I. – Tendo um magistrado judicial intervindo como Juiz Presidente num julgamento e aí mandado extrair certidão que constitui o núcleo factual da acusação de um processo em que deveria intervir na qualidade de juíza-adjunta não estão, objectivamente e à luz do sentido de justiça comummente aceite na sociedade, reunidos os requisitos de imparcialidade e independência para que esse magistrado realize o segundo julgamento
1 I. RELATÓRIO. No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, o arguido … está a ser submetido a julgamento, mediante acusação do Ministério Público, que lhe imputa a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a), do C. Penal, sendo o Tribunal Colectivo que o julga composto pelo Mmo. Juiz, Sr. Dr. …, como presidente, e pelas Mmas. Juízas, Sra. Dra. …, e Sra. Dra. …, como juízas adjuntas. O arguido vem deduzir a recusa da Mma. Juíza Sra. Dra. …, nos seguintes termos: - O requerente, por ter mudado de residência e não ter comunicado a alteração nos autos, só tomou conhecimento do processo quando foi detido para comparência, na segunda sessão da audiência de julgamento, na qual foi ouvido; - O processo teve origem no processo nº 4983/03.0TDLSB do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar no qual foi o requerente julgado e condenado pelo tribunal colectivo presidido pela Exma. Sra. …, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b), do C. Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão que veio posteriormente a ser alterada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ficando o requerente condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução; - No decurso da audiência de julgamento do processo nº 4983/03.0TDLSB do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, a Mma. Juíza Presidente, Sra. Dra. … denunciou ao Ministério Público os factos que constituem a base da acusação do presente processo, considerando indiciada a prática pelo requerente de um crime de burla qualificada, determinando a transcrição dos depoimentos das testemunhas … e … e a extracção de certidão de tais depoimentos e autos de inquirição, e ordenando a sua remessa ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes; - Nos presentes autos, o requerente foi detido e apresentado na segunda sessão da audiência de julgamento, tendo sido inquirido pelo Mmo. Juiz Presidente sobre os factos pelos quais está acusado; - Mas a Mma. Juíza, Sra. Dra. …em vez de pedir esclarecimentos, interrogou de novo o requerente, e não apenas sobre os factos da acusação mas também sobre os factos relacionados com o processo nº 4983/03.0TDLSB do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, misturando os dois processo, fazendo-o de forma agressiva e exaltada, com comentários e juízos de valor sobre o recorrente, pondo em causa o seu direito a ser julgado com imparcialidade; - Tendo a Mma. Juíza, Sra. Dra. … tido intervenção, como presidente do julgamento, num anterior processo do requerente que conduziu à instauração do presente processo por actuação processual daquela Magistrada, está verificada uma situação que, objectivamente, pode gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade para agora, de novo o julgar, estando pois verificados os requisitos da suspeição, previstos no art. 43º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal. E conclui, pedindo o deferimento da recusa da Mma. Juíza com a consequente anulação dos autos por si praticados, designadamente o interrogatório de arguido ocorrido na sessão da audiência de julgamento do dia 6 de Outubro de 2008. A Mma. Juíza recusada pronunciou-se sobre o requerimento, dizendo: - Na audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 4983/03.0TDLSB, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, a que presidiu e de cujo acórdão foi relatora, foi determinada, por iniciativa do colectivo, a oportuna transcrição dos depoimentos de duas testemunhas e a extracção de certidão dos mesmos, bem como de outros autos de inquirição e documentos, e sua remessa ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, isto por se mostrar indiciada a prática pelo arguido de um crime de burla; - O processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar teve origem nesta certidão; - Na audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, referido, limitou-se a, nos termos do art. 345º, nº 1, do C. Processo Penal, a esclarecer dúvidas suscitadas pelas declarações do arguido a instâncias de outros intervenientes processuais relativamente ao conteúdo de documentos existentes no processo, sem qualquer juízo prévio sobre tais declarações, e com o único intuito de contribuir para a descoberta da verdade. Foram ordenadas as diligências de prova consideradas necessárias. Colhidos os vistos e remetidos os autos para serem submetidos à presente conferência, cumpre decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO. 1. Os tribunais são, na nossa ordem jurídica, os órgãos de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). O princípio fundamental da independência dos tribunais encontra-se consagrado no art. 203º da Lei Fundamental, que estabelece: “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.”. A plena aplicação deste princípio exige a independência dos juízes e impõe a sua imparcialidade, qualidades que são também garantidas pela Constituição da República (art. 216º) e afirmadas pela lei ordinária (art. 4º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais). 1.1. Para assegurar a efectiva imparcialidade do julgador e, por isso, garantir a todo e qualquer cidadão – pois que de um direito destes se trata – um processo justo e equitativo, o C. Processo Penal, no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, regula o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz. Relativamente à recusa, estabelece o art. 43º, nº 1 deste código: “A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”. Por sua vez, dispõe o nº 2 do mesmo artigo: “Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.”. O legislador acolheu assim um conceito aberto, abrangendo todos os motivos adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. Porém, nem sequer a situação tipificada no nº 2 citado constitui, por si mesma, motivo de recusa. Não basta um qualquer motivo, pois a lei exige que ele seja sério e grave. E esta dupla qualificação do motivo terá que ser efectuada, à míngua de outro critério, com o recurso ao senso e experiência comuns. Por outro lado, a qualificação do motivo deve ser objectivamente considerada ou seja, não é o simples convencimento do requerente sobre aquela qualificação suficiente para que se verifique a suspeição. Ela terá que ser aferida em função do juízo do cidadão médio, representativo da comunidade (cfr. Acs. da R. de Coimbra de 10/07/1996, CJ, XXI, IV, 62 e da R. de Lisboa de 09/03/2006, CJ, XXXI, II, 133). Em suma, e como se pode ler no acórdão desta Relação, citado, “ (…) entre o motivo e a desconfiança terá de existir uma situação relacional lógica que justifique o juízo de imparcialidade, de forma clara e nítida, baseado na seriedade e gravidade do motivo subjacente.”. 1.2. O incidente de recusa pode ser deduzido, em 1ª instância, até ao início da audiência ou até ao início do debate instrutório, só podendo sê-lo posteriormente, até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam tenham tido lugar ou tenham sido conhecidos do requerente, após o início da audiência ou do debate (art. 44º do C. Processo Penal). E têm legitimidade para o deduzir, o Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis (art. 43º, nº 3 do C. Processo Penal). Na verdade, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito (nº 4 do artigo citado). O requerente é o arguido do processo cujo tribunal é integrado pela Mma. Juíza recusada pelo que tem legitimidade para deduzir o incidente. Por outro lado, deve o mesmo considerar-se tempestivo, apesar de ter sido deduzido já no decurso da audiência de julgamento, pois que o fundamento da agressividade e exaltação da Magistrada Judicial apenas poderia ter lugar no decurso desta diligência, e o fundamento da comunicação pela Magistrada Judicial ao Ministério Público dos factos que integram a acusação do presente processo apenas ganhou actualidade para o requerente quando, ao ser presente a julgamento, nas circunstâncias em que o foi, se apercebeu da constituição do colectivo. 2. Como se viu, o requerente invoca um duplo fundamento para deduzir a escusa: a Mma. Juíza recusada presidiu a julgamento seu e participou os factos pelos quais, agora, está a ser julgado; a Mma. Juíza recusada interrogou-o em julgamento, de forma agressiva e exaltada, tecendo comentários e juízos de valor a seu respeito e misturando o processo actual e o processo já julgado. 2.1. Começando por este último fundamento, diremos, em primeiro lugar que, nos termos do art. 345º, nº 1, do C. Processo Penal, dispondo-se o arguido a prestar declarações, cada um dos juízes pode fazer-lhe perguntas sobre os factos imputados e pode solicitar esclarecimentos sobre as declarações prestadas. E como bem se entende, estas perguntas podem dizer directamente respeito a tais factos, como podem referir-se também a factos com aqueles outros relacionados, não ignorando certamente o requerente que o processo em julgamento teve origem em factos igualmente abordados naquele outro processo e que aí foram considerados provados. Por outro lado, o requerente não concretiza os juízos de valor e comentários que diz terem sido proferidos pela Mma. Juíza, como também não concretiza em que se traduziu a exaltada e agressiva conduta desta mesma Magistrada. Assim, não se vê que, por este lado, exista sequer motivo capaz de gerar a desconfiança sobre a imparcialidade da Mma. Juíza. 2.2. Atentemos agora no primeiro fundamento invocado, fixando os factos com relevo para a questão sub judice. Assim: a) A audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 4983/03.0TDLSB, do 2º Juízo do Tribunal judicial da comarca de Tomar, em que era arguido Sérgio Paulo de Almeida Mesquita Ribeiro ora requerente, foi presidida pela Mma. Juíza, Sra. Dra. …; b) Por acórdão de 20 de Novembro de 2006, proferido no referido processo comum colectivo nº 4983/03.0TDLSB, do 2º Juízo da comarca de Tomar, relatado pela Mma. Juíza, foi o arguido e requerente … condenado, como autor material de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b) do C. Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, e absolvido da prática de um crime de infidelidade; c) Por acórdão de 18 de Abril de 2007, desta Relação, foi aquela pena alterada, ficando o arguido e requerente … condenado, pela prática do mencionado crime, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, sob condição de pagamento ao ofendido da quantia de 35.000.000$00 no prazo de dois anos; d) No acórdão de 20 de Novembro de 2006, proferido na 1ª instância, foi ainda determinado o seguinte: “Porque se mostra indiciada a prática de um crime de burla qualificada, pelo arguido …, determina-se a oportuna transcrição dos depoimentos das testemunhas … e … prestados em audiência de julgamento, bem como a extracção de certidão de tais depoimentos e, ainda, dos autos de inquirição de fls. 462 a 465, da certidão de fls. 397 a 400 e das escrituras cujas cópias certificadas se encontram a fls. 405 a 414 e a sua remessa aos serviços do Mº.Pº. para os fins tidos por convenientes.”; e) A indiciação referida na alínea anterior tem suporte, como resulta da fundamentação do acórdão de 20 de Novembro de 2006 – análise e discussão da medida concreta da pena – nos pontos 60 a 71, dos factos provados do mesmo acórdão, que correspondem, no essencial, aos factos integradores da acusação proferida no processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, de que o presente incidente é apenso; f) O Tribunal Colectivo do processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar tem a seguinte composição: juiz presidente, o Sr. Dr. …, juízas adjuntas, a Sra. Dra. … e a Sra. Dra. …. Posto isto. Já sabemos que a seriedade e gravidade do motivo causadoras da desconfiança sobre a imparcialidade do juiz tem que ser valorada objectivamente, não bastando para os efeitos previstos no art. 43º, nº 1, do C. Processo Penal, o simples convencimento subjectivo do Ministério Público, do arguido, do assistente e das partes civis, sendo a partir das regras da experiência comum que tal valoração deve ser efectuada. E podemos dizer que existe a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz quando alguma circunstância revele, como possível e provável aos olhos da comunidade, o seu comprometimento com um pré-juízo sobre o objecto do processo a decidir. Pois bem, não está em causa saber se a Mma. Juíza é Magistrada idónea para intervir no processo, pois com toda a certeza que o é. Mas o que para o caso releva é saber se para a comunidade, através do cidadão médio que a representa, a circunstância de a Mma. Juíza integrar, embora como adjunta, o tribunal colectivo que julga o arguido por factos que, no seu núcleo essencial, foram denunciados por aquela Magistrada ao Ministério Público, no âmbito de um outro julgamento a cujo tribunal colectivo presidiu, é de molde a fazê-la suspeitar da imparcialidade da mesma, com o consequente prejuízo para o arguido. E parece-nos que a resposta à questão colocada terá que ser afirmativa. Na verdade, o cidadão médio não deixará de supor que o juízo que a Mma. Juíza, ainda que, repete-se, como adjunta, venha a formular sobre a acusação em julgamento, será muito provavelmente condicionado pelo conhecimento prévio que tem dos factos e inerente valoração que deles fez no primeiro processo. E nesta medida, tal juízo influirá na decisão que o tribunal colectivo venha a proferir sobre tal acusação. 2.3. Em conclusão, a reunião, na pessoa da Mma. Juíza, das qualidades de julgadora, ainda que como juíza adjunta, e de denunciante [como juíza presidente do tribunal colectivo de um primeiro julgamento] dos factos que constituem o núcleo fundamental da acusação, em especial, no que respeita ao imputado crime de burla, constitui, nos termos do art. 43º, nº 1, do C. Processo Penal, motivo de recusa, pelo que deve ser a mesma deferida. O deferimento da recusa determina a repetição de todos os actos já praticados em sede de audiência de julgamento. III. DECISÃO. Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em deferir o pedido de recusa da Mma. Juíza Sra. Dra. …, relativamente à sua intervenção no julgamento do processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, do 1º Juízo da comarca de Tomar.
1 I. RELATÓRIO. No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, o arguido … está a ser submetido a julgamento, mediante acusação do Ministério Público, que lhe imputa a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a), do C. Penal, sendo o Tribunal Colectivo que o julga composto pelo Mmo. Juiz, Sr. Dr. …, como presidente, e pelas Mmas. Juízas, Sra. Dra. …, e Sra. Dra. …, como juízas adjuntas. O arguido vem deduzir a recusa da Mma. Juíza Sra. Dra. …, nos seguintes termos: - O requerente, por ter mudado de residência e não ter comunicado a alteração nos autos, só tomou conhecimento do processo quando foi detido para comparência, na segunda sessão da audiência de julgamento, na qual foi ouvido; - O processo teve origem no processo nº 4983/03.0TDLSB do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar no qual foi o requerente julgado e condenado pelo tribunal colectivo presidido pela Exma. Sra. …, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b), do C. Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão que veio posteriormente a ser alterada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ficando o requerente condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução; - No decurso da audiência de julgamento do processo nº 4983/03.0TDLSB do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, a Mma. Juíza Presidente, Sra. Dra. … denunciou ao Ministério Público os factos que constituem a base da acusação do presente processo, considerando indiciada a prática pelo requerente de um crime de burla qualificada, determinando a transcrição dos depoimentos das testemunhas … e … e a extracção de certidão de tais depoimentos e autos de inquirição, e ordenando a sua remessa ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes; - Nos presentes autos, o requerente foi detido e apresentado na segunda sessão da audiência de julgamento, tendo sido inquirido pelo Mmo. Juiz Presidente sobre os factos pelos quais está acusado; - Mas a Mma. Juíza, Sra. Dra. …em vez de pedir esclarecimentos, interrogou de novo o requerente, e não apenas sobre os factos da acusação mas também sobre os factos relacionados com o processo nº 4983/03.0TDLSB do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, misturando os dois processo, fazendo-o de forma agressiva e exaltada, com comentários e juízos de valor sobre o recorrente, pondo em causa o seu direito a ser julgado com imparcialidade; - Tendo a Mma. Juíza, Sra. Dra. … tido intervenção, como presidente do julgamento, num anterior processo do requerente que conduziu à instauração do presente processo por actuação processual daquela Magistrada, está verificada uma situação que, objectivamente, pode gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade para agora, de novo o julgar, estando pois verificados os requisitos da suspeição, previstos no art. 43º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal. E conclui, pedindo o deferimento da recusa da Mma. Juíza com a consequente anulação dos autos por si praticados, designadamente o interrogatório de arguido ocorrido na sessão da audiência de julgamento do dia 6 de Outubro de 2008. A Mma. Juíza recusada pronunciou-se sobre o requerimento, dizendo: - Na audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 4983/03.0TDLSB, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, a que presidiu e de cujo acórdão foi relatora, foi determinada, por iniciativa do colectivo, a oportuna transcrição dos depoimentos de duas testemunhas e a extracção de certidão dos mesmos, bem como de outros autos de inquirição e documentos, e sua remessa ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, isto por se mostrar indiciada a prática pelo arguido de um crime de burla; - O processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar teve origem nesta certidão; - Na audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, referido, limitou-se a, nos termos do art. 345º, nº 1, do C. Processo Penal, a esclarecer dúvidas suscitadas pelas declarações do arguido a instâncias de outros intervenientes processuais relativamente ao conteúdo de documentos existentes no processo, sem qualquer juízo prévio sobre tais declarações, e com o único intuito de contribuir para a descoberta da verdade. Foram ordenadas as diligências de prova consideradas necessárias. Colhidos os vistos e remetidos os autos para serem submetidos à presente conferência, cumpre decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO. 1. Os tribunais são, na nossa ordem jurídica, os órgãos de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). O princípio fundamental da independência dos tribunais encontra-se consagrado no art. 203º da Lei Fundamental, que estabelece: “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.”. A plena aplicação deste princípio exige a independência dos juízes e impõe a sua imparcialidade, qualidades que são também garantidas pela Constituição da República (art. 216º) e afirmadas pela lei ordinária (art. 4º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais). 1.1. Para assegurar a efectiva imparcialidade do julgador e, por isso, garantir a todo e qualquer cidadão – pois que de um direito destes se trata – um processo justo e equitativo, o C. Processo Penal, no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, regula o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz. Relativamente à recusa, estabelece o art. 43º, nº 1 deste código: “A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”. Por sua vez, dispõe o nº 2 do mesmo artigo: “Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.”. O legislador acolheu assim um conceito aberto, abrangendo todos os motivos adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. Porém, nem sequer a situação tipificada no nº 2 citado constitui, por si mesma, motivo de recusa. Não basta um qualquer motivo, pois a lei exige que ele seja sério e grave. E esta dupla qualificação do motivo terá que ser efectuada, à míngua de outro critério, com o recurso ao senso e experiência comuns. Por outro lado, a qualificação do motivo deve ser objectivamente considerada ou seja, não é o simples convencimento do requerente sobre aquela qualificação suficiente para que se verifique a suspeição. Ela terá que ser aferida em função do juízo do cidadão médio, representativo da comunidade (cfr. Acs. da R. de Coimbra de 10/07/1996, CJ, XXI, IV, 62 e da R. de Lisboa de 09/03/2006, CJ, XXXI, II, 133). Em suma, e como se pode ler no acórdão desta Relação, citado, “ (…) entre o motivo e a desconfiança terá de existir uma situação relacional lógica que justifique o juízo de imparcialidade, de forma clara e nítida, baseado na seriedade e gravidade do motivo subjacente.”. 1.2. O incidente de recusa pode ser deduzido, em 1ª instância, até ao início da audiência ou até ao início do debate instrutório, só podendo sê-lo posteriormente, até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam tenham tido lugar ou tenham sido conhecidos do requerente, após o início da audiência ou do debate (art. 44º do C. Processo Penal). E têm legitimidade para o deduzir, o Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis (art. 43º, nº 3 do C. Processo Penal). Na verdade, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito (nº 4 do artigo citado). O requerente é o arguido do processo cujo tribunal é integrado pela Mma. Juíza recusada pelo que tem legitimidade para deduzir o incidente. Por outro lado, deve o mesmo considerar-se tempestivo, apesar de ter sido deduzido já no decurso da audiência de julgamento, pois que o fundamento da agressividade e exaltação da Magistrada Judicial apenas poderia ter lugar no decurso desta diligência, e o fundamento da comunicação pela Magistrada Judicial ao Ministério Público dos factos que integram a acusação do presente processo apenas ganhou actualidade para o requerente quando, ao ser presente a julgamento, nas circunstâncias em que o foi, se apercebeu da constituição do colectivo. 2. Como se viu, o requerente invoca um duplo fundamento para deduzir a escusa: a Mma. Juíza recusada presidiu a julgamento seu e participou os factos pelos quais, agora, está a ser julgado; a Mma. Juíza recusada interrogou-o em julgamento, de forma agressiva e exaltada, tecendo comentários e juízos de valor a seu respeito e misturando o processo actual e o processo já julgado. 2.1. Começando por este último fundamento, diremos, em primeiro lugar que, nos termos do art. 345º, nº 1, do C. Processo Penal, dispondo-se o arguido a prestar declarações, cada um dos juízes pode fazer-lhe perguntas sobre os factos imputados e pode solicitar esclarecimentos sobre as declarações prestadas. E como bem se entende, estas perguntas podem dizer directamente respeito a tais factos, como podem referir-se também a factos com aqueles outros relacionados, não ignorando certamente o requerente que o processo em julgamento teve origem em factos igualmente abordados naquele outro processo e que aí foram considerados provados. Por outro lado, o requerente não concretiza os juízos de valor e comentários que diz terem sido proferidos pela Mma. Juíza, como também não concretiza em que se traduziu a exaltada e agressiva conduta desta mesma Magistrada. Assim, não se vê que, por este lado, exista sequer motivo capaz de gerar a desconfiança sobre a imparcialidade da Mma. Juíza. 2.2. Atentemos agora no primeiro fundamento invocado, fixando os factos com relevo para a questão sub judice. Assim: a) A audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 4983/03.0TDLSB, do 2º Juízo do Tribunal judicial da comarca de Tomar, em que era arguido Sérgio Paulo de Almeida Mesquita Ribeiro ora requerente, foi presidida pela Mma. Juíza, Sra. Dra. …; b) Por acórdão de 20 de Novembro de 2006, proferido no referido processo comum colectivo nº 4983/03.0TDLSB, do 2º Juízo da comarca de Tomar, relatado pela Mma. Juíza, foi o arguido e requerente … condenado, como autor material de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b) do C. Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, e absolvido da prática de um crime de infidelidade; c) Por acórdão de 18 de Abril de 2007, desta Relação, foi aquela pena alterada, ficando o arguido e requerente … condenado, pela prática do mencionado crime, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, sob condição de pagamento ao ofendido da quantia de 35.000.000$00 no prazo de dois anos; d) No acórdão de 20 de Novembro de 2006, proferido na 1ª instância, foi ainda determinado o seguinte: “Porque se mostra indiciada a prática de um crime de burla qualificada, pelo arguido …, determina-se a oportuna transcrição dos depoimentos das testemunhas … e … prestados em audiência de julgamento, bem como a extracção de certidão de tais depoimentos e, ainda, dos autos de inquirição de fls. 462 a 465, da certidão de fls. 397 a 400 e das escrituras cujas cópias certificadas se encontram a fls. 405 a 414 e a sua remessa aos serviços do Mº.Pº. para os fins tidos por convenientes.”; e) A indiciação referida na alínea anterior tem suporte, como resulta da fundamentação do acórdão de 20 de Novembro de 2006 – análise e discussão da medida concreta da pena – nos pontos 60 a 71, dos factos provados do mesmo acórdão, que correspondem, no essencial, aos factos integradores da acusação proferida no processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar, de que o presente incidente é apenso; f) O Tribunal Colectivo do processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tomar tem a seguinte composição: juiz presidente, o Sr. Dr. …, juízas adjuntas, a Sra. Dra. … e a Sra. Dra. …. Posto isto. Já sabemos que a seriedade e gravidade do motivo causadoras da desconfiança sobre a imparcialidade do juiz tem que ser valorada objectivamente, não bastando para os efeitos previstos no art. 43º, nº 1, do C. Processo Penal, o simples convencimento subjectivo do Ministério Público, do arguido, do assistente e das partes civis, sendo a partir das regras da experiência comum que tal valoração deve ser efectuada. E podemos dizer que existe a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz quando alguma circunstância revele, como possível e provável aos olhos da comunidade, o seu comprometimento com um pré-juízo sobre o objecto do processo a decidir. Pois bem, não está em causa saber se a Mma. Juíza é Magistrada idónea para intervir no processo, pois com toda a certeza que o é. Mas o que para o caso releva é saber se para a comunidade, através do cidadão médio que a representa, a circunstância de a Mma. Juíza integrar, embora como adjunta, o tribunal colectivo que julga o arguido por factos que, no seu núcleo essencial, foram denunciados por aquela Magistrada ao Ministério Público, no âmbito de um outro julgamento a cujo tribunal colectivo presidiu, é de molde a fazê-la suspeitar da imparcialidade da mesma, com o consequente prejuízo para o arguido. E parece-nos que a resposta à questão colocada terá que ser afirmativa. Na verdade, o cidadão médio não deixará de supor que o juízo que a Mma. Juíza, ainda que, repete-se, como adjunta, venha a formular sobre a acusação em julgamento, será muito provavelmente condicionado pelo conhecimento prévio que tem dos factos e inerente valoração que deles fez no primeiro processo. E nesta medida, tal juízo influirá na decisão que o tribunal colectivo venha a proferir sobre tal acusação. 2.3. Em conclusão, a reunião, na pessoa da Mma. Juíza, das qualidades de julgadora, ainda que como juíza adjunta, e de denunciante [como juíza presidente do tribunal colectivo de um primeiro julgamento] dos factos que constituem o núcleo fundamental da acusação, em especial, no que respeita ao imputado crime de burla, constitui, nos termos do art. 43º, nº 1, do C. Processo Penal, motivo de recusa, pelo que deve ser a mesma deferida. O deferimento da recusa determina a repetição de todos os actos já praticados em sede de audiência de julgamento. III. DECISÃO. Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em deferir o pedido de recusa da Mma. Juíza Sra. Dra. …, relativamente à sua intervenção no julgamento do processo comum colectivo nº 726/06.5TATMR, do 1º Juízo da comarca de Tomar.