I - O contrato de arrendamento é, por natureza, bilateral ou sinalagmático, uma vez que dele nascem obrigações para ambas as partes, estando essas obrigações unidas por um vínculo de reciprocidade ou interdependência. II - A obrigação de pagar a renda, imposta ao locatário, faz parte do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa ao locatário. III - Na invocação da excepção de não cumprimento do contrato deve ser respeitado o princípio da boa-fé, impondo-se a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. IV - A excepção de não cumprimento constitui uma excepção material dilatória, cabendo ao arrendatário a alegação e a prova da matéria de facto que a pode sustentar.
Apelação nº1344/20.0T8VRLP2 Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia Relator: Carlos Portela Adjuntos: António Paulo Vasconcelos Filipe Caroço Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório: AA e mulher BB, casados, residentes na Rua ..., ..., em Vila Real, vieram propor a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, a residir na Rua ..., habitação ..., ..., em Vila Nova de Gaia. Alegam, em suma, que são proprietários do imóvel descrito no artigo 1º da PI e que o mesmo foi dado de arrendamento à Ré, em 27 de Abril de 2020, pela renda mensal de €750,00, reduzida atendendo à pandemia para o valor de €700,00, nos meses de maio a Dezembro de 2020, tendo a Ré pago somente a renda respeitante ao mês de maio. Mais alegam que interpelaram a Ré para pagar as rendas em atraso, não tendo esta efectuado os pagamentos, encontrando-se em mora à data da propositura da acção três meses em atraso, concretamente, as rendas do mês de Junho, Julho e Agosto de 2020 vencidas a 8 de Maio, 8 de Junho e 8 de Julho de 2020, no valor global de €2100,00. Peticionam que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas, com a condenação da Ré na entrega aos autores do locado com os bens anexos ao contrato de arrendamento. Pedem ainda que seja a Ré condenada no pagamento das rendas vencidas e vincendas até efectiva entrega do locado. A Ré defendeu-se invocando, em suma, que sempre pagou as rendas do referido imóvel. Invocou também a excepção de não cumprimento alegando que o imóvel não se encontrava em boas condições de habitabilidade e, como tal, lhe era permitido suspender o pagamento das rendas enquanto os autores não resolvessem a situação. Por fim, pugnou pela improcedência da acção. Os Autores ao abrigo do princípio do contraditório responderam à matéria de excepção da contestação, argumentando que não corresponde à verdade o invocado pela Ré, nunca lhes tendo sido comunicado nada sobre as condições do imóvel. Mais alegaram que a Ré sempre prometeu que iria pagar e, como tal, no oferecimento da sua contestação a ré litigou de má-fé. Os autos prosseguiram os seus termos acabando por ser proferido despacho que saneou o processo, definiu o objecto do litígio e identificou os temas de prova. Tal despacho não foi objecto de qualquer reclamação das partes. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo a mesma decorrido sob a observância de todo o formalismo legal, conforme decorre da respectiva acta, No culminar da mesma foi proferida sentença onde se julgou a acção procedente, por provada e consequentemente: a) Se declarou resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a ré CC e os autores; b) Se condenou a ré CC a pagar aos autores as rendas vencidas, desde 08/05/2020 até 08/07/2020, no montante de €2.100,00 (dois mil e cem euros), acrescido de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento; c) Se condenou a ré a pagar aos autores as rendas vencidas e vincendas, no montante de €700,00 (setecentos euros) por mês desde 08/08/2020 até 08/11/2020, e, a partir de 08/12/2020 no montante de €750,00 (setecentos e cinquenta euros) por mês, acrescida de juros moratórios vincendos desde a data do respectivo vencimento até à entrega efectiva do arrendado, livre e devoluto de pessoas e de bens. A Ré veio interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações. Os Autores não responderam às alegações da Ré. Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo. Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.*II. Enquadramento de facto e de direito: Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho. É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela ré/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC). E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões: 1º- O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos. 2º- Com efeito, a R. alegou a falta de condições de habitabilidade, que compromete seriamente o uso e fruição do locado. 3º- Mais alegou a existência de mora por parte dos AA., na realização das obras, o que obrigou a R. a invocar a excepção do não cumprimento do contrato. 5º- Ora, uma vez que não foi assegurado à R., enquanto arrendatária, o gozo do imóvel para os fins a que se destina, a arrendatária pode invocar a «exceptio non adimpleti contractus» para recusar o pagamento da renda. 6º- Ou seja, a «exceptio» pressupõe a inexecução temporária do contrato, 7º- Com efeito, ...«se o locatário paga a renda e o locador não repara as deteriorações do imóvel que é obrigado a garantir, aquele pode suspender o pagamento de toda a renda, quando se trata de não cumprimento que exclua totalmente o gozo da coisa ou de parte dela, no caso de privação parcial do gozo imputável ao locador». – Ac. R.L. de 9.05.96, In Col. Jur., 1996, 3, 87. 8º- O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art. 428 CC e, artºs 2º, 9º, 13º, 18º e 20º da CRP.*Perante o antes exposto resulta claro ser a seguinte a questão suscitada no presente recurso: Saber se à Ré era legítimo invocar a excepção de não cumprimento do contrato de arrendamento celebrado com os Autores.*Já que a mesma não foi objecto de impugnação por parte da ré/apelante impõe-se transcrever aqui a decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância. Assim: Factos provados: Com relevo para a decisão, resultam provados os seguintes factos: 1. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo nº ......, a fração autónoma designada pela letra “G”, destinada à habitação, tipo T2, sita no piso 2, corpo ... e ao lugar de garagem e arrumos sitos no piso 0, identificados pela mesma letra “G” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito ba Rua ..., ... da freguesia ... com entrada pelo número ..., da Rua ..., .... e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ..., constando como titular os Autores, desde 30.03.2020. 2. Por documento escrito, datado de 27/04/2020, os autores e a ré, subscreveram um acordo que denominaram de “contrato de arrendamento”, no qual era cedido pelos primeiros à segunda, a título oneroso, o gozo e uso do imóvel descrito em 1. 3. O acordo foi realizado pelo período de dez anos e dois dias, com início em 28.04.2020 e termo em 31.05.2030, considerando-se prorrogado por períodos de um ano, enquanto não fosse terminado nos termos legais por algum dos intervenientes. 4. Do acordo constava que o prédio se destinava exclusivamente a habitação da ré e do seu agregado familiar. 5. Do acordo constava que o pagamento mensal era de €750,00 devendo ser realizado até ao oitavo dia do mês anterior ao que dissesse respeito por transferência bancária para a conta bancária dos autores com o IBAN ...... 6. O pagamento mensal referido em 5 no período entre maio a Dezembro de 2020 era no valor de € 700,00. 7. A ré procedeu ao pagamento da renda referente ao mês de maio de 2020. 8. Os autores interpelaram várias vezes a ré para proceder ao pagamento das rendas em atraso, designadamente em: 9 e 22 de Junho, 06, 10, 11, 12, 15, 17, 24, 28 de Julho, 10 de agosto e 23 de Setembro, todos do ano de 2020. Factos não provados: A) O prédio urbano referido em 1 dos factos provados tem humidade. B) Quando o tempo está húmido, a água escorre pelas paredes. C) Quando o tempo está seco, as paredes apresentam manhas da água ter escorrido. D) E os móveis apresentam bolor.*Vejamos, pois da procedência dos argumentos aqui trazidos no recurso dos autos. Segundo o disposto no art.º 1083º, nº1 do Código Civil qualquer das partes pode resolver o contrato de arrendamento, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte, acrescentando o seu nº2 que «é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento…». Nestes termos, o arrendatário, de acordo com o que também se acha previsto nos artigos 432º, nº1 e 801º, nº1 do C, pode resolver o contrato de arrendamento, sendo certo que neste último artigo se estabelece que «tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.» É sabido que no contrato de arrendamento são obrigações do locador entregar ao locatário a coisa locada e assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que se destina (cf. art.º 1031º, alíneas a) e b) do Código Civil). Por outro lado, constitui obrigação do locatário o pagamento da renda, que surge como contrapartida do gozo da coisa cedida pelo locador, e que se mantém enquanto o contrato perdurar, sendo este um dos seus elementos essenciais (cf. artigos 1022º e 1038º, al. a) do CC). O pagamento da renda é pois a principal obrigação do arrendatário, sendo devida como retribuição pelo gozo temporário de uma coisa imóvel que lhe é proporcionado pelo senhorio, no âmbito de um contrato de arrendamento. Sabe-se, igualmente, que o contrato de arrendamento é, por natureza, bilateral ou sinalagmático, já que dele nascem obrigações para ambas as partes, estando essas obrigações unidas por um vínculo de reciprocidade ou interdependência (sinalagma). Assim, a obrigação de pagar a renda, imposta ao locatário, faz parte do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa ao locatário. (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 4ª ed., págs.316/317). Quanto à excepção de não cumprimento do contrato está a mesma prevista no art.º 428º do Código Civil nos seguintes termos: “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.” Daqui decorre que subjacente à excepção de não cumprimento do contrato deve estar em causa a relação sinalagmática, que justifica e delimita o seu campo de aplicação, relação essa que ocorre, como antes já vimos, no contrato de arrendamento. Nas palavras de Calvão da Silva “justifica-se a recusa do credor a cumprir, alegando a exceptio non adimpleti contractus, porque a sua prestação é o correlativo da contraprestação do devedor, porque as respectivas obrigações estão ligadas entre si por um nexo de causalidade – uma é o motivo determinante da outra – ou de correspectividade. Logo, se o devedor não cumpre, não quer cumprir ou não pode cumprir, ainda que não imputavelmente, o credor pode suspender o cumprimento da sua obrigação, dada a ausência de contrapartida e reciprocidade que liga causalmente a prestação debitória e a prestação creditória. Sendo as obrigações interdependentes, com uma a constituir a causa determinante da outra, o não cumprimento de uma (que não tem de ser necessariamente imputável a dolo ou culpa do devedor) faz desaparecer a sua contrapartida – causa e razão de ser da outra -, o que legitima a exceptio, meio de conservação do equilíbrio sinalagmático. Pouco importa, por conseguinte, que o devedor não cumpra a sua obrigação por não querer e estar de má fé ou por não poder em virtude, por exemplo, de se encontrar em estado de impotência económica, porquanto aquilo que legitima a exceptio non adimpleti contractus é a ausência de correspondência ou de reciprocidade que está na origem das obrigações (sinalagma genético) e que deve continuar a estar presente no seu cumprimento (sinalagma funcional).” (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., pág. 330) No entanto, importa não esquecer que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem sempre as partes proceder de boa-fé (cf. art.º 762º, nº2 do Código Civil). Deste modo, para que a invocação da “exceptio” não seja julgada contrária à boa-fé, exige-se a verificação de uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra. (neste sentido cf. João José Abrantes, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, Almedina, 3ª ed., págs. 110/112). Assim, atenta a referida relação de sucessão, não pode recusar a sua prestação, invocando a “exceptio”, o contraente que foi o primeiro a cair numa situação de incumprimento, ou seja, a recusa de cumprir do excipiente deve ser posterior à inexecução da obrigação da contraparte, deve seguir-se-lhe e não precedê-la. Por outro lado, a relação de causalidade impõe que haja um nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente. Dito de outra forma, esta última deve ter unicamente por causa tal incumprimento, deve surgir como sua consequência imediata. Finalmente, por força do princípio da equivalência ou proporcionalidade das inexecuções, a recusa do excipiente deve ser equivalente ou proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que, se a falta desta for de leve importância, o recurso à excepção pode até ser ilegítimo. Para Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª ed., pág. 364, o funcionamento da “exceptio” deve ser compaginado com o princípio da boa-fé, daí resultando “a exigência de uma apreciação da gravidade da falta, que não pode mostrar-se insignificante, bem como se impõe a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção.” No seguimento de tal entendimento e agora na Revista de Legislação e Jurisprudência”, nº119, pág. 144, refere-se ainda que “seria contrário à boa-fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. Na mesma linha, surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quanto se torne necessário para garantir o seu direito”. Ora é consabido que o funcionamento da excepção de não cumprimento do contrato, invocada pelo arrendatário com vista ao não pagamento da renda por limitação do gozo da coisa locada, tem vindo a ser admitida de forma restrita pela nossa jurisprudência (neste sentido e entre outros cf. os acórdãos da Relação de Guimarães de 03.03.2016, no processo <a href="https://acordao.pt/decisoes/194363" target="_blank">328/14.2T8VCT.G1</a> e desta Relação do Porto de 14.03.2017, no processo 27468/15.8T8PRT-A.P1, ambos em www.dgsi.pt). Voltando ao caso concreto, resulta evidente que adequada utilização da excepção de não cumprimento no caso dos autos pela arrendatária aqui apelante, como fundamento para o não pagamento de rendas, depende, naturalmente, da matéria de facto que a mesma alegou e que veio posteriormente a conseguir provar. E a verdade é que os factos que a podiam sustentar acabaram por ser dados como não provados (cf. alíneas A), B), C) e D) dos factos não provados). Sendo assim e constatando-se que a apelante/arrendatária neste seu recurso nem sequer impugna tal decisão, mostra-se clara a improcedência dos argumentos recursivos em que se sustenta o seu recurso. Nestes termos, improcederá, necessariamente, o recurso aqui interposto.*Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC): ……………………………………… ……………………………………… ………………………………………*III. Decisão: Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.*Custas a cargo da ré/apelante (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).*Notifique. Porto, 26 de Janeiro de 2023 Carlos Portela António Paulo Vasconcelos Filipe Caroço
Apelação nº1344/20.0T8VRLP2 Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia Relator: Carlos Portela Adjuntos: António Paulo Vasconcelos Filipe Caroço Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório: AA e mulher BB, casados, residentes na Rua ..., ..., em Vila Real, vieram propor a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, a residir na Rua ..., habitação ..., ..., em Vila Nova de Gaia. Alegam, em suma, que são proprietários do imóvel descrito no artigo 1º da PI e que o mesmo foi dado de arrendamento à Ré, em 27 de Abril de 2020, pela renda mensal de €750,00, reduzida atendendo à pandemia para o valor de €700,00, nos meses de maio a Dezembro de 2020, tendo a Ré pago somente a renda respeitante ao mês de maio. Mais alegam que interpelaram a Ré para pagar as rendas em atraso, não tendo esta efectuado os pagamentos, encontrando-se em mora à data da propositura da acção três meses em atraso, concretamente, as rendas do mês de Junho, Julho e Agosto de 2020 vencidas a 8 de Maio, 8 de Junho e 8 de Julho de 2020, no valor global de €2100,00. Peticionam que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas, com a condenação da Ré na entrega aos autores do locado com os bens anexos ao contrato de arrendamento. Pedem ainda que seja a Ré condenada no pagamento das rendas vencidas e vincendas até efectiva entrega do locado. A Ré defendeu-se invocando, em suma, que sempre pagou as rendas do referido imóvel. Invocou também a excepção de não cumprimento alegando que o imóvel não se encontrava em boas condições de habitabilidade e, como tal, lhe era permitido suspender o pagamento das rendas enquanto os autores não resolvessem a situação. Por fim, pugnou pela improcedência da acção. Os Autores ao abrigo do princípio do contraditório responderam à matéria de excepção da contestação, argumentando que não corresponde à verdade o invocado pela Ré, nunca lhes tendo sido comunicado nada sobre as condições do imóvel. Mais alegaram que a Ré sempre prometeu que iria pagar e, como tal, no oferecimento da sua contestação a ré litigou de má-fé. Os autos prosseguiram os seus termos acabando por ser proferido despacho que saneou o processo, definiu o objecto do litígio e identificou os temas de prova. Tal despacho não foi objecto de qualquer reclamação das partes. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo a mesma decorrido sob a observância de todo o formalismo legal, conforme decorre da respectiva acta, No culminar da mesma foi proferida sentença onde se julgou a acção procedente, por provada e consequentemente: a) Se declarou resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a ré CC e os autores; b) Se condenou a ré CC a pagar aos autores as rendas vencidas, desde 08/05/2020 até 08/07/2020, no montante de €2.100,00 (dois mil e cem euros), acrescido de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento; c) Se condenou a ré a pagar aos autores as rendas vencidas e vincendas, no montante de €700,00 (setecentos euros) por mês desde 08/08/2020 até 08/11/2020, e, a partir de 08/12/2020 no montante de €750,00 (setecentos e cinquenta euros) por mês, acrescida de juros moratórios vincendos desde a data do respectivo vencimento até à entrega efectiva do arrendado, livre e devoluto de pessoas e de bens. A Ré veio interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações. Os Autores não responderam às alegações da Ré. Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo. Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.*II. Enquadramento de facto e de direito: Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho. É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela ré/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC). E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões: 1º- O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos. 2º- Com efeito, a R. alegou a falta de condições de habitabilidade, que compromete seriamente o uso e fruição do locado. 3º- Mais alegou a existência de mora por parte dos AA., na realização das obras, o que obrigou a R. a invocar a excepção do não cumprimento do contrato. 5º- Ora, uma vez que não foi assegurado à R., enquanto arrendatária, o gozo do imóvel para os fins a que se destina, a arrendatária pode invocar a «exceptio non adimpleti contractus» para recusar o pagamento da renda. 6º- Ou seja, a «exceptio» pressupõe a inexecução temporária do contrato, 7º- Com efeito, ...«se o locatário paga a renda e o locador não repara as deteriorações do imóvel que é obrigado a garantir, aquele pode suspender o pagamento de toda a renda, quando se trata de não cumprimento que exclua totalmente o gozo da coisa ou de parte dela, no caso de privação parcial do gozo imputável ao locador». – Ac. R.L. de 9.05.96, In Col. Jur., 1996, 3, 87. 8º- O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art. 428 CC e, artºs 2º, 9º, 13º, 18º e 20º da CRP.*Perante o antes exposto resulta claro ser a seguinte a questão suscitada no presente recurso: Saber se à Ré era legítimo invocar a excepção de não cumprimento do contrato de arrendamento celebrado com os Autores.*Já que a mesma não foi objecto de impugnação por parte da ré/apelante impõe-se transcrever aqui a decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância. Assim: Factos provados: Com relevo para a decisão, resultam provados os seguintes factos: 1. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo nº ......, a fração autónoma designada pela letra “G”, destinada à habitação, tipo T2, sita no piso 2, corpo ... e ao lugar de garagem e arrumos sitos no piso 0, identificados pela mesma letra “G” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito ba Rua ..., ... da freguesia ... com entrada pelo número ..., da Rua ..., .... e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ..., constando como titular os Autores, desde 30.03.2020. 2. Por documento escrito, datado de 27/04/2020, os autores e a ré, subscreveram um acordo que denominaram de “contrato de arrendamento”, no qual era cedido pelos primeiros à segunda, a título oneroso, o gozo e uso do imóvel descrito em 1. 3. O acordo foi realizado pelo período de dez anos e dois dias, com início em 28.04.2020 e termo em 31.05.2030, considerando-se prorrogado por períodos de um ano, enquanto não fosse terminado nos termos legais por algum dos intervenientes. 4. Do acordo constava que o prédio se destinava exclusivamente a habitação da ré e do seu agregado familiar. 5. Do acordo constava que o pagamento mensal era de €750,00 devendo ser realizado até ao oitavo dia do mês anterior ao que dissesse respeito por transferência bancária para a conta bancária dos autores com o IBAN ...... 6. O pagamento mensal referido em 5 no período entre maio a Dezembro de 2020 era no valor de € 700,00. 7. A ré procedeu ao pagamento da renda referente ao mês de maio de 2020. 8. Os autores interpelaram várias vezes a ré para proceder ao pagamento das rendas em atraso, designadamente em: 9 e 22 de Junho, 06, 10, 11, 12, 15, 17, 24, 28 de Julho, 10 de agosto e 23 de Setembro, todos do ano de 2020. Factos não provados: A) O prédio urbano referido em 1 dos factos provados tem humidade. B) Quando o tempo está húmido, a água escorre pelas paredes. C) Quando o tempo está seco, as paredes apresentam manhas da água ter escorrido. D) E os móveis apresentam bolor.*Vejamos, pois da procedência dos argumentos aqui trazidos no recurso dos autos. Segundo o disposto no art.º 1083º, nº1 do Código Civil qualquer das partes pode resolver o contrato de arrendamento, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte, acrescentando o seu nº2 que «é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento…». Nestes termos, o arrendatário, de acordo com o que também se acha previsto nos artigos 432º, nº1 e 801º, nº1 do C, pode resolver o contrato de arrendamento, sendo certo que neste último artigo se estabelece que «tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.» É sabido que no contrato de arrendamento são obrigações do locador entregar ao locatário a coisa locada e assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que se destina (cf. art.º 1031º, alíneas a) e b) do Código Civil). Por outro lado, constitui obrigação do locatário o pagamento da renda, que surge como contrapartida do gozo da coisa cedida pelo locador, e que se mantém enquanto o contrato perdurar, sendo este um dos seus elementos essenciais (cf. artigos 1022º e 1038º, al. a) do CC). O pagamento da renda é pois a principal obrigação do arrendatário, sendo devida como retribuição pelo gozo temporário de uma coisa imóvel que lhe é proporcionado pelo senhorio, no âmbito de um contrato de arrendamento. Sabe-se, igualmente, que o contrato de arrendamento é, por natureza, bilateral ou sinalagmático, já que dele nascem obrigações para ambas as partes, estando essas obrigações unidas por um vínculo de reciprocidade ou interdependência (sinalagma). Assim, a obrigação de pagar a renda, imposta ao locatário, faz parte do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo da coisa ao locatário. (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 4ª ed., págs.316/317). Quanto à excepção de não cumprimento do contrato está a mesma prevista no art.º 428º do Código Civil nos seguintes termos: “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.” Daqui decorre que subjacente à excepção de não cumprimento do contrato deve estar em causa a relação sinalagmática, que justifica e delimita o seu campo de aplicação, relação essa que ocorre, como antes já vimos, no contrato de arrendamento. Nas palavras de Calvão da Silva “justifica-se a recusa do credor a cumprir, alegando a exceptio non adimpleti contractus, porque a sua prestação é o correlativo da contraprestação do devedor, porque as respectivas obrigações estão ligadas entre si por um nexo de causalidade – uma é o motivo determinante da outra – ou de correspectividade. Logo, se o devedor não cumpre, não quer cumprir ou não pode cumprir, ainda que não imputavelmente, o credor pode suspender o cumprimento da sua obrigação, dada a ausência de contrapartida e reciprocidade que liga causalmente a prestação debitória e a prestação creditória. Sendo as obrigações interdependentes, com uma a constituir a causa determinante da outra, o não cumprimento de uma (que não tem de ser necessariamente imputável a dolo ou culpa do devedor) faz desaparecer a sua contrapartida – causa e razão de ser da outra -, o que legitima a exceptio, meio de conservação do equilíbrio sinalagmático. Pouco importa, por conseguinte, que o devedor não cumpra a sua obrigação por não querer e estar de má fé ou por não poder em virtude, por exemplo, de se encontrar em estado de impotência económica, porquanto aquilo que legitima a exceptio non adimpleti contractus é a ausência de correspondência ou de reciprocidade que está na origem das obrigações (sinalagma genético) e que deve continuar a estar presente no seu cumprimento (sinalagma funcional).” (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., pág. 330) No entanto, importa não esquecer que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem sempre as partes proceder de boa-fé (cf. art.º 762º, nº2 do Código Civil). Deste modo, para que a invocação da “exceptio” não seja julgada contrária à boa-fé, exige-se a verificação de uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra. (neste sentido cf. João José Abrantes, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, Almedina, 3ª ed., págs. 110/112). Assim, atenta a referida relação de sucessão, não pode recusar a sua prestação, invocando a “exceptio”, o contraente que foi o primeiro a cair numa situação de incumprimento, ou seja, a recusa de cumprir do excipiente deve ser posterior à inexecução da obrigação da contraparte, deve seguir-se-lhe e não precedê-la. Por outro lado, a relação de causalidade impõe que haja um nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente. Dito de outra forma, esta última deve ter unicamente por causa tal incumprimento, deve surgir como sua consequência imediata. Finalmente, por força do princípio da equivalência ou proporcionalidade das inexecuções, a recusa do excipiente deve ser equivalente ou proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que, se a falta desta for de leve importância, o recurso à excepção pode até ser ilegítimo. Para Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª ed., pág. 364, o funcionamento da “exceptio” deve ser compaginado com o princípio da boa-fé, daí resultando “a exigência de uma apreciação da gravidade da falta, que não pode mostrar-se insignificante, bem como se impõe a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção.” No seguimento de tal entendimento e agora na Revista de Legislação e Jurisprudência”, nº119, pág. 144, refere-se ainda que “seria contrário à boa-fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. Na mesma linha, surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quanto se torne necessário para garantir o seu direito”. Ora é consabido que o funcionamento da excepção de não cumprimento do contrato, invocada pelo arrendatário com vista ao não pagamento da renda por limitação do gozo da coisa locada, tem vindo a ser admitida de forma restrita pela nossa jurisprudência (neste sentido e entre outros cf. os acórdãos da Relação de Guimarães de 03.03.2016, no processo 328/14.2T8VCT.G1 e desta Relação do Porto de 14.03.2017, no processo 27468/15.8T8PRT-A.P1, ambos em www.dgsi.pt). Voltando ao caso concreto, resulta evidente que adequada utilização da excepção de não cumprimento no caso dos autos pela arrendatária aqui apelante, como fundamento para o não pagamento de rendas, depende, naturalmente, da matéria de facto que a mesma alegou e que veio posteriormente a conseguir provar. E a verdade é que os factos que a podiam sustentar acabaram por ser dados como não provados (cf. alíneas A), B), C) e D) dos factos não provados). Sendo assim e constatando-se que a apelante/arrendatária neste seu recurso nem sequer impugna tal decisão, mostra-se clara a improcedência dos argumentos recursivos em que se sustenta o seu recurso. Nestes termos, improcederá, necessariamente, o recurso aqui interposto.*Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC): ……………………………………… ……………………………………… ………………………………………*III. Decisão: Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.*Custas a cargo da ré/apelante (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).*Notifique. Porto, 26 de Janeiro de 2023 Carlos Portela António Paulo Vasconcelos Filipe Caroço