantes, altera também o regime da denúncia, impondo sobre o comprador o ónus de requerer, dentro de 10 dias completos, um exame ou vistoria de peritos, para se averiguar a existência do facto de onde o mesmo comprador deduz o seu direito. Que o artigo 920º opera uma remissão para as normas especiais sem retorno para as normas gerais como faz o Código Italiano Que assim, ou o defeito do animal cabe na enumeração do artigo 49º do Decreto de 16 de Dezembro de 1886, e a tutela dos compradores resume-se à dos artigos 50 º e ss. do mesmo Decreto; ou o defeito não cabe nessa enumeração e é então juridicamente irrelevante. Que este Decreto de 1886 configura os vícios redibitórios como uma situação de incumprimento e, assim, aceita implicitamente que a declaração de compra dos compradores não designa a coisa em si, mas a coisa como deve ser; com todas as qualidades e sem vícios, ou seja, o contrato vale com o sentido que os compradores lhe atribuíram, o contrato confere aos compradores o direito a uma coisa sem vícios ou ausência de qualidades, não podendo, portanto, invocar-se qualquer erro. Que a entender-se que que a regulação do Decreto de 16 de Dezembro de 1886 é incompleta careceria de ser coadjuvada não pelas normas dos artigos 913º e ss., mas antes pela normas gerais que regulam o erro sobre os motivos e o dolo. Mas este regime geral não se aplica porque se previu um regime especialíssimo. Ultrapassada esta problemática pela postura que acima se adoptou, podemos assentar em que o caso em análise configura um cumprimento defeituoso, o que equivale ao cumprimento inexacto ou imperfeito, acarretando a desconformidade entre a prestação devida e a realizada, a insatisfação do interesse do credor, e por isso traduz-se essencialmente numa “perturbação na equivalências das prestações”. – Vide Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Vol I, 5ª edição pág. 133. Uma das consequências do incumprimento defeituoso em que a culpa do devedor se presume, nos termos do disposto no artigo 799º, nº 1 do C.Civil, é torná-lo responsável pelo prejuízo que causa ao credor – artigo 798º - devendo esta responsabilidade ser entendida em sentido amplo, abrangendo não só o dever de indemnizar, mas o direito à rectificação do defeito ou à redução da contraprestação. Assim, o credor pode exigir a eliminação do defeito, e, no aso dessa eliminação não ser possível, a substituição da coisa. Nesta direcção a recorrente pretende socorrer-se da excepção do não cumprimento. Esta encontra-se definida no artigo 428°, n°1 do Código Civil: “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”. Quer dizer, ao autor que exige o cumprimento, opõe o réu o princípio substantivo do cumprimento simultâneo próprio dos contratos sinalagmáticos, em que a prestação de uma das partes tem a sua causa na prestação da outra. O excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento, apenas recusa a sua prestação até à realização da contraprestação pela outra parte, que se encontra assim numa situação de não ter ainda realizado uma prestação quando já o devia ter feito, ou seja, numa situação de incumprimento da sua obrigação. A excepção do não cumprimento aplica-se, em regra, quando não estejam fixados prazos diferentes para as prestações. Porém, mesmo estando o cumprimento das obrigações sujeito a prazos diferentes, poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro. - v.g. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 381; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª edição, pág.319. De notar que esta excepção opera independentemente de a inexecução ser ou não imputável ao devedor, isto é, tanto pode o mesmo constituir-se em mora (cf. art.º 804º, n.º 2) como não. Também é um meio de defesa que pode ser validamente exercido por qualquer um dos sujeitos, quando a contraparte apenas cumprir ou lhe oferecer o cumprimento em termos parciais ou defeituosos. Trata-se da denominada exceptio non rite adimpleti contractus, a qual confere ao demandado a possibilidade de recusar a sua prestação enquanto a outra não for completada ou rectificada. Em suma, se o contraente que tiver de cumprir primeiro oferecer uma prestação parcial ou defeituosa, a contraparte pode opor-se e recusar a sua prestação até que aquela seja oferecida por inteiro ou até que sejam eliminados os defeitos ou substituída a prestação. De salientar que, como já se viu, o credor tem direito a ser indemnizado pelos danos que a prestação defeituosa lhe tenha causado. Estes danos podem apresentar duas facetas: os danos do “defeito”, (próximos), e os subsequentes, falando-se a propósito dos primeiros, em danos circa rem e a propósito dos segundos em danos extra rem. Nestes incluem-se os danos pessoais sofridos pelo credor e os ocasionados no seu restante património, inserindo-se nestes os causados na pessoa ou no património de terceiros que o credor tenha tido de indemnizar. Nos danos circa rem incluem-se “os prejuízos decorrentes da diminuição ou perda do valor da coisa, os custos contratuais, o valor da eliminação dos defeitos quando excepcionalmente feita pelo credor, o montante despendido em estudos, pareceres, etc, a diferença de preço que o credor teve de suportar para adquirir um bem substitutivo, os lucros cessantes, bem como outras despesas derivadas do incumprimento.” Apenas a indemnização por danos circa rem legitima o recurso à excepção ao não cumprimento do contrato pois esta excepção “só se justifica com respeito a obrigações que se encontrem entre si numa relação sinalagmática e a indemnização por danos extra rem, sendo delitual, não se pode considerar como correspectiva do pagamento do preço”.- Vide Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, pág. 139 e ss. No caso, a recorrente diz e está provado que logo que conheceu a doença de um dos bovinos que lhe foram vendidos pela requerida, de imediato comunicou a esta, a qual reconheceu a doença pelas análises clínicas realizadas. Também diz, mas tal não está provado, que a recorrida aceitou que se iria aguardar pela possibilidade clínica de se apurar em definitivo os impactos negativos nos demais animais contaminados para que, então e só após isso, se procedesse à redução do preço da venda através da compensação com o valor dos prejuízos que nessa altura fosse possível apurar. Que ficou, assim, acordado que o valor facturado necessitava de ulterior liquidação do crédito da requerida relativo aos danos sofridos, para então se apurar se existiria saldo credor a favor da requerente e qual o seu efectivo montante ou, inclusive, se seria a requerente devedora da requerida. Se não provou este acordo, o que importa apurar é se, perante a factualidade dada como provada, à recorrente é lícito sustar o pagamento do preço em falta e em que termos o pode fazer. E cumpre aqui deixar claro que o credor só pode lançar mão da excepção do não cumprimento do contrato depois de tornar o devedor ciente da pretensão ou pretensões a que está adstrito. Sendo o caso de cumprimento parcial ou defeituoso, o que se poderá aqui ajustar é a exceptio non rite adimpleti contractus, a qual confere ao demandado a possibilidade de recusar a sua prestação enquanto a outra não for completada ou rectificada. Convém então perceber o que será no caso a prestação completada ou rectificada, o que implica atentar nos caracterizados danos circa rem. Estes danos são, como se viu, os danos do “defeito”, ou seja, os prejuízos decorrentes da diminuição ou perda do valor da coisa. No caso podem corresponder apenas ao prejuízo que adveio para a recorrente com a perda de um dos bovinos ou também com outros vendidos que estejam infectados e que não possam cumprir as funcionalidades a que se destinam: produção de leite para a sua exploração. Já os prejuízos provenientes de uma contaminação da doença ao restante gado da recorrente que não faz parte do lote de venda podem representar danos extra rem e integrar responsabilidade extra contratual, não podendo, deste modo, contar para determinar a prestação completada ou rectificada. Todo este circunstancialismo fático subjacente á invocada excepção do cumprimento inexacto do contrato competia ter sido alegado e provado pela recorrente. Se a recorrente se queria prevalecer desta excepção material para suster a sua prestação, obviamente que tinha de precisar a existência e a medida da inexactidão do incumprimento. Convém não esquecer o estatuído no artigo 762º, nº2 do C. Civil, ou seja, que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé. Este princípio da boa-fé terá de conformar a apreciação da existência da excepção apresentada, já que será das circunstâncias concretas que se poderá ponderar a gravidade do cumprimento incompleto ou defeituoso. E impõem-se regras de adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício de uma excepção, entre essa falta e a recusa do excipiente. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág.381, só é razoável a recusa quando a mesma se torne necessária para garantir o direito do excipiens. Coerentemente, o que se observa é que não se mostram verificados os pressupostos fácticos da excepção em que a recorrente se escuda. Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida com a fundamentação enunciada. Custas pela apelante Porto, 24 de Novembro de 2019 Atesta-se que o presente acórdão tem voto de concordância do Exmº Desembargador Adjunto José Carvalho, nos termos do disposto no artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13/3, na redacção introduzida pelo artigo 3º do DL 20/2020, de 1/5. Ana Lucinda Cabral Maria do Carmo Domingues
Proc. nº 35976/19.5YIPRT.P1Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim - Juiz 2Acordam no Tribunal da Relação do PortoI – RelatórioB…, Unipessoal, Lda, pessoa colectiva nº ………., com sede no Largo…, .., …, Vila do Conde, intentou a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor inferior à alçada do Tribunal de 2ª instância, subsequente a injunção, pedindo a sua condenação no pagamento do valor de 4.880,00€, a título de capital em dívida, do valor de 291,96€, a título de juros de mora vencidos, do valor de 102,00€, a título de taxa de justiça paga e de 102,00€, a título de outras quantias devidas, bem ainda como de juros de mora vincendos. Alegou, para tanto, em suma, que, no âmbito da sua actividade de comercialização de animais vendeu à Ré 7 animais bovinos, no valor total de 7.049,00€, encontrando-se em divida o valor peticionado. Regularmente notificada a Requerida deduziu oposição reconhecendo o contrato celebrado com a Requerente, mas invocou que um dos animais vendidos padecia de doença contagiosa tendo de ser abatido. Mais invocou que o referido animal contagiou outros animais não tendo sido possível, até à data, apurar os danos sofridos. Assim, alega que acordou com a suspensão do pagamento até se apurar qual dos créditos é superior por forma a proceder á compensação. Pronunciou-se a Requerente pela improcedência da oposição. Foi realizada audiência de discussão e julgamento com estrita observância do formalismo legal e proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e em consequência, a condenar a requerida a pagar à requerente a quantia de 5.030,17€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos sobre a quantia de 4.880,00€, desde 18.11.2018 até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de 8% e às taxas que se vierem a fixar para os juros comerciais. A ré C… interpôs recurso, concluindo: 1ª. Na sentença recorrida ficou provado que um dos bovinos fornecidos pela A. à R. estava infetado com uma enfermidade denominada “diarreia viral bovina (BVD)”, doença que acabou por se transmitir a animais da exploração da R. 2ª. Conforme resulta da factualidade provada, a subsunção da mesma ao Direito está, salvo melhor opinião, concretizada de forma incorrecta, uma vez que tal matéria se enquadra não apenas no regime da venda de coisa defeituosa mas também no do cumprimento defeituoso da obrigação. 3ª. Resulta da função normal das coisas da mesma categoria em causa nos autos, que os animais vendidos pela A. deveriam ser saudáveis e não padecer de nenhuma doença que impedisse o normal objectivo inerente à compra e venda de animais bovinos, quais sejam a produção de carne para consumo ou a produção de leite e, num caso ou noutro, a ausência de doenças que atentem contra a vida e saúde do próprio animal e dos demais animais do grupo e local em que o mesmo irá ser integrado. 4ª. Não possuindo a mercadoria vendida as qualidades asseguradas, não haverá apenas uma venda de coisa defeituosa mas também cumprimento defeituoso da obrigação, pois que o vendedor não realizou a prestação a que, por força do contrato e da função normal do objecto da venda, se encontrava adstrito. 5ª. Estando, no caso dos autos, perante uma situação de cumprimento defeituoso da obrigação, já que a prestação realizada pelo A. não corresponde, pela falta das suas qualidades, ao objeto da obrigação a que se vinculara, para a A. ter direito ao pagamento do preço dos animais não bastava que se limitasse a fazer a entrega do número encomendado, impunha-se ainda que eles tivessem a qualidade devida e não padecessem de doença. 6ª. Verifica-se da matéria fática apurada (ponto 7.) que, dos animais fornecidos pela A. à R., um deles vinha infetado com uma enfermidade denominada diarreia viral bovina (BVD); que a R. comunicou a situação de doença do animal à A., que a reconheceu (ponto 9), sendo ainda certo que essa doença contaminou um número não apurado de bovinos da exploração da R. (ponto 8). 7ª. Perante uma prestação viciada ou incompleta, a contraparte pode recusar a sua prestação até que o mal seja remediado, pelo que, face à factualidade apurada nos autos, especialmente nos pontos 7, 8 e 9 dos factos provados, é legítimo à R./recorrente recusar o cumprimento da obrigação principal, atenta a bilateralidade das obrigações contraídas pelas partes, enquanto a A. não cumprir integralmente a sua obrigação, independentemente de não ter resultado provado qualquer acordo entre as partes quanto ao protelamento do pagamento do preço por parte da R.. 8ª. Face ao direito que cabe à R./recorrente de recusar o cumprimento da sua obrigação enquanto a obrigação da A. não for devidamente cumprida, não existe mora na obrigação de pagamento do preço, pelo que também não está obrigada ao pagamento dos juros peticionados na acção, atenta a legitimidade de recusa do cumprimento da obrigação principal, que assim afasta a mora. 9ª. O atraso no cumprimento (do pagamento do preço dos animais) não é imputável à R., mas antes à conduta da A. que, estando contratualmente obrigada a cumprir em primeiro lugar, efectuou a sua prestação de forma qualitativamente deficitária, conferindo àquela, desse modo, a faculdade de recusar a sua contraprestação. 10ª. A douta sentença recorrida, ao assim não julgar, contém uma interpretação incorrecta do disposto nos artºs 762º, nºs 1 e 2, 798º, 804º, nº 1 e 806º, nº 1, todos do Cód. Civil. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deverá ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue não estar a R./recorrente adstrita ao cumprimento da sua obrigação enquanto a obrigação da A. não se mostrar devidamente cumprida, assim se fazendo JUSTIÇA. A autora B…, UNIPESSOAL LDA apresentou contra-alegações, concluindo: Não pode proceder o presente recurso porquanto a Recorrente não sustentou a sua pretensão. Desde logo, não existe qualquer fundamento para o não cumprimento. A Recorrente encontra-se em mora e é apenas a si imputável. Não há qualquer prova de que algum dos animais vendidos se encontrava infetado. Em momento algum o Recorrido aceitou a existência da doença em qualquer animal vendido. Ficou provado, apenas, a presença do vírus na exploração, mas não em que animal em específico ou qual o foco da mesma. O incumprimento da obrigação do pagamento do preço é anterior à deteção do vírus na exploração. Não foi provada que tivessem sequer sido os animais em causa a levar o vírus para a exploração. Os animais cumpriam todos os requisitos legais para a venda. A Recorrente não exigiu qualquer análise adicional, nem teve qualquer precaução para despistar a doença. A única precaução foi o despiste através da ordenha e que deu negativa, segundo a prova produzida na audiência de discussão e julgamento. Nestes termos e nos melhores de direito que V/Exas. Doutamente suprirão, deverá ser a decisão de condenação da Recorrente mantida, fazendo-se assim a acostumada JUSTIÇA. Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal. Assim, a questão a resolver consiste em saber se à recorrente é lícito recusar a sua contraprestação II – Fundamentação de facto O tribunal recorrido considerou: A) Os factos provados1. A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de animais vivos. 2. A Requerente forneceu à Requerida, com atividade aberta para a criação de bovinos e produção de leite, 7 bovinos em gestação para produção de leite para a sua exploração. 3. A entrega ocorreu a 6 de Agosto de 2018, tendo o valor da venda sido fixado em 7.049,00€ (sete mil e quarenta e nove euros). 4. Os animais – analisados segundo as exigências da Direção Geral de Alimentação e Veterinária – têm as marcas auriculares PT…….., PT…….., PT …….., PT…….., PT…….., PT………, PT……... 5. Na mesma data a Requerente adquiriu um animal à Requerida pelo valor de 669,00€ (seiscentos e sessenta e nove euros) tendo feito por isso compensação no valor em dívida pela Requerida. 6. Em 18.11.2018 foi feita pela Requerida uma transferência bancária no valor de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros). 7. De entre os animais vendidos, um deles estava contaminado com um vírus que provoca a doença denominada diarreia viral bovina (BVD) e contaminou animais da mesma exploração da Requerida, cujo número não se apurou. 8. Tal doença pode ocasionar nos restantes animais sintomas reprodutivos, como abortos, natimortos, má formação fetal e absorção embrionária. 9. A Requerida comunicou a doença à Requerente que a reconheceu. B) Factos Não Provados: 1. Face às características dessa doença, o animal em causa foi abatido logo que as análises clínicas feitas regularmente revelaram ser portador dessa doença, 2. A Requerente aceitou que, antes de se proceder a mais pagamentos se iria aguardar pela possibilidade clínica de se apurar em definitivo os impactos negativos nos demais animais contaminados para que se procedesse à redução do preço da venda através da compensação com o valor dos prejuízos. 3. A exploração da qual são provenientes os animais era uma exploração onde não entravam animais, apenas eram vendidos, e os mesmos encontravam-se vacinados contra esta doença. III - Fundamentação de direitoAlega a recorrente que da matéria fática apurada (ponto 7.) verifica-se que dos animais que lhe foram fornecidos pela autora/recorrida um deles vinha infectado com uma enfermidade denominada diarreia viral bovina (BVD); que comunicou a situação de doença do animal à autora/recorrida, o que foi reconhecido por esta e que essa doença contaminou um número não apurado de bovinos da exploração da R. (ponto 8). Conclui que perante que esta prestação viciada ou incompleta tem o direito de recusar a sua prestação até que o mal seja remediado. Que lhe é legítimo recusar o cumprimento da obrigação principal, atenta a bilateralidade das obrigações contraídas pelas partes, enquanto a autora/recorrida não cumprir integralmente a sua obrigação, independentemente de não ter resultado provado qualquer acordo entre as partes quanto ao protelamento do pagamento do preço. Atentemos. A disciplina prevista nos artigos 913º e ss. do C. Civil está moldada no regime do erro e do dolo e na sanção da anulabilidade, só podendo o comprador ser indemnizado pelos danos emergentes (e nunca pelos lucros cessantes) e não podendo ser indemnizado sequer dos danos emergentes quando o vendedor desconhecesse sem culpa o vicio ou a falta de qualidade de que a coisa padecia (artigos 909º, 915º e 914º). Dada esta limitação a doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender que nestes casos o comprador pode lançar mão deste regime da venda de coisa defeituosa, anulando o contrato (ou reduzindo o preço a pagar em casos específicos) e sendo indemnizado em função daqueles referidos parâmetros restritivos, mas também pode optar, desde logo, pela resolução contratual por se tratar de um contrato bilateral incumprido pela contraparte (artigos 432º e ss.) Os efeitos resolutivos assemelham-se aos da anulação (artigos 433º e 289º); simplesmente o âmbito indemnizatório é aqui mais vasto porque é determinado pelo interesse contratual negativo (ou seja, em função dos danos que o credor não teria se não tivesse outorgado o contrato) sem as limitações legais que o regime específico de venda de coisa defeituosa impõe ao credor - comprador. Com efeito, se a prestação incide sobre coisa que tem que ser entregue, o vício da coisa acarreta inelutavelmente a deficiência da prestação que jamais poderá conformar-se com o que negocialmente se clausulou. Se a coisa a prestar tem vício que a impede de satisfazer o interesse a que se destina, o que verdadeiramente existe é um incumprimento ou um cumprimento defeituoso porque a prestação a isso destinada está inquinada ab initio por força do vício da coisa que a contagia. Esta posição tem tido eco na hodierna legislação de transposição de directivas comunitárias, como por exemplo o D.L. nº 67/03 de 8/4 que transpõe a directiva nº 1999/44/CE, como se refere no acórdão do STJ de 04-11-2004, Proc. 04B086 in www.dgsi.pt. Se não se divisasse esta solução poderíamos embarcar, no caso em que se trata de venda de animais defeituosos, numa situação estranhíssima de total ausência de direito que se passa a explicar. O artigo 920º, respeitante à venda de animais defeituosos, ressalva a aplicação das “leis especiais ou, na falta destas, os usos sobre a venda de animais defeituosos.” E a lei especial contém-se no vetusto mas não revogado Decreto de 16.12.1886, sendo controversa na doutrina a aplicação supletiva das normas gerais relativas à compra e venda de coisa defeituosa. António Pinto Monteiro, Agostinho Cardoso Guedes - Venda de animal defeituoso: parecer - Colectânea de Jurisprudência. ISSN 0870-7979. Ano XIX, tomo 5 (1994), p. 5V-V11, defendem que os artigos 913º e ss. do C. Civil constituem um regime especial com conotações objectivas e características particulares que o afastam decisivamente do regime geral do erro e do dolo. Que com a ressalva contida no artigo 920º do Código Civil pretendeu o legislador subtrair ao domínio de aplicação dos artigos 913º e ss. do Código Civil a venda de animais defeituosos, mantendo esta questão na alçada do Decreto de 16 de Dezembro de 1886, o qual, além de enumerar os vícios juridicamente relevantes, altera também o regime da denúncia, impondo sobre o comprador o ónus de requerer, dentro de 10 dias completos, um exame ou vistoria de peritos, para se averiguar a existência do facto de onde o mesmo comprador deduz o seu direito. Que o artigo 920º opera uma remissão para as normas especiais sem retorno para as normas gerais como faz o Código Italiano Que assim, ou o defeito do animal cabe na enumeração do artigo 49º do Decreto de 16 de Dezembro de 1886, e a tutela dos compradores resume-se à dos artigos 50 º e ss. do mesmo Decreto; ou o defeito não cabe nessa enumeração e é então juridicamente irrelevante. Que este Decreto de 1886 configura os vícios redibitórios como uma situação de incumprimento e, assim, aceita implicitamente que a declaração de compra dos compradores não designa a coisa em si, mas a coisa como deve ser; com todas as qualidades e sem vícios, ou seja, o contrato vale com o sentido que os compradores lhe atribuíram, o contrato confere aos compradores o direito a uma coisa sem vícios ou ausência de qualidades, não podendo, portanto, invocar-se qualquer erro. Que a entender-se que que a regulação do Decreto de 16 de Dezembro de 1886 é incompleta careceria de ser coadjuvada não pelas normas dos artigos 913º e ss., mas antes pela normas gerais que regulam o erro sobre os motivos e o dolo. Mas este regime geral não se aplica porque se previu um regime especialíssimo. Ultrapassada esta problemática pela postura que acima se adoptou, podemos assentar em que o caso em análise configura um cumprimento defeituoso, o que equivale ao cumprimento inexacto ou imperfeito, acarretando a desconformidade entre a prestação devida e a realizada, a insatisfação do interesse do credor, e por isso traduz-se essencialmente numa “perturbação na equivalências das prestações”. – Vide Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Vol I, 5ª edição pág. 133. Uma das consequências do incumprimento defeituoso em que a culpa do devedor se presume, nos termos do disposto no artigo 799º, nº 1 do C.Civil, é torná-lo responsável pelo prejuízo que causa ao credor – artigo 798º - devendo esta responsabilidade ser entendida em sentido amplo, abrangendo não só o dever de indemnizar, mas o direito à rectificação do defeito ou à redução da contraprestação. Assim, o credor pode exigir a eliminação do defeito, e, no aso dessa eliminação não ser possível, a substituição da coisa. Nesta direcção a recorrente pretende socorrer-se da excepção do não cumprimento. Esta encontra-se definida no artigo 428°, n°1 do Código Civil: “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”. Quer dizer, ao autor que exige o cumprimento, opõe o réu o princípio substantivo do cumprimento simultâneo próprio dos contratos sinalagmáticos, em que a prestação de uma das partes tem a sua causa na prestação da outra. O excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento, apenas recusa a sua prestação até à realização da contraprestação pela outra parte, que se encontra assim numa situação de não ter ainda realizado uma prestação quando já o devia ter feito, ou seja, numa situação de incumprimento da sua obrigação. A excepção do não cumprimento aplica-se, em regra, quando não estejam fixados prazos diferentes para as prestações. Porém, mesmo estando o cumprimento das obrigações sujeito a prazos diferentes, poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro. - v.g. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 381; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª edição, pág.319. De notar que esta excepção opera independentemente de a inexecução ser ou não imputável ao devedor, isto é, tanto pode o mesmo constituir-se em mora (cf. art.º 804º, n.º 2) como não. Também é um meio de defesa que pode ser validamente exercido por qualquer um dos sujeitos, quando a contraparte apenas cumprir ou lhe oferecer o cumprimento em termos parciais ou defeituosos. Trata-se da denominada exceptio non rite adimpleti contractus, a qual confere ao demandado a possibilidade de recusar a sua prestação enquanto a outra não for completada ou rectificada. Em suma, se o contraente que tiver de cumprir primeiro oferecer uma prestação parcial ou defeituosa, a contraparte pode opor-se e recusar a sua prestação até que aquela seja oferecida por inteiro ou até que sejam eliminados os defeitos ou substituída a prestação. De salientar que, como já se viu, o credor tem direito a ser indemnizado pelos danos que a prestação defeituosa lhe tenha causado. Estes danos podem apresentar duas facetas: os danos do “defeito”, (próximos), e os subsequentes, falando-se a propósito dos primeiros, em danos circa rem e a propósito dos segundos em danos extra rem. Nestes incluem-se os danos pessoais sofridos pelo credor e os ocasionados no seu restante património, inserindo-se nestes os causados na pessoa ou no património de terceiros que o credor tenha tido de indemnizar. Nos danos circa rem incluem-se “os prejuízos decorrentes da diminuição ou perda do valor da coisa, os custos contratuais, o valor da eliminação dos defeitos quando excepcionalmente feita pelo credor, o montante despendido em estudos, pareceres, etc, a diferença de preço que o credor teve de suportar para adquirir um bem substitutivo, os lucros cessantes, bem como outras despesas derivadas do incumprimento.” Apenas a indemnização por danos circa rem legitima o recurso à excepção ao não cumprimento do contrato pois esta excepção “só se justifica com respeito a obrigações que se encontrem entre si numa relação sinalagmática e a indemnização por danos extra rem, sendo delitual, não se pode considerar como correspectiva do pagamento do preço”.- Vide Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, pág. 139 e ss. No caso, a recorrente diz e está provado que logo que conheceu a doença de um dos bovinos que lhe foram vendidos pela requerida, de imediato comunicou a esta, a qual reconheceu a doença pelas análises clínicas realizadas. Também diz, mas tal não está provado, que a recorrida aceitou que se iria aguardar pela possibilidade clínica de se apurar em definitivo os impactos negativos nos demais animais contaminados para que, então e só após isso, se procedesse à redução do preço da venda através da compensação com o valor dos prejuízos que nessa altura fosse possível apurar. Que ficou, assim, acordado que o valor facturado necessitava de ulterior liquidação do crédito da requerida relativo aos danos sofridos, para então se apurar se existiria saldo credor a favor da requerente e qual o seu efectivo montante ou, inclusive, se seria a requerente devedora da requerida. Se não provou este acordo, o que importa apurar é se, perante a factualidade dada como provada, à recorrente é lícito sustar o pagamento do preço em falta e em que termos o pode fazer. E cumpre aqui deixar claro que o credor só pode lançar mão da excepção do não cumprimento do contrato depois de tornar o devedor ciente da pretensão ou pretensões a que está adstrito. Sendo o caso de cumprimento parcial ou defeituoso, o que se poderá aqui ajustar é a exceptio non rite adimpleti contractus, a qual confere ao demandado a possibilidade de recusar a sua prestação enquanto a outra não for completada ou rectificada. Convém então perceber o que será no caso a prestação completada ou rectificada, o que implica atentar nos caracterizados danos circa rem. Estes danos são, como se viu, os danos do “defeito”, ou seja, os prejuízos decorrentes da diminuição ou perda do valor da coisa. No caso podem corresponder apenas ao prejuízo que adveio para a recorrente com a perda de um dos bovinos ou também com outros vendidos que estejam infectados e que não possam cumprir as funcionalidades a que se destinam: produção de leite para a sua exploração. Já os prejuízos provenientes de uma contaminação da doença ao restante gado da recorrente que não faz parte do lote de venda podem representar danos extra rem e integrar responsabilidade extra contratual, não podendo, deste modo, contar para determinar a prestação completada ou rectificada. Todo este circunstancialismo fático subjacente á invocada excepção do cumprimento inexacto do contrato competia ter sido alegado e provado pela recorrente. Se a recorrente se queria prevalecer desta excepção material para suster a sua prestação, obviamente que tinha de precisar a existência e a medida da inexactidão do incumprimento. Convém não esquecer o estatuído no artigo 762º, nº2 do C. Civil, ou seja, que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé. Este princípio da boa-fé terá de conformar a apreciação da existência da excepção apresentada, já que será das circunstâncias concretas que se poderá ponderar a gravidade do cumprimento incompleto ou defeituoso. E impõem-se regras de adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício de uma excepção, entre essa falta e a recusa do excipiente. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág.381, só é razoável a recusa quando a mesma se torne necessária para garantir o direito do excipiens. Coerentemente, o que se observa é que não se mostram verificados os pressupostos fácticos da excepção em que a recorrente se escuda. Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida com a fundamentação enunciada. Custas pela apelante Porto, 24 de Novembro de 2019 Atesta-se que o presente acórdão tem voto de concordância do Exmº Desembargador Adjunto José Carvalho, nos termos do disposto no artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13/3, na redacção introduzida pelo artigo 3º do DL 20/2020, de 1/5. Ana Lucinda Cabral Maria do Carmo Domingues