I – Aferindo os critérios definidos no nº1 do art.109º do CP para pesar o perigo de lesão do instrumento e da sua nova utilização, a par da objetividade da natureza do “instrumento”, assumem particular destaque “as circunstâncias do caso”, enquanto critério que faz apelo à subjetividade do agente na funcionalidade delitual que conferiu ao bem; e ao juízo de prognose intimamente associado às exigências de prevenção especial apuradas. II – Após o trânsito da sentença pode o tribunal decretar o perdimento do instrumento do crime nos termos do art.109º do CP, dado que a norma do art.186º nº2 do CPP é meramente procedimental e ordenatória dos atos sobre os bens, nunca podendo prejudicar a apreciação tutelar prevista no art.109º do Cód. Penal, não contendo qualquer cominatório revogatório do regime substantivo previsto no art.109º do CP. III – O regime substantivo previsto no art.109º do Cód. Penal integra uma tutela preventiva muito relevante para os fins preventivos do regime sancionatório penal e o legislador com a norma do art.186º do CPP não teve a intenção de alterar o regime penal nem para isso tinha qualquer motivo relevante.” (Sumário da responsabilidade do relator)
Proc. Nº1000/19.2PRPRT-H.P1X X XAcordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: No juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em processo comum e para julgamento perante Tribunal Coletivo, a Mmª Juíza titular do processo proferiu decisão que indeferiu o pedido do Ministério Público de declaração de perdimento a favor do Estado do veículo automóvel marca Mazda, modelo …, matriculado com o n.º ..-RB-.. e que, no deferimento do pedido do arguido, determinou que tal veículo lhe fosse entregue .*Não se conformando com a decisão que não declarou a perda do veículo automóvel, o Digno Magistrado do MP veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES. 1- Vem o presente recurso interposto após a decisão condenatória proferida nos autos em 03/3/2021, relativamente ao destino dado ao veículo automóvel apreendido nos autos pertença do arguido B…, perante o seu requerimento de entrega, o que lhe foi concedido; 2- Decisão essa com a qual se não concorda! 3- Em jeito de questão prévia, é para nós incompreensível que o Tribunal Coletivo, no seu douto acórdão e não parte final, não só não tivesse mandado restituir o mesmo veículo-caso fosse esse o seu objetivo-, como determinaram que, após o seu trânsito, os autos fossem levados ao MP para que nos pronunciássemos sobre o destino a dar a esse mesmo veículo; 4- Afigurando-se que, contra a vontade do Tribunal Coletivo, a Sra. Juíza Singular e titular destes autos, decidiu em sentido oposto; 5- Tanto mais que na acusação pública o MP já se havia pronunciado pela declaração de perdimento em relação a este mesmo veículo apreendido nos autos; 6- Daí que esta decisão da singular julgadora, seja contrária a uma outra já anteriormente determinada pelo Coletivo de Juízes e transitada; 7- Pelo que se nos afigura também tratar-se de uma decisão arbitrária, por não respeitar, de todo, uma anterior decisão final coletiva; 8- Analisando esta ultima decisão singular da qual, agora, se recorre, diremos que a mesma está fundamentada com posições insertas em dois acórdãos dos Tribunais Superiores- um deles do STJ e um outro do Tribunal da Relação de Coimbra -, mas ambos de realidades diferentes, pois referem-se a situações de apreensão de veículos no âmbito da lei do trafico de droga ou estupefacientes, da previsão do artigo 35º do Decreto-Lei nº15/93, de 2/01, ou seja, dentro de uma realidade e perspetiva diversa da lei geral substantiva, prevista no artigo 109º do Código Penal; 9- Por outro lado, o citado acórdão do Supremo Tribunal, refere que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito” – cfr. Ac. STJ, de 13-12-2006, in www.dgsi.p; 10-Situação esta que não é a dos presentes autos em que os crimes praticados com este veiculo ou graças à instrumentação do mesmo, são de extrema gravidade; 11-Designadamente por se tratarem de crimes contra o património e com contornos graves de violência sobre pessoas, ou não respeitassem eles a crimes de roubo; 12- Saliente-se que o disposto no artigo 109º nº1, do Código Penal, na atual redação dada pela Lei nº130/2017, de 30/5 (não aquela redação mencionada pela Sra. Juíza no despacho de que se recorre), tem uma aplicação menos exigente em relação àquela outra redação da Lei nº45/96, de 03/9, segundo a qual, o perdimento de bem (ns) se refere especialmente a necessidade de prevenção; 13- Situação esta que no caso concreto ocorre dada a matéria que resultou provada e foi imputada a este arguido, perante os variados crimes de roubo para cuja prática o veículo apreendido e pertença do arguido foi usado como um meio fundamental e até mesmo perigo, na concretização dos mesmos; 14- Daí que no caso em apreço nos reste concluir estarem preenchidos os requisitos do preceito legal do artigo 109º nº1, do Código Penal; 15- Assim e perante o material fáctico comprovado na decisão condenatória, seja possível concluir-se como substancial a existência dos perigos de utilização do dito veículo, na prática de novos ilícitos penais- desta ou doutra natureza-, por parte do arguido; 16- Para além disso, certo é que e tal como o Supremo Tribunal se pronunciou no mencionado acórdão, sobre a necessidade da proporcionalidade de uma decisão que, em concreto e atenta a gravidade dos ilícitos penais atribuídos ao arguido (roubos) e o valor do bem apreendido, não representar qualquer desproporcionalidade ou justeza no seu perdimento; 17- Pelo que o perdimento deste veículo apreendido nos autos ao arguido e aqui requerente, deverá ser decretado; 18- Sob pena de total violação do disposto no artigo 109º nº1, do Código Penal. Porém como sempre V.as Exas. Farão justiça.*O arguido veio responder ao recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES: I. NOTIFICADAS AS PARTES DO DESPACHO DO TRIBUNAL DA COMARCADO PORTO, JUÍZO CENTRAL CRIMINAL QUE DECIDIU ENTREGAR O VEÍCULO AUTOMÓVEL APREENDIDO NOS PRESENTES AUTOS AO ARGUIDO, VEIO O MINISTÉRIO PUBLICO RECORRER. II. PARA TANTO ALEGOU VIOLAÇÃO DO ARTº109 DO CÓDIGO PENAL. III. ANDOU MAL O MINISTÉRIO PUBLICO, AO SUSTER A SUA ARGUMENTAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DO ARTº190. IV. PROCURANDO DEMONSTRAR QUE O TRIBUNAL RECORRIDO ASSENTOU A SUA ANÁLISE NA ANTIGA REDECÇÃO DO PRECEITO LEGAL. V. BEM SABENDO, QUE HÁ MUITO QUE TRANSITOU A DECISÃO QUE CONDENOU O ARGUIDO NA PENA DE PRISÃO DE 6 ANOS E 8 MESES, SEM QUE O TRIBUNAL RECORRIDO SE TIVESSE PRONUNCIADO SOBRE OS BENS APREENDIDOS. VI. O MINISTÉRIO PUBLICO TEVE CONTUDO OPORTUNIDADE DE RECORRER OU ARGUIR AQUELA OMISSÃO. VII. MAS NÃO O FEZ VIII. PORQUANTO, NÃO PODE VIR AGORA, COLOCAR EM CAUSA O DOUTO DESPACHO PROFERIDO PELO TRIBUNAL A QUO INVOCANDO A VIOLAÇÃO DO ARTº 190º DO CP. IX. POIS DETERMINA O ARTº186, NO SEU Nº2, QUE APÓS O TRANSITO EM JULGADO, A FALTA DE DETERMINAÇÃO DO FIM A DAR AOS BENS APREENDIDOS, DESDE QUE LICITOS, IMPLICA A SUA ENTREGA IMEDIATA. X. OU SEJA, OS BENS APREENDIDOS EM PROCESSO PENAL, SÓ PODEM SER DECLARADOS PERDIDOS ATÉ AO TRÂNSITO DA DECISÃO RESPECTIVA, EXCEPTO SE PELA SUA NATUREZA, ESTES NÃO POSSAM SER RESTITUÍDOS, O QUE NÃO É O CASO DE UM VEÍCULO AUTOMÓVEL. XI. ASSIM, A NÃO ENTREGA DO REFERIDO BEM, CONSUBSTANCIA UMA VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE DO ARGUIDO, CONSAGRADO NO ARTº62 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, ASSIM COMO DO ARTº186 DO CPP. XII. NESTA CONFORMIDADE, AINDA QUE COM ARGUMENTOS DIFERENTES DO DOUTO DESPACHO EMANADO PELO TRIBUNAL RECORRIDO, DEVE A DECISÃO NO MESMO PROLATADA DE RESTITUIR O VEÍCULO AUTOMÓVEL APREENDIDO, SER MANTIDA. NESTES TERMOS DEVERÁ A DECISÃO DE ENTREGAR O VEÍCULO AUTOMÓVEL, BEM APREENDIDO AO ARGUIDO, SER MANTIDA, SOB PENA DE VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE E DO ARTº 186 DO CPP, FAZENDO-SE ASSIM JUSTIÇA.*Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer.*Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito.*II. Objeto do recurso e sua apreciação. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP. É assim composto exclusivamente por matéria de Direito, atinente à aplicabilidade do instituto previsto no art.109º do Cód.Penal.*Consta da decisão recorrida os seguintes fundamentos: “B…, condenado nos presentes autos por acórdão transitado em julgado, na pena de 6 anos e 8 meses de prisão pela prática, em autoria material e concurso real de diversos crimes de roubo e um crime de furto, veio requerer a entrega do veículo de matricula ..-RB-.., sua propriedade, apreendido nos autos. O Ministério Publico opôs, uma vez que o veículo em questão foi usado na prática dos crimes que fundamentaram a condenação do arguido. Dispõe o art.º 109º, do C.P. que: São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes. Da leitura da norma evidencia-se que a perda de bens ou de objetos relacionados com o crime tem uma natureza preventiva, isto é, ela deve ocorrer sempre que aqueles bens coloquem «em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou [ofereçam] sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos». A declaração de perdimento não é, pois, automática, não bastando, a tanto, a utilização do mencionado objecto para a prática do facto ilícito. Por isso se tem considerado não como uma pena acessória, não como uma medida de segurança, apesar da sua natureza preventiva, mas como «uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança» (Figueiredo Dias). «Fala nesse sentido, por um lado, a circunstância de constituir seu pressuposto a prática de um facto ilícito-típico, em termos idênticos aos que assistem ao facto ilícito-típico como pressuposto de aplicação de uma autêntica medida de segurança não privativa da liberdade. E vai no mesmo sentido a exigência do pressuposto da perigosidade (.); e a consequente consideração da finalidade do instituto como prevenção da perigosidade.» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português (As consequências jurídicas do crime), Lisboa: Ed. Notícias/Æquitas, 1993, § 979 (p. 996); Esta perigosidade das coisas, que determina a perda de bens a favor do Estado, deve ser avaliada objetivamente, a partir da perigosidade dos bens em si, ou subjetivamente, sempre que sejam considerados perigosos tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, atenta, por exemplo, a utilização que deles se fez ou fará. Estamos, pois, perante um instituto que depende de uma perigosidade dos bens, objetiva ou subjetiva, presente ou futura, e que não depende da culpa do agente. E depende da prática de um facto típico e ilícito. No caso em apreço estamos perante um veículo automóvel utilizado pelo arguido para a prática de roubos por esticão, pelo que, está preenchida a primeira premissa do pedido de declaração de perdimento favor o Estado. Julgamos, porém, que não se verifica a segunda exigência o segundo pressuposto da norma e que se prende com a especial perigosidade do objecto. O que está em causa é determinar a essencialidade do veículo para a actividade do arguido e dentro desse quadro se o perdimento a favor do Estado é proporcional e adequado ou não. Desde logo não está estabelecido o nexo instrumental essencial entre a utilização da viatura e os roubos, não se demonstrou, de forma insofismável, a essencialidade do uso do veículo na actividade ilícita. Na verdade, o roubo por esticão não impõe a utilização de um qualquer veículo, porquanto pode ser praticado a pé. Lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Fevereiro de 2020, in www.dgsi.pt. que: “Ora, o STJ tem enveredado por uma interpretação do n.º 1 do artigo 35º de acordo com a qual “a perda dos objectos do crime só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada. Trata-se de orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto, jurisprudência que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, orientação que sufragamos, por isso, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade -artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa -, princípio que preside a toda a providência sancionatória - a significar que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito” – cfr. Ac. STJ, de 13-12-2006, in www.dgsi.pt. No caso vertente, pese embora o arguido tenha praticado os crimes enquanto conduzia aquele veículo, o que, terá facilitado a prática dos crimes, julgamos que tal viatura seja instrumento do crime, e que exista uma relação de causalidade entre a sua utilização e a prática do facto ilícito. Julgamos, ao invés que os roubos surgiram na oportunidade da deslocação do arguido, usando, usando o veículo que era sua propriedade, pois que não resultou provado que o arguido conhecesse as vitimas e/ou os seus percursos e que tivesse preparado o roubo, usando o mencionado veículo como meio e essencial à conduta. Em face do exposto, indefere-se o pedido de declaração de perdimento a favor do Estado e deferindo-se o pedido do arguido, determina-se a entrega do veículo apreendido nos autos.”* Cumpre apreciar. Importando decidir a questão suscitada no presente recurso que se resume à pretensão deduzida pelo MºPº recorrente, de ver declarado perdido a favor do Estado, nos termos do art.109 nº1 do Cód.Penal, o veículo automóvel por ter sido instrumento dos crimes de roubo cometidos pelo arguido, pela respectiva perigosidade, assim visando a revogação da decisão recorrida. Da descrição dos provados, verifica-se que o arguido reiteradamente, cometeu seis delitos de roubo (um na forma tentada e três agravados, concretamente: um crime de roubo, na forma tentada, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1, 22º e 23º, do CP. (factos de 19.09.2019); um crime de roubo, p.p. pelo art.º210º, n.º1 do CP (factos de 22.09.2019); um crime de roubo, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1, do CP (factos de 20.09.2019); um crime de roubo agravado, p.p. pelos art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), 204º, n.º 1, al. h) do CP (factos de 23.09.2019; e um crime de roubo agravado, p.p. pelos art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), 204º, n.º 1, al. h) do CP (factos de 24.09.2019); 2 um crime de roubo agravado, p.p. pelos art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), 204º, n.º 1, al. h) do CP (factos de 30.09.2019)), quatro dos quais sempre com recurso ao veículo em andamento e um dos quais servindo-se do veículo para se colocar de imediato em fuga, assim incrementando a eficácia do “roubo por esticão”, aliás, deve sublinhar-se que, no centro da conduta delitual do arguido, está precisamente o uso do veículo, circunstância que potenciou os danos sofridos em três vítimas arrastadas pelo veiculo em andamento, padecendo lesões relevantes. Aferindo os critérios definidos no nº1 do art.109º do CP para pesar o perigo de lesão e de nova utilização do instrumento, onde a par da objetividade da natureza do “instrumento”, assumem particular destaque “as circunstâncias do caso”, enquanto critério que faz apelo à subjetividade do agente na funcionalidade delitual que conferiu ao bem; e ao juízo de prognose intimamente associado às exigências de prevenção especial apuradas. Cabe verificar se o automóvel, como instrumento do facto ilícito típico, oferece sério risco de vir novamente usado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos. A sanção em análise, não sendo uma pena acessória (porque não tem relação com a culpa do agente), tem proximidades com a medida de segurança, sem o ser (dado que não se dirige ao agente, mas ao instrumento [embora a perigosidade deste dependa da análise sobre o agente]) [1]. Esta perigosidade e fator de risco, como se verá, não dispensa a ponderação sobre a condenação do arguido como reincidente, relacionada com as elevadas exigências de prevenção especial. Com efeito, o arguido não usou o veículo episodicamente, Embora o disposto no art.109º nº1 do CP na expressão legal “natureza do instrumento” faça apelo a critérios objectivos sobre a perigosidade inerente à natureza do objecto ou instrumento em causa (constituindo os casos mais flagrantes: os explosivos, as armas que deflagrem projéteis; estupefacientes e venenos), contudo, a tutela de perigo prevista neste preceito dirige-se essencialmente a toda uma gama quase interminável de instrumentos do crime, cuja perigosidade deriva directamente do uso que o agente lhe dá, ou pode vir novamente a dar, a que se associam também a densidade das exigências de prevenção especial do caso, e este contexto insere-se nas “circunstâncias do caso” que visam identificar factores de risco associados ao instrumento. A perigosidade do veículo, não resulta do objeto em si, que aliás tem a vocação de circular na via pública e transportar pessoas e bens. A perigosidade in casu do veículo e a sua causalidade adequada, à semelhança de uma faca ou de um machado (que também tem a especificidade funcional adstrita a cozinhas, oficinas e empresas agrícolas), ou do vidro moído como material aplicado em suportes e telas de obras de arte, resulta diretamente da funcionalidade delitual que o arguido lhe confere, a que se associam directamente as apuradas exigências de prevenção especial do caso. E o uso dado pelo arguido ao veículo é de uma perigosidade muito mais que séria (na expressão legal), porque é extrema na lesão da integridade física das potenciais vítimas. O argumento usado pelo Tribunal “A Quo” para retirar o critério da essencialidade do veículo, quando sustenta que não conhecia as vítimas e que não conhecia o seu percurso, não colhe minimamente. Para além de ser manifesto que o arguido não usou o veículo nos roubos por mero acaso, para o uso do veículo ser essencial, não necessitava de conhecer as vítimas ou seu percurso, bastava que as mesmas estivessem a caminhar no passeio ou na via pública, pois, executando o esticão conduzindo o veículo automóvel, quis desse modo, com intensa energia criminosa (o que não interessa, neste caso, para a culpa mas para a perigosidade), maximizar a eficácia do delito, pela surpresa, rapidez de execução; violência do puxão e garantida fuga, para o que tapou a matrícula no veículo em vários dos roubos cometidos. Neste circunstancialismo é exuberante a importância da utilização do veículo em vários roubos, tornando-se manifestamente essencial, contrariamente ao que foi sustentado. A perigosidade em causa será essencialmente a que reside no fator de risco do próprio agente e das exigências de prevenção especial do caso, relacionadas com o objeto em causa. A expressão típica do perigo consagrada na lei “oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos” diz respeito directamente às exigências de prevenção especial apuradas para aquele agente, que, se forem densificadas, torna verificado o risco elevado que justifica a perda. Sobre a perigosidade irreleva a circunstância do arguido se encontrar a cumprir pena de prisão de longa duração, pois são várias as vicissitudes na execução da pena que podem facultar a sua liberdade, seja em todo o regime de saídas (incluído as precárias) e de liberdade condicional. O Ac.RelP de 7/10/2015 respeitante ao proc. nº197/10.1JAPRT.P1 publicado no site do ITIJ referindo-se à perda do instrumento sustenta “todavia, a sua aplicação tem de se revelar proporcionada à gravidade do ilícito típico perpetrado e à perigosidade do objecto. A avaliação da perigosidade resultará não apenas de um critério objectivo – atender-se-á às características do objecto in re ipsa – mas também subjectivo – considerar-se-á a sua utilidade para um determinado sujeito - mas sempre tendo como “pano de fundo” a singularidade do concreto caso. (…). Por outro, a manutenção do mesmo na esfera de domínio do recorrente, co-autor do crime indiciado - pessoa que utilizou a arma para alvejar um ser humano - sempre permite diagnosticar uma predisposição para afectar aquele objecto para fins outros, diversos daqueles para os quais está licenciada – quiçá incorrendo em comportamentos semelhantes - sendo este um risco que importa obviar através do perdimento dos bens. Mesmo perfilhando o critério da perigosidade apenas ou essencialmente resultante das características do “autor do ilícito típico” e, por isso na vertente prevenção/medida cautelar/prevenção especial, não parece que seja suficientemente razoável afirmar que, porque o arguido não tem antecedentes criminais e por ser titular de licença de uso e porte de arma, não se pode fazer um juízo de prognose negativo ou seja, os antecedentes criminais não permitem concluir pelo perigo de o agente vir a usar novamente aquele instrumento ou outro da mesma natureza.” É, em casos, como o dos autos, e exactamente porque o agente já se iniciou na prática de condutas proibidas que é possível prever, com razoável segurança que aquele poderá, em certas circunstâncias, perder o seu autodomínio e usar, indevidamente, o instrumento perigoso de que é proprietário.” No Ac.RelP 3/12/2004 publicado no site do ITIJ sustenta-se que “Para o decretamento da perda do veiculo onde os bens furtados foram transportados impõe-se que se verifique a essencialidade da sua utilização e a relação da causalidade entre esse uso e a prática do ilícito, a que acresce a ponderação do principio da proporcionalidade”. A presente sanção de perdimento do veículo automóvel, é inteiramente proporcional se atentarmos quer à gravidade dos roubos cometidos, quer à perigosidade manifestada para as vítimas do “esticão” com queda e arrastamento dos corpos no asfalto (cfr.art.18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa -, princípio que preside a toda a providência sancionatória). A perda declarada mostra-se claramente justificada e proporcional pelas razões invocadas, devendo o recurso ter provimento.*Por fim, resta apreciar os fundamentos da resposta do arguido, a qual faz eco de vária jurisprudência, ver por todos o Acórdão da Relação de Évora de 16.04.2013, que escreveu: “..cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se: “a) Omissa na sentença condenatória a declaração de perdimento de bens apreendidos, é possível decidi-lo em despacho posterior? b) Perante resposta afirmativa, justificava-se, no caso, a declaração de perdimento de tais objectos a favor do Estado? No que à primeira questão diz respeito: Estatui-se no artº 374º, nº 3, al. c) do CPP que a sentença termina pelo dispositivo que contém “a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime”. De outro lado, manda o nº 2 do artº 186º do CPP que “logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”. Foi precisamente com invocação deste último normativo que o recorrente peticionou a restituição dos objectos apreendidos, posto que não declarados perdidos na sentença condenatória (entretanto transitada em julgado). Ora, num ponto todos estaremos seguramente de acordo: o momento correcto para dar destino aos objectos apreendidos é a sentença. É isso que claramente resulta dos dois dispositivos acabados de citar. E é isso que igualmente decorre do evoluir normal do processo: é na sentença, após fixação da matéria assente, que se há-de decidir se determinado objecto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas – artº 109º, nº 1 do Cod. Penal. Ora, não tendo sido ordenado o perdimento a favor do Estado de determinados bens apreendidos no tal momento correcto que é a sentença, é possível fazê-lo em momento posterior, por simples despacho? Há que distinguir: Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no artº 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no artº 186º, nº 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.” Salvo o devido respeito, o nosso desacordo com as premissas desta jurisprudência é cavado. Com efeito, o disposto do art.186º nº2 do CPP é uma norma meramente procedimental, que em nada posterga ou pode prejudicar a validade e a emergência do regime tutelar e preventivo do disposto no art.109º do Cód.Penal. Com efeito, o regime substantivo previsto no art.109º do Cód.Penal integra uma tutela preventiva muito relevante para os fins preventivos do regime sancionatório penal. A expressão do art.186º nº2 do Cód.Proc.Penal, está naturalmente de acordo com a temporalidade prevista no art.374º nº3 alínea c) do CPP, que fixa a composição temática da sentença, mas a sua importância é procedimental e ordenatória dos atos sobre os bens, nunca podendo prejudicar a apreciação tutelar prevista no art.109º do Cód.Penal, sobretudo não contém qualquer cominatório, revogatório do regime substantivo previsto no art.109º do CP. Conhecemos os argumentos desta jurisprudência que se fixam na economia de recurso do arguido face à sentença que se pronunciou sobre o destino dos bens, como razão que justifica a operacionalidade do art.109º do CP apenas na sentença e não em decisão autónoma (para evitar a duplicação de recursos, ou a distorcer a opção de recurso da sentença). Contudo, salvo o devido respeito, este fundamento de economia não pode colher, pois em nada prejudica o direito ao recurso; e não pode sustentar o afastamento do regime previsto no art.109º do CP, por uma norma meramente processual, onde não esteve no horizonte do legislador alterar o regime do código penal. A referida argumentação socorre-se sobretudo da letra do nº2 do art.186º, cuja redacção nem será suficientemente clara a esse respeito. Mas a partir de uma interpretação meramente literal, produz-se uma exegese excessiva que constrói um novo regime normativo, diverso, consoante a natureza proibida, ou não, dos bens (o que permitirá atuar ou afastar o regime do art.109º do CP, mesmo após o trânsito da sentença), e assim se subverte a teleologia do sistema, afastando-se as razões preventivas que o disposto no art.109º do CP visa acautelar, sem que do outro lado exista alguma razão válida para tudo isso. Assim, as incongruências sentidas na jurisprudência obrigou-a a distinguir o âmbito do art.186º nº2 do CPP, dizendo que somente no caso dos instrumentos “proibidos” o regime do art.186º nº2 do CPP não podia prevalecer sobre o art.109º do CP. Ora, aqui devem assinalar-se dois aspectos: não só, não pode o intérprete fazer essa distinção, pois com essa exegese extravagante estão-se a criar critérios normativos que não estão na lei; por outro lado, com a mesma interpretação está a afastar a aplicação do art.109º do CP nos chamados bens “permitidos”, quando estes podem revestir uma perigosidade muito superior aos denominados bens “proibidos”. O alcance e autonomia da tutela do art.109º do CP está bem expresso no nº2 desse preceito, onde a mesma pode operar em casos em que não exista condenação; no arquivamento do inquérito; após a extinção do procedimento por morte do agente; ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. Portanto, o trânsito da sentença não é critério, nem tinha de ser, para a oportunidade de apreciação deste regime. De notar que a sentença que não se pronuncie sobre o regime de perdimento nos termos do art.374º nº3 alínea c) do CPP, tão pouco essa falta constitui nulidade nos termos do art.379º nº1 alínea a) do mesmo diploma, e muito menos o caso julgado da sentença que não se pronuncie sobre o perdimento de bens, atinge o regime previsto no art.109º do CP, que pode ulteriormente ser atuado, com perdimento do instrumento do crime, mesmo após o trânsito da sentença. Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso merece total provimento. DISPOSITIVO. Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso penal procedente e consequentemente, nos termos e fundamentos expostos, revogar a decisão do Tribunal a quo, determinando-se nos termos do art.109º nº1 do CP a perda do veículo automóvel marca Mazda, modelo …, matriculado com o n.º..-RB-.., a favor do Estado. Notifique. Sumário (perda de instrumentos; decisão posterior ao caso julgado da sentença) ……………………………… ……………………………… ……………………………… Porto, 23 de Junho 2021. (Elaborado e revisto pelo 1º signatário) Nuno Pires Salpico Francisco Marcolino (Presidente da Secção) Paula Natércia Rocha (Declaração de voto: Voto vencida o Acórdão, em consonância com o já decidido no acórdão proferido no processo n.º 970/18.2JAPRT-C.P1, por entender que, sem prejuízo do devido respeito por opinião discordante, da análise do disposto no art.º 374.º, n.º 3, al. c), em conjugação com o disposto no art.º 186.º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Penal, resulta que o momento correto para dar destino aos objetos que até esse momento continuam apreendidos é a sentença, porque após a produção da prova, é na sentença que se fixam os factos, se procede ao seu enquadramento jurídico, e se decide a causa submetida a julgamento, e bem assim as consequências que daí possam advir. Uma das consequências que possam advir da decisão da causa submetida a julgamento poderá ser a perda dos instrumentos ou direitos relacionados com a prática de um crime. É na sentença, após fixação da matéria assente, que o Tribunal fica na posse de todos os elementos que permitem decidir, de acordo com o princípio da proporcionalidade, se determinado objeto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, tal como dispõe o art.º 109.º, n.º 1, do Cód. Penal. A norma do art.º 186.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal indica não só que, havendo sentença, é nela que a decisão da perda de bens é proferida, mas também as consequências do não perdimento dos bens: a restituição dos objetos apreendidos a quem de direito. Mas se nada foi declarado na sentença sobre o perdimento a favor do Estado de determinado bem apreendido nos autos teremos que distinguir duas situações para a resolução da questão. Pela clareza pela sua explicação, passaremos a citar o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/4/2013, disponível em www.dgsi.pt: “Se o bem ou objeto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art.º 374.º, n.º 3, al. c),do Cód. Proc. Penal, se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objeto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstrato a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.» Consoante a natureza do bem, assim merece e deve a questão ter um tratamento diferenciado. Não pode tratar-se do mesmo modo, juridicamente, nomeadamente no que respeita à restituição de bens apreendidos, bens que têm natureza diferente. Se são diferentes, devem diferentemente ser tratados. Sempre se consigna que se o Ministério Público entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira. Como não o fez: sibi imputet! Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objetos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 186º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objetos. Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.) _________________ [1] ver por todos Paulo Pinto Albuquerque in “Comentário do Código Penal”, 3ª ed., pág.452, Lisboa, 2015.
Proc. Nº1000/19.2PRPRT-H.P1X X XAcordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: No juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em processo comum e para julgamento perante Tribunal Coletivo, a Mmª Juíza titular do processo proferiu decisão que indeferiu o pedido do Ministério Público de declaração de perdimento a favor do Estado do veículo automóvel marca Mazda, modelo …, matriculado com o n.º ..-RB-.. e que, no deferimento do pedido do arguido, determinou que tal veículo lhe fosse entregue .*Não se conformando com a decisão que não declarou a perda do veículo automóvel, o Digno Magistrado do MP veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES. 1- Vem o presente recurso interposto após a decisão condenatória proferida nos autos em 03/3/2021, relativamente ao destino dado ao veículo automóvel apreendido nos autos pertença do arguido B…, perante o seu requerimento de entrega, o que lhe foi concedido; 2- Decisão essa com a qual se não concorda! 3- Em jeito de questão prévia, é para nós incompreensível que o Tribunal Coletivo, no seu douto acórdão e não parte final, não só não tivesse mandado restituir o mesmo veículo-caso fosse esse o seu objetivo-, como determinaram que, após o seu trânsito, os autos fossem levados ao MP para que nos pronunciássemos sobre o destino a dar a esse mesmo veículo; 4- Afigurando-se que, contra a vontade do Tribunal Coletivo, a Sra. Juíza Singular e titular destes autos, decidiu em sentido oposto; 5- Tanto mais que na acusação pública o MP já se havia pronunciado pela declaração de perdimento em relação a este mesmo veículo apreendido nos autos; 6- Daí que esta decisão da singular julgadora, seja contrária a uma outra já anteriormente determinada pelo Coletivo de Juízes e transitada; 7- Pelo que se nos afigura também tratar-se de uma decisão arbitrária, por não respeitar, de todo, uma anterior decisão final coletiva; 8- Analisando esta ultima decisão singular da qual, agora, se recorre, diremos que a mesma está fundamentada com posições insertas em dois acórdãos dos Tribunais Superiores- um deles do STJ e um outro do Tribunal da Relação de Coimbra -, mas ambos de realidades diferentes, pois referem-se a situações de apreensão de veículos no âmbito da lei do trafico de droga ou estupefacientes, da previsão do artigo 35º do Decreto-Lei nº15/93, de 2/01, ou seja, dentro de uma realidade e perspetiva diversa da lei geral substantiva, prevista no artigo 109º do Código Penal; 9- Por outro lado, o citado acórdão do Supremo Tribunal, refere que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito” – cfr. Ac. STJ, de 13-12-2006, in www.dgsi.p; 10-Situação esta que não é a dos presentes autos em que os crimes praticados com este veiculo ou graças à instrumentação do mesmo, são de extrema gravidade; 11-Designadamente por se tratarem de crimes contra o património e com contornos graves de violência sobre pessoas, ou não respeitassem eles a crimes de roubo; 12- Saliente-se que o disposto no artigo 109º nº1, do Código Penal, na atual redação dada pela Lei nº130/2017, de 30/5 (não aquela redação mencionada pela Sra. Juíza no despacho de que se recorre), tem uma aplicação menos exigente em relação àquela outra redação da Lei nº45/96, de 03/9, segundo a qual, o perdimento de bem (ns) se refere especialmente a necessidade de prevenção; 13- Situação esta que no caso concreto ocorre dada a matéria que resultou provada e foi imputada a este arguido, perante os variados crimes de roubo para cuja prática o veículo apreendido e pertença do arguido foi usado como um meio fundamental e até mesmo perigo, na concretização dos mesmos; 14- Daí que no caso em apreço nos reste concluir estarem preenchidos os requisitos do preceito legal do artigo 109º nº1, do Código Penal; 15- Assim e perante o material fáctico comprovado na decisão condenatória, seja possível concluir-se como substancial a existência dos perigos de utilização do dito veículo, na prática de novos ilícitos penais- desta ou doutra natureza-, por parte do arguido; 16- Para além disso, certo é que e tal como o Supremo Tribunal se pronunciou no mencionado acórdão, sobre a necessidade da proporcionalidade de uma decisão que, em concreto e atenta a gravidade dos ilícitos penais atribuídos ao arguido (roubos) e o valor do bem apreendido, não representar qualquer desproporcionalidade ou justeza no seu perdimento; 17- Pelo que o perdimento deste veículo apreendido nos autos ao arguido e aqui requerente, deverá ser decretado; 18- Sob pena de total violação do disposto no artigo 109º nº1, do Código Penal. Porém como sempre V.as Exas. Farão justiça.*O arguido veio responder ao recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES: I. NOTIFICADAS AS PARTES DO DESPACHO DO TRIBUNAL DA COMARCADO PORTO, JUÍZO CENTRAL CRIMINAL QUE DECIDIU ENTREGAR O VEÍCULO AUTOMÓVEL APREENDIDO NOS PRESENTES AUTOS AO ARGUIDO, VEIO O MINISTÉRIO PUBLICO RECORRER. II. PARA TANTO ALEGOU VIOLAÇÃO DO ARTº109 DO CÓDIGO PENAL. III. ANDOU MAL O MINISTÉRIO PUBLICO, AO SUSTER A SUA ARGUMENTAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DO ARTº190. IV. PROCURANDO DEMONSTRAR QUE O TRIBUNAL RECORRIDO ASSENTOU A SUA ANÁLISE NA ANTIGA REDECÇÃO DO PRECEITO LEGAL. V. BEM SABENDO, QUE HÁ MUITO QUE TRANSITOU A DECISÃO QUE CONDENOU O ARGUIDO NA PENA DE PRISÃO DE 6 ANOS E 8 MESES, SEM QUE O TRIBUNAL RECORRIDO SE TIVESSE PRONUNCIADO SOBRE OS BENS APREENDIDOS. VI. O MINISTÉRIO PUBLICO TEVE CONTUDO OPORTUNIDADE DE RECORRER OU ARGUIR AQUELA OMISSÃO. VII. MAS NÃO O FEZ VIII. PORQUANTO, NÃO PODE VIR AGORA, COLOCAR EM CAUSA O DOUTO DESPACHO PROFERIDO PELO TRIBUNAL A QUO INVOCANDO A VIOLAÇÃO DO ARTº 190º DO CP. IX. POIS DETERMINA O ARTº186, NO SEU Nº2, QUE APÓS O TRANSITO EM JULGADO, A FALTA DE DETERMINAÇÃO DO FIM A DAR AOS BENS APREENDIDOS, DESDE QUE LICITOS, IMPLICA A SUA ENTREGA IMEDIATA. X. OU SEJA, OS BENS APREENDIDOS EM PROCESSO PENAL, SÓ PODEM SER DECLARADOS PERDIDOS ATÉ AO TRÂNSITO DA DECISÃO RESPECTIVA, EXCEPTO SE PELA SUA NATUREZA, ESTES NÃO POSSAM SER RESTITUÍDOS, O QUE NÃO É O CASO DE UM VEÍCULO AUTOMÓVEL. XI. ASSIM, A NÃO ENTREGA DO REFERIDO BEM, CONSUBSTANCIA UMA VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE DO ARGUIDO, CONSAGRADO NO ARTº62 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, ASSIM COMO DO ARTº186 DO CPP. XII. NESTA CONFORMIDADE, AINDA QUE COM ARGUMENTOS DIFERENTES DO DOUTO DESPACHO EMANADO PELO TRIBUNAL RECORRIDO, DEVE A DECISÃO NO MESMO PROLATADA DE RESTITUIR O VEÍCULO AUTOMÓVEL APREENDIDO, SER MANTIDA. NESTES TERMOS DEVERÁ A DECISÃO DE ENTREGAR O VEÍCULO AUTOMÓVEL, BEM APREENDIDO AO ARGUIDO, SER MANTIDA, SOB PENA DE VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE E DO ARTº 186 DO CPP, FAZENDO-SE ASSIM JUSTIÇA.*Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer.*Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito.*II. Objeto do recurso e sua apreciação. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP. É assim composto exclusivamente por matéria de Direito, atinente à aplicabilidade do instituto previsto no art.109º do Cód.Penal.*Consta da decisão recorrida os seguintes fundamentos: “B…, condenado nos presentes autos por acórdão transitado em julgado, na pena de 6 anos e 8 meses de prisão pela prática, em autoria material e concurso real de diversos crimes de roubo e um crime de furto, veio requerer a entrega do veículo de matricula ..-RB-.., sua propriedade, apreendido nos autos. O Ministério Publico opôs, uma vez que o veículo em questão foi usado na prática dos crimes que fundamentaram a condenação do arguido. Dispõe o art.º 109º, do C.P. que: São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes. Da leitura da norma evidencia-se que a perda de bens ou de objetos relacionados com o crime tem uma natureza preventiva, isto é, ela deve ocorrer sempre que aqueles bens coloquem «em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou [ofereçam] sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos». A declaração de perdimento não é, pois, automática, não bastando, a tanto, a utilização do mencionado objecto para a prática do facto ilícito. Por isso se tem considerado não como uma pena acessória, não como uma medida de segurança, apesar da sua natureza preventiva, mas como «uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança» (Figueiredo Dias). «Fala nesse sentido, por um lado, a circunstância de constituir seu pressuposto a prática de um facto ilícito-típico, em termos idênticos aos que assistem ao facto ilícito-típico como pressuposto de aplicação de uma autêntica medida de segurança não privativa da liberdade. E vai no mesmo sentido a exigência do pressuposto da perigosidade (.); e a consequente consideração da finalidade do instituto como prevenção da perigosidade.» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português (As consequências jurídicas do crime), Lisboa: Ed. Notícias/Æquitas, 1993, § 979 (p. 996); Esta perigosidade das coisas, que determina a perda de bens a favor do Estado, deve ser avaliada objetivamente, a partir da perigosidade dos bens em si, ou subjetivamente, sempre que sejam considerados perigosos tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, atenta, por exemplo, a utilização que deles se fez ou fará. Estamos, pois, perante um instituto que depende de uma perigosidade dos bens, objetiva ou subjetiva, presente ou futura, e que não depende da culpa do agente. E depende da prática de um facto típico e ilícito. No caso em apreço estamos perante um veículo automóvel utilizado pelo arguido para a prática de roubos por esticão, pelo que, está preenchida a primeira premissa do pedido de declaração de perdimento favor o Estado. Julgamos, porém, que não se verifica a segunda exigência o segundo pressuposto da norma e que se prende com a especial perigosidade do objecto. O que está em causa é determinar a essencialidade do veículo para a actividade do arguido e dentro desse quadro se o perdimento a favor do Estado é proporcional e adequado ou não. Desde logo não está estabelecido o nexo instrumental essencial entre a utilização da viatura e os roubos, não se demonstrou, de forma insofismável, a essencialidade do uso do veículo na actividade ilícita. Na verdade, o roubo por esticão não impõe a utilização de um qualquer veículo, porquanto pode ser praticado a pé. Lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Fevereiro de 2020, in www.dgsi.pt. que: “Ora, o STJ tem enveredado por uma interpretação do n.º 1 do artigo 35º de acordo com a qual “a perda dos objectos do crime só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada. Trata-se de orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto, jurisprudência que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, orientação que sufragamos, por isso, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade -artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa -, princípio que preside a toda a providência sancionatória - a significar que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito” – cfr. Ac. STJ, de 13-12-2006, in www.dgsi.pt. No caso vertente, pese embora o arguido tenha praticado os crimes enquanto conduzia aquele veículo, o que, terá facilitado a prática dos crimes, julgamos que tal viatura seja instrumento do crime, e que exista uma relação de causalidade entre a sua utilização e a prática do facto ilícito. Julgamos, ao invés que os roubos surgiram na oportunidade da deslocação do arguido, usando, usando o veículo que era sua propriedade, pois que não resultou provado que o arguido conhecesse as vitimas e/ou os seus percursos e que tivesse preparado o roubo, usando o mencionado veículo como meio e essencial à conduta. Em face do exposto, indefere-se o pedido de declaração de perdimento a favor do Estado e deferindo-se o pedido do arguido, determina-se a entrega do veículo apreendido nos autos.”* Cumpre apreciar. Importando decidir a questão suscitada no presente recurso que se resume à pretensão deduzida pelo MºPº recorrente, de ver declarado perdido a favor do Estado, nos termos do art.109 nº1 do Cód.Penal, o veículo automóvel por ter sido instrumento dos crimes de roubo cometidos pelo arguido, pela respectiva perigosidade, assim visando a revogação da decisão recorrida. Da descrição dos provados, verifica-se que o arguido reiteradamente, cometeu seis delitos de roubo (um na forma tentada e três agravados, concretamente: um crime de roubo, na forma tentada, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1, 22º e 23º, do CP. (factos de 19.09.2019); um crime de roubo, p.p. pelo art.º210º, n.º1 do CP (factos de 22.09.2019); um crime de roubo, p.p. pelo art.º 210º, n.º 1, do CP (factos de 20.09.2019); um crime de roubo agravado, p.p. pelos art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), 204º, n.º 1, al. h) do CP (factos de 23.09.2019; e um crime de roubo agravado, p.p. pelos art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), 204º, n.º 1, al. h) do CP (factos de 24.09.2019); 2 um crime de roubo agravado, p.p. pelos art.º 210º, n.º 1 e 2, al. b), 204º, n.º 1, al. h) do CP (factos de 30.09.2019)), quatro dos quais sempre com recurso ao veículo em andamento e um dos quais servindo-se do veículo para se colocar de imediato em fuga, assim incrementando a eficácia do “roubo por esticão”, aliás, deve sublinhar-se que, no centro da conduta delitual do arguido, está precisamente o uso do veículo, circunstância que potenciou os danos sofridos em três vítimas arrastadas pelo veiculo em andamento, padecendo lesões relevantes. Aferindo os critérios definidos no nº1 do art.109º do CP para pesar o perigo de lesão e de nova utilização do instrumento, onde a par da objetividade da natureza do “instrumento”, assumem particular destaque “as circunstâncias do caso”, enquanto critério que faz apelo à subjetividade do agente na funcionalidade delitual que conferiu ao bem; e ao juízo de prognose intimamente associado às exigências de prevenção especial apuradas. Cabe verificar se o automóvel, como instrumento do facto ilícito típico, oferece sério risco de vir novamente usado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos. A sanção em análise, não sendo uma pena acessória (porque não tem relação com a culpa do agente), tem proximidades com a medida de segurança, sem o ser (dado que não se dirige ao agente, mas ao instrumento [embora a perigosidade deste dependa da análise sobre o agente]) [1]. Esta perigosidade e fator de risco, como se verá, não dispensa a ponderação sobre a condenação do arguido como reincidente, relacionada com as elevadas exigências de prevenção especial. Com efeito, o arguido não usou o veículo episodicamente, Embora o disposto no art.109º nº1 do CP na expressão legal “natureza do instrumento” faça apelo a critérios objectivos sobre a perigosidade inerente à natureza do objecto ou instrumento em causa (constituindo os casos mais flagrantes: os explosivos, as armas que deflagrem projéteis; estupefacientes e venenos), contudo, a tutela de perigo prevista neste preceito dirige-se essencialmente a toda uma gama quase interminável de instrumentos do crime, cuja perigosidade deriva directamente do uso que o agente lhe dá, ou pode vir novamente a dar, a que se associam também a densidade das exigências de prevenção especial do caso, e este contexto insere-se nas “circunstâncias do caso” que visam identificar factores de risco associados ao instrumento. A perigosidade do veículo, não resulta do objeto em si, que aliás tem a vocação de circular na via pública e transportar pessoas e bens. A perigosidade in casu do veículo e a sua causalidade adequada, à semelhança de uma faca ou de um machado (que também tem a especificidade funcional adstrita a cozinhas, oficinas e empresas agrícolas), ou do vidro moído como material aplicado em suportes e telas de obras de arte, resulta diretamente da funcionalidade delitual que o arguido lhe confere, a que se associam directamente as apuradas exigências de prevenção especial do caso. E o uso dado pelo arguido ao veículo é de uma perigosidade muito mais que séria (na expressão legal), porque é extrema na lesão da integridade física das potenciais vítimas. O argumento usado pelo Tribunal “A Quo” para retirar o critério da essencialidade do veículo, quando sustenta que não conhecia as vítimas e que não conhecia o seu percurso, não colhe minimamente. Para além de ser manifesto que o arguido não usou o veículo nos roubos por mero acaso, para o uso do veículo ser essencial, não necessitava de conhecer as vítimas ou seu percurso, bastava que as mesmas estivessem a caminhar no passeio ou na via pública, pois, executando o esticão conduzindo o veículo automóvel, quis desse modo, com intensa energia criminosa (o que não interessa, neste caso, para a culpa mas para a perigosidade), maximizar a eficácia do delito, pela surpresa, rapidez de execução; violência do puxão e garantida fuga, para o que tapou a matrícula no veículo em vários dos roubos cometidos. Neste circunstancialismo é exuberante a importância da utilização do veículo em vários roubos, tornando-se manifestamente essencial, contrariamente ao que foi sustentado. A perigosidade em causa será essencialmente a que reside no fator de risco do próprio agente e das exigências de prevenção especial do caso, relacionadas com o objeto em causa. A expressão típica do perigo consagrada na lei “oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos” diz respeito directamente às exigências de prevenção especial apuradas para aquele agente, que, se forem densificadas, torna verificado o risco elevado que justifica a perda. Sobre a perigosidade irreleva a circunstância do arguido se encontrar a cumprir pena de prisão de longa duração, pois são várias as vicissitudes na execução da pena que podem facultar a sua liberdade, seja em todo o regime de saídas (incluído as precárias) e de liberdade condicional. O Ac.RelP de 7/10/2015 respeitante ao proc. nº197/10.1JAPRT.P1 publicado no site do ITIJ referindo-se à perda do instrumento sustenta “todavia, a sua aplicação tem de se revelar proporcionada à gravidade do ilícito típico perpetrado e à perigosidade do objecto. A avaliação da perigosidade resultará não apenas de um critério objectivo – atender-se-á às características do objecto in re ipsa – mas também subjectivo – considerar-se-á a sua utilidade para um determinado sujeito - mas sempre tendo como “pano de fundo” a singularidade do concreto caso. (…). Por outro, a manutenção do mesmo na esfera de domínio do recorrente, co-autor do crime indiciado - pessoa que utilizou a arma para alvejar um ser humano - sempre permite diagnosticar uma predisposição para afectar aquele objecto para fins outros, diversos daqueles para os quais está licenciada – quiçá incorrendo em comportamentos semelhantes - sendo este um risco que importa obviar através do perdimento dos bens. Mesmo perfilhando o critério da perigosidade apenas ou essencialmente resultante das características do “autor do ilícito típico” e, por isso na vertente prevenção/medida cautelar/prevenção especial, não parece que seja suficientemente razoável afirmar que, porque o arguido não tem antecedentes criminais e por ser titular de licença de uso e porte de arma, não se pode fazer um juízo de prognose negativo ou seja, os antecedentes criminais não permitem concluir pelo perigo de o agente vir a usar novamente aquele instrumento ou outro da mesma natureza.” É, em casos, como o dos autos, e exactamente porque o agente já se iniciou na prática de condutas proibidas que é possível prever, com razoável segurança que aquele poderá, em certas circunstâncias, perder o seu autodomínio e usar, indevidamente, o instrumento perigoso de que é proprietário.” No Ac.RelP 3/12/2004 publicado no site do ITIJ sustenta-se que “Para o decretamento da perda do veiculo onde os bens furtados foram transportados impõe-se que se verifique a essencialidade da sua utilização e a relação da causalidade entre esse uso e a prática do ilícito, a que acresce a ponderação do principio da proporcionalidade”. A presente sanção de perdimento do veículo automóvel, é inteiramente proporcional se atentarmos quer à gravidade dos roubos cometidos, quer à perigosidade manifestada para as vítimas do “esticão” com queda e arrastamento dos corpos no asfalto (cfr.art.18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa -, princípio que preside a toda a providência sancionatória). A perda declarada mostra-se claramente justificada e proporcional pelas razões invocadas, devendo o recurso ter provimento.*Por fim, resta apreciar os fundamentos da resposta do arguido, a qual faz eco de vária jurisprudência, ver por todos o Acórdão da Relação de Évora de 16.04.2013, que escreveu: “..cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se: “a) Omissa na sentença condenatória a declaração de perdimento de bens apreendidos, é possível decidi-lo em despacho posterior? b) Perante resposta afirmativa, justificava-se, no caso, a declaração de perdimento de tais objectos a favor do Estado? No que à primeira questão diz respeito: Estatui-se no artº 374º, nº 3, al. c) do CPP que a sentença termina pelo dispositivo que contém “a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime”. De outro lado, manda o nº 2 do artº 186º do CPP que “logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”. Foi precisamente com invocação deste último normativo que o recorrente peticionou a restituição dos objectos apreendidos, posto que não declarados perdidos na sentença condenatória (entretanto transitada em julgado). Ora, num ponto todos estaremos seguramente de acordo: o momento correcto para dar destino aos objectos apreendidos é a sentença. É isso que claramente resulta dos dois dispositivos acabados de citar. E é isso que igualmente decorre do evoluir normal do processo: é na sentença, após fixação da matéria assente, que se há-de decidir se determinado objecto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas – artº 109º, nº 1 do Cod. Penal. Ora, não tendo sido ordenado o perdimento a favor do Estado de determinados bens apreendidos no tal momento correcto que é a sentença, é possível fazê-lo em momento posterior, por simples despacho? Há que distinguir: Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no artº 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no artº 186º, nº 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.” Salvo o devido respeito, o nosso desacordo com as premissas desta jurisprudência é cavado. Com efeito, o disposto do art.186º nº2 do CPP é uma norma meramente procedimental, que em nada posterga ou pode prejudicar a validade e a emergência do regime tutelar e preventivo do disposto no art.109º do Cód.Penal. Com efeito, o regime substantivo previsto no art.109º do Cód.Penal integra uma tutela preventiva muito relevante para os fins preventivos do regime sancionatório penal. A expressão do art.186º nº2 do Cód.Proc.Penal, está naturalmente de acordo com a temporalidade prevista no art.374º nº3 alínea c) do CPP, que fixa a composição temática da sentença, mas a sua importância é procedimental e ordenatória dos atos sobre os bens, nunca podendo prejudicar a apreciação tutelar prevista no art.109º do Cód.Penal, sobretudo não contém qualquer cominatório, revogatório do regime substantivo previsto no art.109º do CP. Conhecemos os argumentos desta jurisprudência que se fixam na economia de recurso do arguido face à sentença que se pronunciou sobre o destino dos bens, como razão que justifica a operacionalidade do art.109º do CP apenas na sentença e não em decisão autónoma (para evitar a duplicação de recursos, ou a distorcer a opção de recurso da sentença). Contudo, salvo o devido respeito, este fundamento de economia não pode colher, pois em nada prejudica o direito ao recurso; e não pode sustentar o afastamento do regime previsto no art.109º do CP, por uma norma meramente processual, onde não esteve no horizonte do legislador alterar o regime do código penal. A referida argumentação socorre-se sobretudo da letra do nº2 do art.186º, cuja redacção nem será suficientemente clara a esse respeito. Mas a partir de uma interpretação meramente literal, produz-se uma exegese excessiva que constrói um novo regime normativo, diverso, consoante a natureza proibida, ou não, dos bens (o que permitirá atuar ou afastar o regime do art.109º do CP, mesmo após o trânsito da sentença), e assim se subverte a teleologia do sistema, afastando-se as razões preventivas que o disposto no art.109º do CP visa acautelar, sem que do outro lado exista alguma razão válida para tudo isso. Assim, as incongruências sentidas na jurisprudência obrigou-a a distinguir o âmbito do art.186º nº2 do CPP, dizendo que somente no caso dos instrumentos “proibidos” o regime do art.186º nº2 do CPP não podia prevalecer sobre o art.109º do CP. Ora, aqui devem assinalar-se dois aspectos: não só, não pode o intérprete fazer essa distinção, pois com essa exegese extravagante estão-se a criar critérios normativos que não estão na lei; por outro lado, com a mesma interpretação está a afastar a aplicação do art.109º do CP nos chamados bens “permitidos”, quando estes podem revestir uma perigosidade muito superior aos denominados bens “proibidos”. O alcance e autonomia da tutela do art.109º do CP está bem expresso no nº2 desse preceito, onde a mesma pode operar em casos em que não exista condenação; no arquivamento do inquérito; após a extinção do procedimento por morte do agente; ou quando o agente tenha sido declarado contumaz. Portanto, o trânsito da sentença não é critério, nem tinha de ser, para a oportunidade de apreciação deste regime. De notar que a sentença que não se pronuncie sobre o regime de perdimento nos termos do art.374º nº3 alínea c) do CPP, tão pouco essa falta constitui nulidade nos termos do art.379º nº1 alínea a) do mesmo diploma, e muito menos o caso julgado da sentença que não se pronuncie sobre o perdimento de bens, atinge o regime previsto no art.109º do CP, que pode ulteriormente ser atuado, com perdimento do instrumento do crime, mesmo após o trânsito da sentença. Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso merece total provimento. DISPOSITIVO. Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso penal procedente e consequentemente, nos termos e fundamentos expostos, revogar a decisão do Tribunal a quo, determinando-se nos termos do art.109º nº1 do CP a perda do veículo automóvel marca Mazda, modelo …, matriculado com o n.º..-RB-.., a favor do Estado. Notifique. Sumário (perda de instrumentos; decisão posterior ao caso julgado da sentença) ……………………………… ……………………………… ……………………………… Porto, 23 de Junho 2021. (Elaborado e revisto pelo 1º signatário) Nuno Pires Salpico Francisco Marcolino (Presidente da Secção) Paula Natércia Rocha (Declaração de voto: Voto vencida o Acórdão, em consonância com o já decidido no acórdão proferido no processo n.º 970/18.2JAPRT-C.P1, por entender que, sem prejuízo do devido respeito por opinião discordante, da análise do disposto no art.º 374.º, n.º 3, al. c), em conjugação com o disposto no art.º 186.º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Penal, resulta que o momento correto para dar destino aos objetos que até esse momento continuam apreendidos é a sentença, porque após a produção da prova, é na sentença que se fixam os factos, se procede ao seu enquadramento jurídico, e se decide a causa submetida a julgamento, e bem assim as consequências que daí possam advir. Uma das consequências que possam advir da decisão da causa submetida a julgamento poderá ser a perda dos instrumentos ou direitos relacionados com a prática de um crime. É na sentença, após fixação da matéria assente, que o Tribunal fica na posse de todos os elementos que permitem decidir, de acordo com o princípio da proporcionalidade, se determinado objeto serviu ou estava destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou se por este foi produzido e, bem assim, se o mesmo - pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso – oferece riscos sérios de ser utilizado no cometimento de novo facto ilícito, ou coloca em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, tal como dispõe o art.º 109.º, n.º 1, do Cód. Penal. A norma do art.º 186.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal indica não só que, havendo sentença, é nela que a decisão da perda de bens é proferida, mas também as consequências do não perdimento dos bens: a restituição dos objetos apreendidos a quem de direito. Mas se nada foi declarado na sentença sobre o perdimento a favor do Estado de determinado bem apreendido nos autos teremos que distinguir duas situações para a resolução da questão. Pela clareza pela sua explicação, passaremos a citar o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/4/2013, disponível em www.dgsi.pt: “Se o bem ou objeto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no art.º 374.º, n.º 3, al. c),do Cód. Proc. Penal, se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe. Se, porém, o objeto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstrato a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.» Consoante a natureza do bem, assim merece e deve a questão ter um tratamento diferenciado. Não pode tratar-se do mesmo modo, juridicamente, nomeadamente no que respeita à restituição de bens apreendidos, bens que têm natureza diferente. Se são diferentes, devem diferentemente ser tratados. Sempre se consigna que se o Ministério Público entendesse que tais bens deveriam ser declarados perdidos a favor do Estado, deveria – no tempo certo – interpor recurso da sentença que tal não decidira. Como não o fez: sibi imputet! Em jeito conclusivo: transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objetos apreendidos, de detenção lícita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no art.º 186º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não sendo lícito determinar, por despacho posterior, o perdimento desses objetos. Entendimento contrário sempre consubstanciaria violação de caso julgado e, fundamentalmente, constituiria uma flagrante deslealdade processual e uma manifesta violação das garantias de defesa do recurso.) _________________ [1] ver por todos Paulo Pinto Albuquerque in “Comentário do Código Penal”, 3ª ed., pág.452, Lisboa, 2015.