Processo:2126/10.3TDLSB.L1-5
Data do Acordão: 30/05/2016Relator: JOSÉ ADRIANOTribunal:trl
Decisão: Meio processual:

1. A reapreciação da prova só determinará uma alteração da matéria de facto quando, daquele reexame, se concluir que as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, impõem uma decisão diversa, não podendo ocorrer tal alteração quando a reapreciação da prova apenas permita uma decisão diferente da proferida. 2. No decurso da audiência de julgamento, o MP requereu que fosse cumprido o disposto no art. 358.º, n.º 3, do CPP, tendo em vista uma eventual alteração da qualificação jurídica dos factos imputados, integradores de um crime de burla qualificada, e, na sequência dessa alteração da qualificação jurídica, a arguida acabaria por ser condenada por um crime diferente do imputado, ou seja, por um crime de abuso de confiança agravado. 3. Em termos práticos, a aludida alteração a que procedeu o tribunal ao abrigo do art. 358.º, n.º 3, do CPP, deveria, em princípio, ter na sua génese uma alteração fáctica, implicando que os factos alegados na acusação, segundo os quais o ofendido foi enganado e determinado, de forma ardilosa, a entregar o dinheiro à arguida, fossem excluídos dos factos provados, ou seja, deviam ter sido considerados não provados, sob pena de entrarem em contradição com a demais factualidade e com a conclusão (decisão) no sentido de que a apropriação se deu posteriormente à aludida entrega, através da mencionada inversão do título de posse. 4. No caso, a nova incriminação decorreu exclusivamente, não de uma qualquer alteração destes em função da prova que já havia sido produzida, mas de uma diferente leitura dos factos imputados feita pelo tribunal a quo, quanto ao enquadramento da relação existente entre a arguida e ofendido, em que aquela, no exercício das funções de gestora na CASA ... do Patriarcado, onde residia o segundo, ganhou toda a confiança deste, assumindo a administração e gestão de todos os seus bens pessoais, nomeadamente do dinheiro que o mesmo possuía. 5. Nada existindo nos autos, nem tendo sido suscitada qualquer situação, com capacidade de influir na liberdade de decisão e de acção da arguida, teremos de concluir que esta agiu de forma livre e consciente e que teve o propósito deliberado de se apropriar das aludidas quantias em dinheiro. 6. O conhecimento que a arguida tem de determinada situação ou proibição legal, elemento que respeita à esfera psíquica da arguida, é praticamente impossível de demonstração por prova directa e imediata, salvo se a própria confessar tal conhecimento. 7. Na falta desta confissão, a respectiva prova terá de resultar, necessariamente, dos demais factos provados, em conjugação com o demais circunstancialismo que os rodeia, assumindo relevância particular a ausência de razões sérias para supor que a arguida, no descrito circunstancialismo, provavelmente não teria condições para conhecer a proibição

Profissão: Data de nascimento: 1/1/1970
Tipo de evento:
Descricao acidente:

Importancias a pagar seguradora:

Relator
JOSÉ ADRIANO
Descritores
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA ABUSO DE CONFIANÇA AGRAVADO ERRO SOBRE A PROIBIÇÃO
No do documento
RL
Data do Acordão
05/31/2016
Votação
UNANIMIDADE
Texto integral
S
Meio processual
RECURSO PENAL
Decisão
IMPROCEDENTE
Sumário
1. A reapreciação da prova só determinará uma alteração da matéria de facto quando, daquele reexame, se concluir que as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, impõem uma decisão diversa, não podendo ocorrer tal alteração quando a reapreciação da prova apenas permita uma decisão diferente da proferida. 2. No decurso da audiência de julgamento, o MP requereu que fosse cumprido o disposto no art. 358.º, n.º 3, do CPP, tendo em vista uma eventual alteração da qualificação jurídica dos factos imputados, integradores de um crime de burla qualificada, e, na sequência dessa alteração da qualificação jurídica, a arguida acabaria por ser condenada por um crime diferente do imputado, ou seja, por um crime de abuso de confiança agravado. 3. Em termos práticos, a aludida alteração a que procedeu o tribunal ao abrigo do art. 358.º, n.º 3, do CPP, deveria, em princípio, ter na sua génese uma alteração fáctica, implicando que os factos alegados na acusação, segundo os quais o ofendido foi enganado e determinado, de forma ardilosa, a entregar o dinheiro à arguida, fossem excluídos dos factos provados, ou seja, deviam ter sido considerados não provados, sob pena de entrarem em contradição com a demais factualidade e com a conclusão (decisão) no sentido de que a apropriação se deu posteriormente à aludida entrega, através da mencionada inversão do título de posse. 4. No caso, a nova incriminação decorreu exclusivamente, não de uma qualquer alteração destes em função da prova que já havia sido produzida, mas de uma diferente leitura dos factos imputados feita pelo tribunal a quo, quanto ao enquadramento da relação existente entre a arguida e ofendido, em que aquela, no exercício das funções de gestora na CASA ... do Patriarcado, onde residia o segundo, ganhou toda a confiança deste, assumindo a administração e gestão de todos os seus bens pessoais, nomeadamente do dinheiro que o mesmo possuía. 5. Nada existindo nos autos, nem tendo sido suscitada qualquer situação, com capacidade de influir na liberdade de decisão e de acção da arguida, teremos de concluir que esta agiu de forma livre e consciente e que teve o propósito deliberado de se apropriar das aludidas quantias em dinheiro. 6. O conhecimento que a arguida tem de determinada situação ou proibição legal, elemento que respeita à esfera psíquica da arguida, é praticamente impossível de demonstração por prova directa e imediata, salvo se a própria confessar tal conhecimento. 7. Na falta desta confissão, a respectiva prova terá de resultar, necessariamente, dos demais factos provados, em conjugação com o demais circunstancialismo que os rodeia, assumindo relevância particular a ausência de razões sérias para supor que a arguida, no descrito circunstancialismo, provavelmente não teria condições para conhecer a proibição
Decisão integral
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:
 
a)            RELATÓRIO
 
1. Em processo comum e sob acusação do Ministério Público, foi submetida a julgamento, perante tribunal colectivo, na 1.ª Secção Criminal da Instância Central, Comarca de Lisboa, a arguida Maria
No final, foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo (transcrição):
«Face ao exposto, o Tribunal Colectivo delibera:
I - Da acusação:
27.      Absolver a Arguida Maria da prática, em autoria material, de 1 (um) crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.°, n.° 1 e 218.°, n.° 2, alíneas a), c) e d), do Código Penal;
28.                  Operada a convolação legal, condenar a Arguida Maria pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo artigo 205.°, n.° 1 e n.° 4, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
29.                  Suspender a execução da pena de prisão, pelo período de2 (dois) anos e 6 (seis) meses, a contar da data do trânsito em julgado desta decisão,
i- Sob a condição da arguida entregar a quantia de 2.000,00 euros a uma instituição de solidariedade social, à sua escolha, devendo comprovar nos autos, no final do primeiro ano da suspensão a entrega do montante de 1.000,00 euros, e no final do segundo ano da suspensão a entrega do mesmo valor de 1.000,00 euros.
II - Da responsabilidade por custas:
30.      Condenar a Arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, bem como nos demais encargos, sem prejuízo do apoio judiciário (artigos 513.° e 514.° do Código de Processo Penal e 8o, n° 4 e 5, do Regulamento das Custas Processuais).
…»
 
***
2. Inconformada, recorreu a arguida, encerrando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«98.ª- Para efeito a recorrente considera incorretamente julgados, os pontos 3, 21, 24 e 25 do Douto acórdão:
26.      Depois de ganhar toda a confiança de SG, a arguida convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro, nunca tendo sido a sua intenção devolver-lhas e a assinar cheques em branco, que posteriormente ela preencheu como entendeu para o seu benefício;
27.      Com sua conduta ardilosa, a arguida conseguiu delapidar todas as economias de uma vida, o que alcançou com sucesso através do engano que deliberadamente criou em SG, pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu;
28.      A arguida agiu sempre deliberada, livre e consciente;
29.   Agiu ciente da reprovabilidade penal da sua conduta.
99.ª - Por isso e perante estas provas, impõe-se alterar a decisão do tribunal "a quo" quanto ao julgamento dos factos e do direito, referidos inicialmente para a seguinte:
100.ª - Absolver a arguida porque os elementos do crime não estão preenchidos, porque não foi consumado e em ultima ratio porque não há provas bastantes para a condenação.
Nestes termos e nos mais de Direito, V.ªs Exc.ªs doutamente suprirão, deve o douto acórdão ser revogado por outro que se coadune com a pretensão exposta, qual seja, a Absolvição da arguida, fazendo a costumada JUSTIÇA!»
 
3. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, concluindo pela manutenção do acórdão recorrido.
4. Subidos os autos, neste Tribunal da Relação o Sr. Procurador-Geral Adjunto, aderindo aos fundamentos da resposta apresentada pelo MP em primeira instância, pugna igualmente pela improcedência do recurso e a subsequente manutenção do decidido.
5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, veio a arguida reafirmar as razões pelas quais entende que o recurso deve proceder.
6. Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
 
***
b)            FUNDAMENTAÇÃO
1 - Vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto (transcrição):
«II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 
1. Factos Provados:
Com relevância para a decisão de mérito da causa, resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação:
1. Entre o início de 2009 e Abril de 2010, a arguida exerceu funções de gestora na Casa ..., sita na Avenida ..., em Lisboa.
32.      A arguida acabou por assumir também a administração e gestão dos assuntos pessoais, de saúde e patrimoniais de alguns dos sacerdotes ali residentes, designadamente, do Padre SG, nascido a 05/05/1923.
33.      Depois de ganhar toda a confiança de SG, a arguida convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro, nunca tendo sido sua intenção devolver-lhas e a assinar cheques em branco, que posteriormente ela preencheu como entendeu para seu benefício.
34.      Assim, no dia 3 de Agosto de 2009, a arguida levou SG à agência de Picoas, do Banco BPI e convenceu-o a abrir uma conta bancária com n.° 8-4330922.000.001, tendo fornecido à funcionária do banco o contacto de telemóvel 915591160, utilizado pela arguida.
35.      A arguida persuadiu, ainda, SG a resgatar todas as suas poupanças, aplicadas em certificados de aforro, segundo a conta de aforro n.° 19084862, num valor total de €300.126,17 (Trezentos Mil, Cento e Vinte e Seis Euros e Dezassete Cêntimos), valores que fez creditar em contas pessoais ou de terceiros, mas em seu benefício.
6.         Com efeito, por sugestão e incitamento da arguida, que o acompanhou à estação dos CTT dos Restauradores, SG solicitou novas vias dos certificados de aforro e o respectivo resgate total, recebendo então um cheque no valor de €300.126,17, que depositou na conta bancária supra referida.
7.   No dia 5 de Agosto de 2009, SG, acompanhado pela arguida compareceu de novo, na agência do Banco BPI, sita em Picoas, Lisboa e solicitou, por ordem da arguida, o levantamento avulso da quantia de €300.123,57, pedido que foi satisfeito.
8.   Esta quantia foi entregue à arguida que a fez sua, causando à vítima um prejuízo em igual montante, pois nunca foi intenção da vítima perder as poupanças de uma vida e ficar sem dinheiro para as suas despesas.
6. Em Novembro de 2009, a sobrinha de SG foi informada pelo gestor da conta bancária n.° 45320782612 do seu tio, de que estariam a ser emitidos vários cheques por SG, na ordem dos €10.000,00/ €15.000,00, valores excessivos para as despesas que este tinha habitualmente, sendo que alguns desses cheques foram depositados em contas da arguida.
9.         Mais tarde, novamente, pelo mesmo gestor bancário, Teresa... foi informada de que havia sido devolvido, por falta de provisão, um cheque bancário assinado pelo tio e que, entretanto, haviam já sido requisitados doze novos cheques.
11. Os cheques indicados emitidos em nome de SG, mas contra a sua vontade e conhecimento vieram a ser depositados nas seguintes contas bancárias, conforme graficamente a seguir se descrimina:
 


•DataDOCValorConta destinoTitular destino                                Fls. 
07-01-2009CHQ 4668696,00 €CGD
0127034062530CASA ...372
28-01-2009CHQ 4862600,00 €CGD
0127034062530CASA ...373
06-02-2009CHQ 49595.000,00 €CGD
0127034062530ENDOSSO DE SG374
06-04-2009CHQ 62201.140,00 €CGD
0127034062530CASA ...375
08-05-2009CHQ 6123630,00 €CGD
0127034062530CASA ...376
09-06-2009CHQ 5929570,00 €CGD
0127034062530CASA ...377
16-06-2009CHQ 6026570,00 €CGD
0127034062530CASA ...378
04-07-2009CHQ 63178.000,00 €BCP 165417787NFACALI BAIO379
21-07-2009CHQ 641412.000,00 €CGD
0127034062530CASA ...380
14-08-2009CHQ 6705695,00 €CGD
0127034062530CASA ...381
28-10-2009CHQ 699610.000,00 €BCP 165417787NFACALI BAIO382
28-10-2009CHQ 689910.000,00 €BPI 0-329638411Maria383


 
12. Após o crédito do valor de €300.123,57 na conta bancária n.° 3-3296384/000/001, titulada pela arguida MF foram efectuados os seguintes movimentos, conforme graficamente se descrimina:
 


 Data           Mov ValorConta destinoTitular/movimentador            Fls. 
 05-08-09EN300.126,17 €BPI 0-329638411 
  
05-08-09  -10.000,00 MF  
  LEV€ DAVID470
 05-08-09     
  TD-3.500,00 €BPI 7-2782726/000/001CD471
 05-08-09     
  TD-4.000,00 €BCP 003300000018053694813António472
 05-08-09 247.000,00CONSTITUIÇÃO DE DEPOSITO AMF 
  CDP€PRAZODAVID473
 06-08-09 -18.000,00   
  TD€BCP 003300000018053694813António640
 10-08-09     
  TD-1.079,50 €CGD 003503930004516050003António474
 11-08-09 247.000,00LEVANTAMENTO  DE DEPOSITO  
  LDP€PRAZO  
 11-08-09SBS-47.000,00SUBSCRIÇÃO AFORRO FAMILIARMF475
       
12-08-09SBS-50.000,00 €SUBSCRIÇÃO  BPI REFORMA INVESTIM PPRMaria640
12-08-09TD-1.300,00 €BCP 003300000016541778705NFACAL I640
12-08-09TD-4.000,00 €CGD 003521750001219753074Maria640
12-08-09TD-1.200,00 €BPI 7-2782726/000/001CD640
14-08-09TU150.000,00 €SUBSCRIÇÃO DE OBRIGAÇÕESMaria476
17-08-09TDK-2.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI477
17-08-09CH-11.000,00 €LEVANTAMENTOMaria478
20-08-09Tl90.000,00 €VENDA FORA DE BOLSAMaria479
24-08-09CH-16.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI482
24-08-09TD-80.000,00 €CGD 003503940001077240035LUIS     MANUEL A FERREIRA484
02-09-09CH-10.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI487
08-09-09CH-1.300,00 €BCP 101109018ALAGE FATI488
30-09-09UTC6.927,70 €FINANCIAMENTO CORDÃO PORTG E ANELMaria490
30-09-09CH-6.927,70 € 
  
  
 
30-09-09CH-1.000,00 €BCP 101109018ALAGE FATI491
02-10-9CH-10.000,00  €BCP 003300000016541778705NFACALI492
       
 02-10-09CH-1.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI493
 12-10-09RSG41.000,00 €RESGATE DE NOVO AFORRO FAMILIARMaria494
 14-10-09CH-19.000,00 €BCP 101109018ALAGE FATI496
 14-10-09LEV-20.000,00 €LEVANTAMENTOMaria497
 16-10-09CH-2.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI498
 20-10-09Tl40.798,20 €VENDA DE TÍTULOS FORA DE BOLSAMF 499
 21-10-09RSG3.837,32 €RESGATE DE OBRIGAÇÕESMaria501
 21-10-09CH-50.000,00 €LEVANTAMENTO  À  BOCA DE CAIXAMF 643
 23-10-09Tl18.888,34 €VENDA FORA DE BOLSAMaria504
 27-10-09RSG24.783,95 €RESGATE INVESTIMENTO PPRMaria505
 28-10-09DEP10.000,00 €CHQ     6565416899 SGMaria506
 02-11-09DEP1.875,77 €CHQ    6652    E    6685 CASA ...Maria509
 03-11-09RSG3.495,49 €RESGATE SEGURA PPRMaria511
 18-11-09LEV-1.000,00 €LEVANTAMENTOMaria512
 24-11-09DEP10.000,00 €CHQ   7104260377   FÁB IGREJA PAROQUIALMaria513
  
20-11-09 
CH 
10.000,00 
BCP 003300000016541778705 
NFACALI 
515
       
 26-11-09RSG37.456,50 €SUBSTITUIÇÃO SEGURA E INVEST PPRP/AFORRO PPRMaria516
 26-11-09SBS-37.456,50 € 
  
  
 
 26-11-09DEP4.500,00 € NID 
 26-11-09CH-4.500,00 €BCP 003300000016541778705NID520
 03-12-09CH-1.500,00 €BST 28353808.001ANTÓNIO CONCEIÇÃO LOPES521
 18-12-09UTC24.000,00 €UTILIZAÇÃO DE CAPITAL CREDITO CONTA 640
 21-12-09TD-20.000,00 €BPI 3-3287522.000.001FLORES ADALILA, LDA.522
 29-12-09TD-4.000,00 €BPI 3-3287522.000.001FLORES ADALILA, LDA.523
 12-01-10EN4.000,00 €CHQ 4344 MANUEL MAGALHÃES FERNANDESMaria524
 13-01-10LEV-2.000,00 €LEVANTAMENTOMF 525
 18-01-10EN3.741,54 €CHQ 6584216740 CASA ...RETIF A ORD PI FLORINDA526
 15-01-10LEV-3.000,00 €LEVANTAMENTOMaria528
 29-01-10EN3.000,00 €CHQ  1342    MANUEL ALVES LOURENÇO 529
 01-04-10EN1.041,00 €TB PE. RUI ALBERTO S. ANDRADE SILVA 531


 
13. Destes movimentos, foram transferidos por ordem da arguida MF, para as contas Millennium BCP com o NIB 003300000018053694813 e CGD com o NIB 003503930004516050003, ambas tituladas por António, o valor de € 23.079,50.
14. Para a conta bancária Millennium BCP com o n.° 3-3287522.000.001, titulada pela sociedade "Flores Adalila, Lda.", de que era sócia-gerente a arguida MF e a sua filha CD, foram transferidas quantias monetárias no valor total de € 24.000,00.
15. Por ordem da arguida para a conta bancária Millennium BCP com o NIB 003300000016541778705, titulada porBaio, foi transferido o total de € 56.800,00.
16. Para a conta bancária Millennium BCP com o n.° 101109018, titulada por Alage Fati, foi transferida no total a quantia de € 21.300,00, por ordem da arguida.
17. Através desta conta, a arguida adquiriu objectos em ouro, designadamente, um cordão e um anel, no valor de € 6.927,70.
18. A arguida ordenou ainda uma transferência bancária, no valor de € 80.003,12, a favor de Luís.
13. A arguida também aplicou o dinheiro que retirou à vítima, com a constituição de depósitos a prazo, subscrições de obrigações e/ou aforros e de planos poupança reforma, todos titulados e/ou tendo por pessoa segura/ beneficiária a arguida e, em caso de morte os seus herdeiros legais, tendo sido a própria a proceder aos respectivos resgates/levantamentos.
19. No dia 4 de Agosto de 2010 foi efectuada busca à residência da arguida, sita na Avenida ..., em Lisboa, tendo sido apreendida diversa documentação bancária comprovativa de que Maria era titular da conta bancária do BPI n.° 3-3296384/000/001.
13.    Com a sua conduta ardilosa, a arguida conseguiu delapidar todas as economias de uma vida, o que alcançou com sucesso através do engano que deliberadamente criou em SG, pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu.
13. A arguida moveu-se apenas por avidez e visando, tão só enriquecer ilegitimamente à custa do empobrecimento alheio.
20. Nos últimos meses de vida, SG viveu nas instalações da CASA ... apenas por caridade, já que deixou de ter dinheiro suficiente para fazer face às despesas com a sua permanência naquele local.
a)   A arguida agiu sempre deliberada, livre e conscientemente
b)   Agiu ciente da reprovabilidade penal da sua conduta.
 Mais se provou que:
32.  Do certificado de registo criminal da arguida não consta averbada qualquer condenação.
Percurso de vida e condições pessoais da arguida:
24.  A arguida esteve casada entre os 23 e os 34 anos de idade, tendo enviuvado.
25.  Desse relacionamento teve duas filhas, no presente, maiores de idade e integradas laboralmente.
26.  Depois de concluir o 4.° ano de escolaridade, a arguida começou a trabalhar como empregada de balcão, no ramo do vestuário, actividade que substituiu pelo exercício de funções administrativas nos Serviços do Patriarcado de Lisboa.
27.  Depois de aí permanecer largos anos foi internamente convidada para trabalhar no Lar da CASA ..., para o gerir em termos abrangentes e prestar serviços de geriatria.
28.  Embora essa transição lhe proporcionasse um acréscimo salarial de relevo, porquanto transitaria de 400 para 700 euros mensais remuneratórios, a arguida referiu ter aceite a proposta com algumas reservas, mas que não pôde contornar a situação de outra forma, porque reconheceu que tal decisão decorreu da gestão dos parcos recursos humanos existentes à época.
I.      Antes da data dos factos, a arguida havia acumulado funções laborais na sociedade "Flores Adalila, Lda.", por si gerida maioritariamente das vezes à distância, uma vez que era uma funcionária/ empregada que assumia a maioria das responsabilidades comerciais.
II.    Segundo o descrito pela arguida, a exploração dessa actividade não lhe permitia obter proventos suficientes, porquanto os mesmos ficavam aquém das responsabilidades económicas que tinha a assumir com o respectivo negócio.
III.   Esta situação que trouxe-lhe algumas repercussões negativas em termos económicos, e que a motivaram a contrair dois empréstimos, um bancário e outro a uma empresa privada de crédito.
IV.  No presente, e segundo a descrição da arguida, esses empréstimos ainda são mantidos, sob condições de amortização recentemente negociadas, por alegada insuficiência económica.
32.     Na actualidade, está a pagar um valor total de aproximadamente 170,00 euros mensais.
V.    Actualmente, embora a arguida apenas viva com uma das filhas, também beneficia da ajuda económica da outra filha já independente, atendendo a que ambas estão laboralmente activas e pelo facto da própria ter sido despedida.
32.Embora a arguida esteja inscrita em empresas de trabalho temporário, não tem consigo contornar a sua situação de inactividade de forma sustentável, uma vez que têm sido poucos os trabalhos que conseguiu angariar, ao nível da prestação de cuidados de limpeza/ manutenção e de geriatria.
32. A arguida beneficia de 194,00 euros de pensão de viuvez.*2. Factos Não Provados:
Com relevo para a decisão final, não resultaram provados os seguintes factos:
6.         Aproveitando-se da debilidade física e psicológica de SG, a arguida foi alimentando sentimentos amorosos, que aquele tinha para com ela, criando nele a expectativa de vir a ser correspondido e com a arguida estabelecer um futuro relacionamento amoroso.
7.         Desde o início a vontade da arguida era a de enriquecer à custa do património de SG e na execução dos seus intentos, com vista a transferir todo o dinheiro que este tivesse para si, a arguida convenceu-o de que seria ela a tratar da gestão do seu dinheiro, para que os seus familiares não viessem a herdar quaisquer valores.
8.         O primeiro passo foi afastar progressivamente os familiares do idoso da sua esfera pessoal, nomeadamente, Teresa, por quem SG deixou de manifestar qualquer interesse.
d) Acerca dos cheques emitidos à ordem da CASA ..., os mesmos foram entregues pela arguida já devidamente assinados pelo Pe. SG, tendo ela dito tratarem-se de "doações" do mesmo à CASA ..., sendo que posteriormente parte desses valores desapareceram das contas da CASA ....*3. Motivação da Decisão de Facto:
Para a decisão sobre a matéria de facto considerada provada, o Tribunal fundou a sua convicção na análise ponderada e valoração crítica da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, em conjugação com a prova documental junta aos autos, a qual foi apreciada à luz das regras da experiência comum e da lógica, e de acordo com a livre convicção dos julgadores (artigo 127.° do Código de Processo Penal). Acresce que não foi produzida qualquer prova, relevante e efectiva, em sentido contrário à verificação destes factos.
Concretizando:
3.1. Declarações para memória futura:
Em sede de audiência de julgamento procedeu-se à leitura das declarações para memória futura, prestadas pelo ofendido Padre SG, em 17 de Novembro de 2010 (auto de fls. 268/ 269), no qual:
«Confirma as declarações prestadas, que lhe foram lidas na íntegra, e que constam de fls. 16 e seguintes e 173 e seguintes.
À data dos factos tinha muita estima e consideração por MF, a qual cuidava de si, dava-lhe a medicação e era afectuosa.
Era sua intenção quando falecesse que o seu dinheiro fosse distribuído pelas sobrinhas e pela Igreja Católica.
Actualmente, e caso fosse possível reaver o seu dinheiro, gostaria que esse fosse na totalidade entregue à Igreja Católica e em especial à CASA ....».
Da conjugação das declarações prestadas em 18 de Junho de 2010 (fls. 16 a 18 dos autos), e em 06 de Agosto de 2010 (fls. 173/ 173 verso) resulta, em síntese e com relevo, o seguinte:
- No que respeita à relação com a arguida Maria, o Padre SG declarou que era uma relação de amizade e de confiança, negou qualquer relação amorosa, bem como qualquer pedido de casamento, tendo confirmado que era a arguida quem geria o dinheiro que o mesmo tinha na sua posse, na CASA ..., e no Banco.
- Quanto aos certificados de aforro, o Padre SG declarou que, por desconfiar das sobrinhas, Teresa e Anabela, no sentido de lhe retirarem os seus bens e dinheiro, e também porque para tal foi impulsionado e sugestionado pela Arguida, que julgava pessoa de bem e de confiança, retirou, em altura que não sabe precisar, os referidos certificados de aforro, da conta bancária do BCP, para o Banco BPI, numa conta bancária co-titulada pelo depoente e pela Arguida, entretanto aberta por ambos, para melhor gestão e, como lhe indicou a Arguida, "maior protecção" dos mesmos.
Recebeu o cheque no valor de 300.126,17 euros dos CTT, estando na altura acompanhado da Arguida, na Estação dos Correis dos Restauradores.
O cheque foi depositado por si no Balcão do BPI de Picoas, ou no mesmo dia ou no dia seguinte, tendo também para o efeito sido acompanhado pela Arguida.
Nunca teve intenção de dar, oferecer ou de qualquer forma presentear a Arguida, ou outra pessoa, com o referido dinheiro, que quando depositou na sua conta era para ser seu.
-        No que concerne aos cheques, o Padre SG declarou que, pelo menos por uma vez, em altura que não se lembra exactamente, assinou um cheque bancário no valor de 1.500,00 euros, para que a Arguida o gastasse com ela própria, e porque a mesma lhe pediu, dizendo que necessitava de dinheiro.
Reconhece que, a dada altura, perdeu o controle à gestão que a Arguida fazia dos cheques que lhe entregava, alguns à ordem da CASA ..., outros em branco, pelo que sabe hoje que a Arguida terá abusado da sua confiança, chegando a levantar cheques que ele não assinou.
-  Mais declarou que sente-se lesado em valor não determinado e respeitante aos seus certificados de aforro, à sua pensão atribuída pela segurança social, e às quantias levantadas por via de cheque bancário, sem a sua autorização.
3.2. Declarações da Assistente:
O Tribunal valorou as declarações da assistente Teresa (sobrinha do Padre SG), concertadas com as declarações para memória futura, a globalidade dos depoimentos das testemunhas e o teor dos documentos constantes dos autos.
A assistente revelou algum conhecimento directo dos factos, em virtude da relação familiar e próxima com o Padre SG e depôs de modo objectivo, claro, coerente e credível.
Confirmou que o Padre SG residiu na CASA ..., desde 2008 até à data do seu falecimento.
Quanto aos certificados de aforro, declarou que o Padre SG era o titular e a assistente movimentadora, que aquele recebia mensalmente o respectivo extracto, referia que tinha cerca de 300.000,00 euros, e nunca havia levantado qualquer montante depositado na respectiva conta aforro. Teve conhecimento do resgate dos certificados de aforro, através do Instituto de Gestão do Crédito Público.
Relativamente aos cheques, esclareceu que o Padre SG lhe disse que só assinava os cheques e o resto era preenchido pela Arguida; foi contactada pelo respectivo gestor da conta, que a informou que estavam a ser movimentados vários cheques, para além do cheque que o Padre SG emitia, mensalmente, à ordem da CASA ..., para pagamento da mensalidade. Teve também conhecimento, através do gestor de conta, da requisição de 12 cheques.
3.3. Prova testemunhal:
O Tribunal baseou-se, igualmente, na globalidade dos depoimentos das seguintes testemunhas (conjugados entre si e conjugados com as declarações para memória futura do Padre SG, as declarações da assistente, e o teor dos documentos):
- A testemunha Catarina (filha da arguida) demonstrou algum conhecimento pessoal da factualidade em causa, na medida em que trabalhou na CASA ..., desde 2003 a 2010, prestando cuidados de enfermagem.
Referiu, de modo objectivo, seguro, consistente e credível, que o pagamento do seu vencimento mensal era efectuado pela sua mãe, ora arguida, e que esta ajudava-a financeiramente, tendo confirmado a transferência no valor de 3.500,00 euros, constante do documento de fls. 471, que lhe foi exibido.
-  O depoimento da testemunha Patricia (Inspectora da Polícia Judiciária), prestado de forma objectiva, isenta, coerente e credível, contribuiu para esclarecer as circunstâncias em que foi efectuada a audição do Padre SG, bem como a busca domiciliária à residência da arguida, na qual participou. Referiu, com relevo, que o Padre SG demonstrou que não era do seu conhecimento o destino das quantias monetárias, e que se revelou surpreendido com as perguntas, uma vez que pensava ser possuidor do dinheiro.
-           A testemunha Manuel (sacerdote, na CASA ... desde 2002) depôs de modo isento, objectivo e convincente, tendo referido, em síntese e com relevo, que não tem conhecimento de doações à CASA ..., por parte do Padre SG, e que este estava preocupado com os seus bens. Mais afirmou que, algumas vezes, a Arguida lhe pediu dinheiro emprestado, bem como a outros padres da CASA ....
-           No que respeita à factualidade relativa à conta do BPI e ao resgate dos certificados de aforro, assumiram relevância, também, os depoimentos das testemunhas Natacha, Cidália.
-           A testemunha Natacha (bancária, exercendo funções no BPI há 10 anos) prestou um depoimento objectivo, isento e credível.
Referiu, com relevo, que à data dos factos trabalhava na agência de Picoas, do Banco BPI, conhece a arguida como cliente, e não se recorda do padre SG.
Confrontada com os documentos de fls. 216 a 218 (ficha de assinaturas) e de fls. 219 (talão de levantamento, do valor de 300.123,57 euros), confirmou a sua assinatura, e esclareceu que a existência de duas assinaturas justifica-se pela circunstância do Padre SG ser muito idoso.
-    A testemunha Alice (religiosa, na CASA ..., desde Abril de 2010) referiu, de forma serena, clara e credível, que acompanhou o Padre SG, uma vez, ao balcão do Banco BPI, na Avenida Fontes Pereira de Melo, o mesmo perguntou pelo seu dinheiro e foi-lhe dito que tinha sido levantado em Agosto. Mais declarou que o Padre SG costumava dizer "eu tinha tanto dinheiro, agora não tenho, não sei como vos compensar", mas nunca lhe mencionou ter efectuado doações à CASA ....
- Quanto à testemunha Cidália (trabalhou como cozinheira, na CASA ..., durante 4 anos) referiu, com relevo, que a arguida lhe telefonou, dizendo que estava na estação dos correios dos Restauradores. Declarou, também, que acompanhou a arguida, muitas vezes, à Praça do Chile e que aquela era carinhosa com o Padre SG.
- A testemunha Cidália (funcionária dos CTT dos Restauradores, há cerca de 10 anos) declarou, em síntese, que se recordava de um senhor de idade, acompanhado de uma senhora jovem, para efectuar o resgate dos certificados de aforro.
-Quanto à matéria factual referente aos valores creditados pela arguida em contas de terceiros, em seu benefício, o Tribunal valorou, igualmente, os depoimentos objectivos, claros, coerentes e credíveis, das testemunhas CD (acima identificada), AL, Maria,Baio e Luís AL (contabilista da CASA ..., desde 2008 até à presente data), confirmou as transferências bancárias efectuadas pela arguida, para as contas de que o depoente é titular, esclarecendo que se trata do reembolso dos empréstimos concedidos a Maria.
-O depoimento da testemunha Maria, apenas relevou na parte que confirmou que a arguida explorou o estabelecimento comercial "Flores Adalila, Lda.", desde 2007 até 23.02.1011, e que teve problemas com a falta de pagamento de rendas, por parte da arguida, no valor de 1.500,00 / 1.600,00 euros.
-A testemunha Baio (astrólogo, com consultório na Praça do Chile) declarou, em síntese e com relevo, que prestou consultas e efectuou trabalhos por conta da arguida. Referiu que esta efectuou o pagamento desses serviços através de cheques, bem como de transferências bancárias, admitindo que recebeu da arguida, o valor total de cerca de 56.800,00 euros.
Confrontado com as cópias dos cheques de fls. 24 e 25 dos autos, confirmou que os mesmos lhe foram entregues pela arguida, acrescentando que a maior parte dos trabalhos foram pagos através de cheque.
O depoimento da testemunha Luís (sacerdote) esclareceu o Tribunal sobre as circunstâncias da transferência bancária, pela arguida, do montante de 80.003,12 euros, constante do documento de fls. 484, que lhe foi exibido, tendo confirmado o recebimento daquela quantia.
Referiu, em síntese e com relevo, que o Padre SG confiava na arguida, que esta tratava os sacerdotes com carinho, e que transmitiu ao ora depoente que se tratava de um donativo de um sacerdote da CASA ....
Mais declarou que falou, várias vezes, com o Padre SG, mas nunca sobre o assunto da doação, porque pensava que aquele preferia ficar no anonimato e, ainda, que nessas conversas o Padre nunca manifestou a vontade de doar parte do seu dinheiro.
- Relativamente ao depoimento da testemunha Lucinda

, o mesmo assumiu pouco relevo, na medida em que não demonstrou conhecimento directo e pessoal dos factos que constituem o objecto deste processo. Referiu que visitou apenas uma vez o Padre SG e não conversou directamente com os padres da CASA ..., sobre as situações em causa nos presentes autos.
3.4. Prova documental
Assumiram relevância os seguintes documentos (conjugados entre si, e com os meios probatórios supra referidos):
. Documentação diversa (fls. 4, 6, 20 a 28, 31, 40, 86, 646 a 648, 741 a 744);
. Documentos do Instituto de Gestão do Crédito Público (certificados de aforro): fls. 87 a 103, 143 a 172, 564 a 609;
. Documentos do Millennium BCP: fls. 137 a 142, 372 a 383, 454 a 456, 691 a 698;
. Documentos do Banco BPI: Fls. 216 a 224, 404 a 440, 442, 443, 449, 450, 469 a 537, 640 a 644;
. Documentos da CG.D.: fls. 684 a 689;
. Auto de busca e apreensão de fls. 118 e documentos apreendidos na residência da arguida: fls. 119 a 125, fls. 127 a 129.
. Auto de recolha de autógrafos do Padre SG: Fls. 292 a 295, 297, 307 a 310, 334 e 335.
- Quanto ao elemento subjectivo, no que concerne à intenção com que a arguida actuou, "dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência" [cf. Ac. da Relação do Porto de 23.02.1983, BMJ, n.° 324, pág. 620].
No que respeita aos factos atinentes ao elemento subjectivo, os mesmos resultam, deste modo, apurados como decorrência da conduta objectiva da arguida MF.
Da ponderação de toda a prova descrita, conjugada com as regras de experiência e de lógica, atendendo às circunstâncias em que os factos foram praticados e ao modo de actuação, resulta evidente o conhecimento pela arguida, do aproveitamento da relação de confiança estabelecida com o padre SG, bem como da apropriação ilegítima das quantias monetárias supra referidas, e a vontade em agir dessa forma.*- Quanto à ausência de condenações anteriores, foi relevante o certificado de registo criminal da Arguida, junto a fls. 951 dos autos.*- Relativamente às condições pessoais e situação económica da arguida, o Tribunal valorou o relatório social, constante de fls. 952 a 955 dos autos.*A decisão sobre a matéria de facto julgada não provada resultou da falta e/ ou insuficiência de elementos probatórios que permitissem ao Tribunal firmar um juízo de certeza e segurança, no sentido da verificação destes factos.
Com efeito, a Arguida exerceu o seu direito ao silêncio e não prestou declarações sobre os factos que lhe são imputados. Pelo que, perante a fragilidade das declarações da assistente e dos depoimentos das testemunhas, quanto a esta factualidade, e face à ausência de outros meios probatórios, objectivos, consistentes, isentos e credíveis, o Tribunal não poderia formular uma convicção, certa e segura.»
 
 
*** 
2 - Apreciação dos fundamentos do recurso:
2.1. Perante as conclusões extraídas pela recorrente a partir da respectiva motivação - a quais, conforme entendimento pacífico e uniforme dos Tribunais Superiores, delimitam e fixam o objecto do recurso -, aquela limita-se a impugnar a matéria de facto provada, pugnando pela alteração desta e pedindo, em consequência dessa alteração, a sua absolvição.***2.2. Apreciemos, pois, o alegado:
Segundo as aludidas conclusões do recurso, a arguida considera incorrectamente julgados os factos provados sob os números 3, 21, 24 e 25, cuja redacção é a seguinte:
- Depois de ganhar toda a confiança de SG, a arguida convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro, nunca tendo sido sua intenção devolver-lhas e a assinar cheques em branco, que posteriormente ela preencheu como entendeu para seu benefício;
…
- Com a sua conduta ardilosa, a arguida conseguiu delapidar todas as economias de uma vida, o que alcançou com sucesso através do engano que deliberadamente criou em SG, pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu;
…
- A arguida agiu sempre deliberada, livre e conscientemente;
- Agiu ciente da reprovabilidade penal da sua conduta.
 
Como temos frequentemente dito, o recurso em matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria, sendo antes e apenas uma oportunidade para remediar eventuais males ou erros cometidos pelo tribunal recorrido. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, «o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida»[1].
Competindo ao tribunal de recurso aferir da legalidade e da bondade do caminho percorrido pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção e alcançar o resultado que se traduziu na respectiva decisão em sede de matéria de facto, deverá ter-se presente que em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjectiva, nomeadamente quanto à credibilidade da prova pessoal, e que os próprios depoimentos em audiência são frequentemente condicionados pelo modo como são recebidos. Tal componente «implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação»[2].
Assim, caberá ao tribunal de recurso verificar se o julgador, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio da livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar ao veredicto de facto, sendo que, na base desse controlo deverá estar a motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação daquela que foi a sua opção, ao dar cumprimento ao disposto o art. 374.º, n.º 2, do CPP.
Por isso, a censura dirigida à decisão proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” (Ac. do TC n.º 198/2004 – DR II série, de 2/6/2004; Ac. do TRL de 7/11/2007, Proc. 4748/07-3).
Dentro de tais parâmetros, a reapreciação da prova só determinará uma alteração da matéria de facto quando, daquele reexame, se concluir que as provas indicadas pelo(a) recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, impõem uma decisão diversa, não podendo ocorrer tal alteração quando a reapreciação da prova apenas permita uma decisão diferente da proferida. Pois que, havendo, face à prova produzida, duas ou mais possíveis soluções para a questão de facto, se a decisão impugnada se mostrar devidamente fundamentada e a decisão de facto constituir uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, esta deve prevalecer, não sendo passível de crítica, não ocorrendo violação das regras e princípios de direito probatório.
No presente caso, importa ainda não esquecer um outro dado muito relevante.
A arguida vinha acusada da prática de um crime de burla qualificada, cujos requisitos típicos estão enunciados no art. 217.º, n.º 1, do CP. Para o preenchimento do respectivo tipo, o MP tivera de alegar a factualidade necessária ao preenchimento dos seus elementos, entre eles, que o ofendido foi determinado a entregar o dinheiro à arguida mediante «erro ou engano» sobre factos que esta «astuciosamente provocou». A essência da matéria alegada nos factos provados sob os números 3 e 21 insere-se no objectivo de preencher esse elemento típico.
Acontece, porém, que, no decurso da audiência de julgamento (cfr. fls. 963 e 969), o MP requereu que fosse cumprido o disposto no art. 358.º, n.º 3, do CPP, tendo em vista uma eventual alteração da qualificação jurídica dos factos imputados, afigurando-se-lhe que estes poderão configurar a prática de um crime de abuso de confiança qualificado. Requerimento que o tribunal deferiu de imediato, cumprindo o aludido normativo - do nosso ponto de vista, prematuramente, uma vez que ainda não havia sido produzida toda a prova e não era, por isso, o momento processual próprio para juízos de valor quanto às provas já produzidas e para ponderar o que devia ser considerado provado ou não provado -, sendo certo que a defesa nada opôs a tal alteração e prescindiu de prazo para resposta.
Foi na sequência dessa alteração da qualificação jurídica que a arguida acabaria por ser condenada por um crime diferente do imputado, ou seja, por um crime de abuso de confiança agravado.
Como sabemos, os requisitos deste crime, cuja previsão consta do art. 205.º, n.º 1, do CP, são diferentes dos da burla. Enquanto neste último, a entrega dos valores ao agente do crime é determinada por erro ou engano, que este astuciosamente provocou no ofendido, coincidindo a apropriação ilegítima com a entrega, no abuso de confiança os bens ou valores passaram a estar na posse do agente do crime de modo lícito, foram-lhe entregues consciente e voluntariamente, sem qualquer ardil, pelo respectivo dono - por título não translativo da propriedade, no dizer da lei -, ocorrendo a apropriação pelo agente do crime em momento posterior, através da inversão do título de posse.      
Em termos práticos, a aludida alteração a que procedeu o tribunal ao abrigo do art. 358.º, n.º 3, do CPP, deveria, em princípio, ter na sua génese uma alteração fáctica, implicando que os factos alegados na acusação, segundo os quais o ofendido foi enganado e determinado, de forma ardilosa, a entregar o dinheiro à arguida, fossem excluídos dos factos provados, ou seja, deviam ter sido considerados não provados, sob pena de entrarem em contradição com a demais factualidade e com a conclusão (decisão) no sentido de que a apropriação se deu posteriormente à aludida entrega, através da mencionada inversão do título de posse.
Só não seria assim se o crime imputado pelo MP na acusação pública se devesse a evidente erro de subsunção dos factos ao direito e a respectiva imputação não tivesse correspondência nos factos que naquela foram descritos.
Efectivamente, na nossa perspectiva, só pode ter sido esta a posição do tribunal recorrido, decorrendo a nova incriminação, exclusivamente, de uma diferente leitura dos factos imputados e não de uma qualquer alteração destes em função da prova que já havia sido produzida.
Coloca-se, pois, a questão de saber como, perante os mesmos factos, o tribunal recorrido chegou à conclusão que a arguida cometeu um crime de abuso de confiança e não um crime de burla.
A resposta só pode estar no enquadramento da relação existente entre a arguida e ofendido, em que aquela, no exercício das funções de gestora na CASA ... do Patriarcado, onde residia o segundo, ganhou toda a confiança deste, assumindo a administração e gestão de todos os seus bens pessoais, nomeadamente do dinheiro que o mesmo possuía. Parece decorrer da decisão recorrida que todos os actos ilícitos praticados posteriormente àquele momento em que a arguida assumiu a gestão dos bens do ofendido se inserem nessa actividade de gestão e administração dos bens do ofendido, tendo a arguida, então, formulado o propósito de se apropriar do dinheiro, intenção que concretizou pelos meios supra descritos nos factos provados. Ou seja, na perspectiva do tribunal recorrido, o ofendido terá colocado à disposição da arguida todo o seu património, que esta, depois, geriu da forma que achou mais conveniente, levando aquele a praticar vários actos que permitiram à arguida apropriar-se desse dinheiro. Desse ponto de vista, a arguida passou a ter à sua disposição o património do ofendido e, só após esse momento, decidiu apropriar-se do dinheiro do modo descrito na acusação.
É um ponto de vista. Podendo ser considerado algo simplista e mesmo reducionista de uma realidade que parece ser bem mais complexa do que aparenta - desde logo, pela existência de duas situações bem distintas, com modos de agir muito diferentes, por um lado, a apropriação da quantia de € 300.123,57, oriunda do resgate dos certificados de aforro do ofendido, por outro, a emissão de vários cheques pela arguida, que sacou da respectiva conta do ofendido, ao longo de dez meses, contra a vontade e sem o conhecimento deste (facto provado n.º 11, que não foi impugnado) -, não vamos discutir aqui a maior ou menor correcção dessa maneira de ver as coisas, porque entendemos que tal discussão seria completamente inútil. Na verdade, tendo apenas a arguida interposto recurso da decisão final - conformando-se com ela o MP e a assistente, na medida em que dela não recorreram -, por um lado, a recorrente não questiona a qualificação jurídica operada pelo tribunal recorrido e, por outro, mais importante que tudo o resto, a sua posição processual jamais poderá ser agravada neste processo, por força, entre outros, do princípio da proibição da reformatio in pejus, o que impossibilita qualquer agravamento da condenação imposta, quer por este tribunal de recurso, quer pelo tribunal de primeira instância, numa eventual repetição do julgamento efectuado, caso este fosse anulado.
Por isso, tendo em consideração as premissas atrás enunciadas, só nos resta apreciar a pretensão da recorrente, limitada, como dissemos, à impugnação daqueles quatro pontos da matéria de facto e, fixada esta, responder à questão se deve ser absolvida ou manter-se a condenação.
Reconhece-se que, enveredando o tribunal recorrido pela subsunção dos factos ao crime de abuso de confiança, parece no mínimo estranho que tenham permanecido na matéria de facto provada determinadas expressões que haviam sido alegadas na acusação na perspectiva de ter sido cometido um crime de burla, parecendo mesmo haver alguma incompatibilidade entre essas expressões e a verificação daquele primeiro crime.
Referimo-nos, nomeadamente, às expressões constantes dos factos impugnados sob os números 3 e 21, para além de outras constantes de outros factos, que não há qualquer interesse em especificar, porque não impugnados.
Assim:
No facto n.º 3 consta que «depois de ganhar toda a confiança de SG, a arguida convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro, nunca tendo sido sua intenção devolver-lhas e a assinar cheques em branco, que posteriormente ela preencheu como entendeu para seu benefício».
Enquanto no facto provado n.º 21 consta: «Com a sua conduta ardilosa, a arguida conseguiu delapidar todas as economias de uma vida, o que alcançou com sucesso através do engano que deliberadamente criou em SG, pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu».
No que respeita à confiança, é indubitável que o padre SG jamais iria colocar toda a sua fortuna à disposição de alguém que não lhe merecesse toda a confiança. A arguida conquistou, sem dúvida alguma, a confiança do ofendido, ao ponto de este lhe entregar cheques já assinados, para aquela preencher e utilizar - nos assuntos respeitantes à gestão corrente da CASA ... do Patriarcado – e, essencialmente, para resgatar os certificados de aforro e colocar à guarda da arguida a respectiva quantia, elevada, de mais de trezentos mil euros, com o intuito de à mesma não terem acesso as suas sobrinhas.
Que, depois, a arguida usou cheques para proceder a levantamentos e transferências de dinheiro para outros fins que não a gestão daquela Casa, assim como, fez sua a aludida quantia de € 300.123,57, é matéria que nem sequer está impugnada.
A única questão controvertida é a que respeita à motivação do ofendido, quando colocou à disposição da arguida todo o seu dinheiro.
Aquele faleceu entretanto, tendo sido colhido o respectivo depoimento para memória futura, o qual foi lido em audiência.
A arguida, sendo a pessoa melhor colocada para esclarecer o que efectivamente se passou, preferiu remeter-se ao silêncio, no exercício de um direito que a lei lhe reconhece - sem que, por isso, possa ser prejudicada -, tentando fazer passar na respectiva alegação de recurso a versão que tentara fazer vingar em julgamento, no sentido de que o dinheiro lhe fora «dado» pelo ofendido.
Trata-se de afirmação que não tem qualquer apoio nas declarações do próprio ofendido, que contrariam tal versão – nunca tendo tido a «intenção de dar, oferecer ou de qualquer forma presentear a arguida, ou outra pessoa com o referido dinheiro» -, nem em qualquer outro meio de prova, sendo, por isso, de afastar liminarmente tal versão.
Também não tem qualquer apoio na prova a afirmação de que o ofendido agiu no convencimento de que estava a emprestar o dinheiro à arguida, esperando que esta o devolvesse posteriormente.
O que existe de concreto e que tem mais sentido, para o qual apontam as regras da experiência comum, é que, tal como o declarou o ofendido, este, julgando a arguida pessoa de bem e de confiança, sugestionado por ela e porque desconfiava que as suas sobrinhas lhe retirassem os bens e o dinheiro, resgatou os certificados de aforro e colocou o dinheiro numa conta titulada por ele e pela arguida. Pelas aludidas razões, confiando na arguida, permitiu que esta gerisse o seu dinheiro, na CASA ... e no banco, entregando-lhe cheques que aquela usava para o efeito.
Ou seja, perante as preocupações manifestadas pelo ofendido relativamente ao dinheiro, a arguida foi dando sugestões, convencendo-o a proceder de determinado modo, sugestões que o ofendido ia aceitando, dada a relação de extrema confiança que nela depositava, até que esta, com tal procedimento, conseguiu fazer com que o dinheiro ficasse à sua inteira disposição. A partir desse momento, procedeu do modo descrito nos factos provados, apropriando-se dele e gastando-o em seu benefício, tendo o ofendido «perdido o controlo à gestão que a arguida fazia dos cheques que lhe entregava». Ao apropriar-se do dinheiro, a arguida nunca teve a intenção de devolvê-lo e nunca o devolveu.
 Pode, pois, dizer-se que, do alegado no facto 3, apenas a referência ao empréstimo estará algo desajustada e, quanto a doações feitas pelo ofendido à arguida, aquele apenas refere uma quantia de € 1500,00, que lhe entregou em cheque, para que ela gastasse em proveito próprio, porque a mesma lhe pediu, dizendo que necessitava de dinheiro.
Todavia, o aludido facto n.º 3, assim como as referências feitas no facto provado n.º 21 à «conduta ardilosa» e ao «engano que deliberadamente criou», é matéria totalmente irrelevante, perante a subsunção jurídica dos factos feita pelo tribunal recorrido.
Porquanto, tendo-se aproveitado a arguida do facto de ter o dinheiro do ofendido à sua disposição, de cuja gestão estava incumbida, quer através de cheques que este lhe entregou, muitas vezes já assinados e não preenchidos, quer abrindo conta conjunta e entrando na posse da quantia de € 300123,57, aquela desencaminhou o dinheiro, dando-lhe uma utilização em seu exclusivo benefício e em prejuízo do ofendido, delapidando todas as economias deste, «pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu», ou seja, a apropriação ilícita levada a cabo pela arguida não resultou do pretenso «erro ou engano» que esta «astuciosamente provocou», conforme fora alegado pela acusação, diversamente, a aludida apropriação do dinheiro, por parte da arguida, ocorreu porque o mesmo estava à sua disposição para determinado fim - fora-lhe entregue por título não translativo de propriedade -, gastando-o, porém, em seu exclusivo interesse e benefício, ou seja, deu-lhe um destino diferente, agindo com se fosse a verdadeira dona. Em suma, inverteu o título de posse, passando a agir como proprietária do dinheiro, gastando-o em seu proveito, contra a vontade e sem o conhecimento do verdadeiro titular.
Concluindo este ponto: ainda que se retirem dos factos 3 e 21 as aludidas expressões - «convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro», «com a sua conduta ardilosa» e «através do engano que deliberadamente criou em SG» - os restantes factos continuam a ser subsumíveis ao crime de abuso de confiança pelo qual foi condenada a arguida, em nada influenciando o resultado final e não determinando a sua absolvição.
Foram ainda impugnados pela arguida os factos provados 24 e 25.
Quanto ao primeiro, que «a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente», é a afirmação mais do que evidente, na medida em que, o modo natural de agir de qualquer ser humano é livre, consciente e deliberado, pois, só assim não acontece quando a pessoa age sob coacção ou em circunstâncias anormais que lhe retirem ou diminuam a sua capacidade de acção de ser eminentemente livre, e só não agirá conscientemente se estiver em estado de inconsciência decorrente, nomeadamente, de doença mental que lhe retire toda a capacidade de se determinar livremente, se estiver sob hipnotismo, em sonambulismo, ou em estado de embriaguez completa, ou quaisquer outras situações que, de igual modo, lhe afectem tal estado de consciência.
Nada existindo nos autos, nem tendo sido suscitada qualquer situação, com capacidade de influir na liberdade de decisão e de acção da arguida, teremos de concluir que esta agiu de forma livre e consciente e que teve o propósito deliberado de se apropriar das aludidas quantias em dinheiro.
Questão ligeiramente diferente é a respeitante ao conhecimento da proibição legal.
Tal como já tivemos oportunidade de escrever em anterior decisão, que ora reproduzimos, na parte relevante, por mera comodidade:
«O tipo de ilícito – primeiro degrau valorativo da doutrina do crime (o mesmo se diga quanto às contra-ordenações) – tem por função dar a conhecer ao destinatário que determinada espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico e é sempre constituído por uma vertente objectiva (os elementos descritivos do agente, da sua conduta e do seu circunstancialismo) e por uma vertente subjectiva: o dolo ou a negligência. Só da conjugação dos dois elementos ou vertentes (objectiva e subjectiva) pode resultar o juízo de contrariedade da acção à ordem jurídica, o mesmo é dizer, o juízo de ilicitude[3].
… o Código Penal, não define o dolo do tipo, indicando, porém, no art. 14.º, deste Código, as formas que pode revestir (directo ou intencional, necessário e eventual).
No conceito desenvolvido pela doutrina, comporta aquele duas vertentes:
a) a intelectual, isto é, o conhecimento material dos elementos e circunstâncias do tipo legal;
b) a volitiva ou emocional, isto é, a vontade de adoptar a conduta, o querer adoptar a conduta, não obstante aquele conhecimento, mesmo tendo previsto o resultado criminoso como consequência necessária ou como consequência possível dessa conduta[4]. Ou seja, o dolo do tipo não se basta com aquele conhecimento dos elementos típicos, mas exige simultaneamente «a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização»[5]. Este elemento volitivo pode traduzir-se em diferentes classes de dolo, consoante a direcção e força da vontade manifestada, podendo assumir-se aquele como directo, necessário ou eventual.
Quanto ao elemento intelectual do dolo:
É necessário, para que o dolo se afirme, que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo. Pretende-se que o agente, ao actuar, “conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito”[6]. Com a consequência de que sempre que o agente represente erradamente, ou não represente, um qualquer dos elementos típicos objectivos, o dolo terá de ser afastado. É o princípio da congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso. Como refere Figueiredo Dias[7], «se o tipo de ilícito é o portador de um sentido de ilicitude, então compreende-se que a factualidade típica que o agente tem de representar não constitua nunca o agregado de “puros factos”, mas já de “factos valorados” em função daquele sentido de ilicitude…tornando-se indispensável a apreensão do seu significado correspondente ao tipo». Tal exigência deve respeitar não só aos elementos descritivos do tipo, mas também aos elementos normativos, «aqueles que só podem ser representados e pensados por referência a normas, jurídicas ou não jurídicas». Embora não se exigindo, quanto a estes, que o agente conheça, com toda a exactidão, a subsunção jurídica dos factos na lei que os prevê, sob pena de só o jurista conhecedor poder agir dolosamente - se o agente conhece o conteúdo do elemento mas desconhece a respectiva qualificação jurídica, há um erro de subsunção, que é absolutamente irrelevante para o dolo do tipo - o certo é que se mostra estritamente necessário que o agente tenha conhecimento dos elementos normativos, numa «apreensão do sentido ou significado correspondente, no essencial e segundo o nível próprio das representações do agente, ao resultado daquela subsunção ou, mais exactamente, da valoração respectiva»[8].
Para além disso, casos há em que, para a afirmação do dolo do tipo torna-se ainda indispensável que o agente tenha actuado com conhecimento da proibição legal. Tal acontece quando «o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quando também pela proibição legal. Nestes casos, com efeito, seria contrária à experiência e à realidade da vida a afirmação de que o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento orientam suficientemente a consciência ética do agente para o desvalor do ilícito»[9]. Por um lado, o art. 16.º, n.º 1, do CP, reconhecendo o erro sobre a proibição, afirma que a sua existência exclui o dolo, equiparando-o ao erro sobre a factualidade típica, quando “for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto”… 
Embora com muita raridade se possa afirmar aquele erro sobre a proibição em direito penal - existem, porém, casos de ilícito penal em que ele se pode verificar, nomeadamente em certos crimes de perigo abstracto ou em certas incriminações pertencentes ao direito penal secundário, nomeadamente no direito penal económico, em que a relevância axiológica da conduta, na maior parte dos casos, é de tal maneira ténue que o conhecimento da proibição deve ter-se por indispensável «para a orientação do agente para o desvalor da ilicitude»[10]- é ele muito mais usual no ilícito de mera ordenação social. Neste, tal como no ilícito criminal, para a verificação do dolo do tipo exige-se o conhecimento da proibição legal e o erro respectivo exclui o dolo. Fica, porém, ressalvada a punição a título de negligência, nos termos gerais (n.º 3, do mencionado art. 8.º).
Mas o dolo é ainda a expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença, perante o dever-ser jurídico-penal, sendo, nesta perspectiva, um elemento constitutivo do tipo de culpa dolosa…
O princípio da culpa constitui uma máxima fundamental do direito penal, bem como do direito contra-ordenacional, do que deriva a exigência de que a aplicação de qualquer pena (incluída a coima) supõe sempre que o ilícito típico foi praticado com culpa, traduzindo-se esta numa censura dirigida ao agente pela prática do facto.
Ora, o tipo de culpa doloso verifica-se quando, perante um ilícito típico doloso, «se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas; se uma tal comprovação se não alcançar ou dever ser negada o facto só poderá eventualmente vir a ser punido a título de negligência»[11].
Já longe vai o tempo em que a “ignorância da lei não eximia de responsabilidade criminal” (CP/1886 – art. 29.º), fundamentando a irrelevância da falta de consciência da ilicitude para a afirmação do dolo. Com a afirmação do princípio da culpa (nulla poena sine culpa), inscrito no … art. 13.º, do CP, o modo de ver o problema tinha necessariamente de ser diferente. Apesar das divergências existentes na doutrina quanto aos efeitos da ausência daquela consciência do ilícito (teorias do dolo, estrita e limitada e teorias da culpa, estrita e limitada), o certo é que tal ausência deixou de ser irrelevante. No direito penal e contra-ordenacional português actual, existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevante, com duas formas de relevância e diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente: uma exclui o dolo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (art. 16.º, do CP e 8.º, n.ºs 2 e 3 do RGCO); a outra, exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena (ou coima) especialmente atenuada (art. 17.º, do CP e 9.º, do RGCO). 
Em suma, há três situações em que o erro exclui o dolo:
- quando verse sobre elementos de facto ou de direito, de um tipo de crime;
- quando respeite aos pressupostos de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa;
- ou quando incida sobre a própria proibição legal (desde que o seu conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito, no caso de infracção criminal).
Acompanhando, mais uma vez, Figueiredo Dias[12], na conclusão: «o erro excluirá o dolo (a nível do tipo) sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito; diversamente, o erro fundamentará o dolo (da culpa) sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua todavia em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto. Neste último caso o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência-intencional), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger. Por outras palavras: no primeiro caso estamos perante uma deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, revela uma atitude interna de descuido ou de leviandade perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa negligente. Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa dolosa. É esta a concepção básica sobre o dolo do tipo, a consciência do ilícito e a culpa dolosa que está mesmo na base do regime constante dos arts. 16.º e 17.º» do Código Penal.
De uma ou de outra forma, aquele conhecimento tem de resultar directa ou indirectamente da matéria de facto provada. Saber se o agente agiu com dolo ou não, apurar da respectiva intenção ou fixar os elementos subjectivos do dolo, são questões que pertencem ao âmbito da matéria de facto[13].» - cfr. Acórdão da Relação do Porto, proferido no Recurso n.º 412/05-4 (Proc. n.º 29/03.7TBETR).
Segundo dispõe o art. 127.º, do CPP, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Não se vislumbra que a apreciação da prova, no presente caso, tenha infringido as regras da experiência, pois, nenhum dos factos provados, de per si ou no conjunto da matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo, viola tais regras.
A garantia de legalidade da "livre convicção" a que alude aquele normativo processual penal, terá de bastar-se com a necessária explicitação objectiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório em que assentou essa convicção, possibilitando a partir daí o necessário controlo da sua legalidade, como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efectuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meio de prova.
Sendo certo que convicção livre não é, nem pode equivaler, a livre arbítrio na formação dessa convicção, antes terá de ser o reflexo de uma apreciação objectiva das provas produzidas, permitindo um controle por parte dos interessados e do tribunal de recurso, é manifesto que o presente caso não revela qualquer arbítrio ou discricionariedade na análise da prova, tendo sido respeitados os princípios atinentes.
Por outro lado, não pode ser escamoteado o facto de estarmos a discutir um elemento que respeita à esfera psíquica da arguida - o conhecimento que esta tem de determinada situação ou proibição -, sendo praticamente impossível a sua demonstração por prova directa e imediata, salvo se a própria confessar tal conhecimento.
Na falta desta confissão, a respectiva prova terá de resultar, necessariamente, dos demais factos provados, em conjugação com o demais circunstancialismo que os rodeia, assumindo relevância particular a ausência de razões sérias para supor que a arguida, no descrito circunstancialismo, provavelmente não teria condições para conhecer a proibição.
O tribunal fundamentou a respectiva convicção, no que respeita ao convencimento de que a arguida destes autos sabia que era proibida a sua conduta, nos seguintes termos:
«Quanto ao elemento subjectivo, no que concerne à intenção com que a arguida actuou, "dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência" [cf. Ac. da Relação do Porto de 23.02.1983, BMJ, n.° 324, pág. 620].
No que respeita aos factos atinentes ao elemento subjectivo, os mesmos resultam, deste modo, apurados como decorrência da conduta objectiva da arguida Maria.
Da ponderação de toda a prova descrita, conjugada com as regras de experiência e de lógica, atendendo às circunstâncias em que os factos foram praticados e ao modo de actuação, resulta evidente o conhecimento pela arguida, do aproveitamento da relação de confiança estabelecida com o padre SG, bem como da apropriação ilegítima das quantias monetárias supra referidas, e a vontade em agir dessa forma.»
A recorrente não adianta qualquer argumento ou prova que refute tal argumentação ou da qual se possa inferir o seu desconhecimento de que os factos praticados são criminalmente puníveis. Por outro lado, perante a aludida fundamentação e baseados nas regras da experiência comum, não vislumbramos qualquer ofensa ao princípio da livre apreciação da prova, não se detectando qualquer arbítrio ou falta de objectividade na análise da prova produzida, não havendo razões para censurar, nesta parte, a decisão de facto.
Inexistindo outras questões a decidir, improcede o recurso da arguida. 
 
***c)             DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o presente recurso da arguida Maria, confirmando-se a decisão recorrida. 
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique.
Lisboa,     /        /
(Elaborado em computador e revisto pelo relator)
_______________________________________________________________________________[1] In “Registo da Prova…”, pág. 809; no mesmo sentido, Cunha Rodrigues, Lugares do Direito, Coimbra, 1999, pag. 498; ou ainda o Ac. do STJ de 20/02/2003, Proc. 240/03-5, in “Boletim de Sumários dos Acórdãos do STJ”.
[2]  G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, pag. 817.
[3]   Figueiredo Dias, in  “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, pág. 231.
[4]  Simas Santos e Leal Henriques in “C.P. Anotado” , I volume, 1997, pg. 180 e 181 e Prof. Eduardo Correia in “Direito Criminal”,  Volume I, 1963, pg.s 367 a 386.
[5] Figueiredo Dias, in  “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, pág. 349.
[6]  Idem, pág. 334.
[7]  Obra citada, pág. 335.
[8]  Fig. Dias, “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal”, § 22, I, 2 e 5.
[9]  Idem, § 20.
[10]   Figueiredo Dias, in  “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, pág. 348.
[11]  Idem, “O Direito Penal…”, pág. 488.
[12]   “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, pág. 503/504; F. Dias, “O Problema…”, §§ 14 e 15.
[13]     Ac. do STJ de 21/4/94, Proc. 4631-3.ª Secção; Ac. do STJ de 6/11/96, Proc. 724/96; Ac. do STJ de 15/01/98, Proc. 457/97; Ac. do STJ de 7/10/98, CJ, Acórdãos do Supremo, tomo 3/98, pág. 183; Simas Santos e Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, 2.ª edição, pág. 434.

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa: a) RELATÓRIO 1. Em processo comum e sob acusação do Ministério Público, foi submetida a julgamento, perante tribunal colectivo, na 1.ª Secção Criminal da Instância Central, Comarca de Lisboa, a arguida Maria No final, foi proferido acórdão, com o seguinte dispositivo (transcrição): «Face ao exposto, o Tribunal Colectivo delibera: I - Da acusação: 27. Absolver a Arguida Maria da prática, em autoria material, de 1 (um) crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.°, n.° 1 e 218.°, n.° 2, alíneas a), c) e d), do Código Penal; 28.             Operada a convolação legal, condenar a Arguida Maria pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelo artigo 205.°, n.° 1 e n.° 4, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. 29.             Suspender a execução da pena de prisão, pelo período de2 (dois) anos e 6 (seis) meses, a contar da data do trânsito em julgado desta decisão, i- Sob a condição da arguida entregar a quantia de 2.000,00 euros a uma instituição de solidariedade social, à sua escolha, devendo comprovar nos autos, no final do primeiro ano da suspensão a entrega do montante de 1.000,00 euros, e no final do segundo ano da suspensão a entrega do mesmo valor de 1.000,00 euros. II - Da responsabilidade por custas: 30. Condenar a Arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, bem como nos demais encargos, sem prejuízo do apoio judiciário (artigos 513.° e 514.° do Código de Processo Penal e 8o, n° 4 e 5, do Regulamento das Custas Processuais). …» *** 2. Inconformada, recorreu a arguida, encerrando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «98.ª- Para efeito a recorrente considera incorretamente julgados, os pontos 3, 21, 24 e 25 do Douto acórdão: 26. Depois de ganhar toda a confiança de SG, a arguida convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro, nunca tendo sido a sua intenção devolver-lhas e a assinar cheques em branco, que posteriormente ela preencheu como entendeu para o seu benefício; 27. Com sua conduta ardilosa, a arguida conseguiu delapidar todas as economias de uma vida, o que alcançou com sucesso através do engano que deliberadamente criou em SG, pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu; 28. A arguida agiu sempre deliberada, livre e consciente; 29. Agiu ciente da reprovabilidade penal da sua conduta. 99.ª - Por isso e perante estas provas, impõe-se alterar a decisão do tribunal "a quo" quanto ao julgamento dos factos e do direito, referidos inicialmente para a seguinte: 100.ª - Absolver a arguida porque os elementos do crime não estão preenchidos, porque não foi consumado e em ultima ratio porque não há provas bastantes para a condenação. Nestes termos e nos mais de Direito, V.ªs Exc.ªs doutamente suprirão, deve o douto acórdão ser revogado por outro que se coadune com a pretensão exposta, qual seja, a Absolvição da arguida, fazendo a costumada JUSTIÇA!» 3. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, concluindo pela manutenção do acórdão recorrido. 4. Subidos os autos, neste Tribunal da Relação o Sr. Procurador-Geral Adjunto, aderindo aos fundamentos da resposta apresentada pelo MP em primeira instância, pugna igualmente pela improcedência do recurso e a subsequente manutenção do decidido. 5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, veio a arguida reafirmar as razões pelas quais entende que o recurso deve proceder. 6. Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, cumprindo decidir. *** b) FUNDAMENTAÇÃO 1 - Vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto (transcrição): «II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 1. Factos Provados: Com relevância para a decisão de mérito da causa, resultaram provados os seguintes factos: Da acusação: 1. Entre o início de 2009 e Abril de 2010, a arguida exerceu funções de gestora na Casa ..., sita na Avenida ..., em Lisboa. 32. A arguida acabou por assumir também a administração e gestão dos assuntos pessoais, de saúde e patrimoniais de alguns dos sacerdotes ali residentes, designadamente, do Padre SG, nascido a 05/05/1923. 33. Depois de ganhar toda a confiança de SG, a arguida convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro, nunca tendo sido sua intenção devolver-lhas e a assinar cheques em branco, que posteriormente ela preencheu como entendeu para seu benefício. 34. Assim, no dia 3 de Agosto de 2009, a arguida levou SG à agência de Picoas, do Banco BPI e convenceu-o a abrir uma conta bancária com n.° 8-4330922.000.001, tendo fornecido à funcionária do banco o contacto de telemóvel 915591160, utilizado pela arguida. 35. A arguida persuadiu, ainda, SG a resgatar todas as suas poupanças, aplicadas em certificados de aforro, segundo a conta de aforro n.° 19084862, num valor total de €300.126,17 (Trezentos Mil, Cento e Vinte e Seis Euros e Dezassete Cêntimos), valores que fez creditar em contas pessoais ou de terceiros, mas em seu benefício. 6. Com efeito, por sugestão e incitamento da arguida, que o acompanhou à estação dos CTT dos Restauradores, SG solicitou novas vias dos certificados de aforro e o respectivo resgate total, recebendo então um cheque no valor de €300.126,17, que depositou na conta bancária supra referida. 7. No dia 5 de Agosto de 2009, SG, acompanhado pela arguida compareceu de novo, na agência do Banco BPI, sita em Picoas, Lisboa e solicitou, por ordem da arguida, o levantamento avulso da quantia de €300.123,57, pedido que foi satisfeito. 8. Esta quantia foi entregue à arguida que a fez sua, causando à vítima um prejuízo em igual montante, pois nunca foi intenção da vítima perder as poupanças de uma vida e ficar sem dinheiro para as suas despesas. 6. Em Novembro de 2009, a sobrinha de SG foi informada pelo gestor da conta bancária n.° 45320782612 do seu tio, de que estariam a ser emitidos vários cheques por SG, na ordem dos €10.000,00/ €15.000,00, valores excessivos para as despesas que este tinha habitualmente, sendo que alguns desses cheques foram depositados em contas da arguida. 9. Mais tarde, novamente, pelo mesmo gestor bancário, Teresa... foi informada de que havia sido devolvido, por falta de provisão, um cheque bancário assinado pelo tio e que, entretanto, haviam já sido requisitados doze novos cheques. 11. Os cheques indicados emitidos em nome de SG, mas contra a sua vontade e conhecimento vieram a ser depositados nas seguintes contas bancárias, conforme graficamente a seguir se descrimina: •DataDOCValorConta destinoTitular destino                                Fls. 07-01-2009CHQ 4668696,00 €CGD 0127034062530CASA ...372 28-01-2009CHQ 4862600,00 €CGD 0127034062530CASA ...373 06-02-2009CHQ 49595.000,00 €CGD 0127034062530ENDOSSO DE SG374 06-04-2009CHQ 62201.140,00 €CGD 0127034062530CASA ...375 08-05-2009CHQ 6123630,00 €CGD 0127034062530CASA ...376 09-06-2009CHQ 5929570,00 €CGD 0127034062530CASA ...377 16-06-2009CHQ 6026570,00 €CGD 0127034062530CASA ...378 04-07-2009CHQ 63178.000,00 €BCP 165417787NFACALI BAIO379 21-07-2009CHQ 641412.000,00 €CGD 0127034062530CASA ...380 14-08-2009CHQ 6705695,00 €CGD 0127034062530CASA ...381 28-10-2009CHQ 699610.000,00 €BCP 165417787NFACALI BAIO382 28-10-2009CHQ 689910.000,00 €BPI 0-329638411Maria383 12. Após o crédito do valor de €300.123,57 na conta bancária n.° 3-3296384/000/001, titulada pela arguida MF foram efectuados os seguintes movimentos, conforme graficamente se descrimina: Data           Mov ValorConta destinoTitular/movimentador            Fls. 05-08-09EN300.126,17 €BPI 0-329638411   05-08-09  -10.000,00 MF LEV€ DAVID470 05-08-09 TD-3.500,00 €BPI 7-2782726/000/001CD471 05-08-09 TD-4.000,00 €BCP 003300000018053694813António472 05-08-09 247.000,00CONSTITUIÇÃO DE DEPOSITO AMF CDP€PRAZODAVID473 06-08-09 -18.000,00 TD€BCP 003300000018053694813António640 10-08-09 TD-1.079,50 €CGD 003503930004516050003António474 11-08-09 247.000,00LEVANTAMENTO  DE DEPOSITO LDP€PRAZO 11-08-09SBS-47.000,00SUBSCRIÇÃO AFORRO FAMILIARMF475 12-08-09SBS-50.000,00 €SUBSCRIÇÃO  BPI REFORMA INVESTIM PPRMaria640 12-08-09TD-1.300,00 €BCP 003300000016541778705NFACAL I640 12-08-09TD-4.000,00 €CGD 003521750001219753074Maria640 12-08-09TD-1.200,00 €BPI 7-2782726/000/001CD640 14-08-09TU150.000,00 €SUBSCRIÇÃO DE OBRIGAÇÕESMaria476 17-08-09TDK-2.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI477 17-08-09CH-11.000,00 €LEVANTAMENTOMaria478 20-08-09Tl90.000,00 €VENDA FORA DE BOLSAMaria479 24-08-09CH-16.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI482 24-08-09TD-80.000,00 €CGD 003503940001077240035LUIS     MANUEL A FERREIRA484 02-09-09CH-10.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI487 08-09-09CH-1.300,00 €BCP 101109018ALAGE FATI488 30-09-09UTC6.927,70 €FINANCIAMENTO CORDÃO PORTG E ANELMaria490 30-09-09CH-6.927,70 € 30-09-09CH-1.000,00 €BCP 101109018ALAGE FATI491 02-10-9CH-10.000,00  €BCP 003300000016541778705NFACALI492 02-10-09CH-1.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI493 12-10-09RSG41.000,00 €RESGATE DE NOVO AFORRO FAMILIARMaria494 14-10-09CH-19.000,00 €BCP 101109018ALAGE FATI496 14-10-09LEV-20.000,00 €LEVANTAMENTOMaria497 16-10-09CH-2.000,00 €BCP 003300000016541778705NFACALI498 20-10-09Tl40.798,20 €VENDA DE TÍTULOS FORA DE BOLSAMF 499 21-10-09RSG3.837,32 €RESGATE DE OBRIGAÇÕESMaria501 21-10-09CH-50.000,00 €LEVANTAMENTO  À  BOCA DE CAIXAMF 643 23-10-09Tl18.888,34 €VENDA FORA DE BOLSAMaria504 27-10-09RSG24.783,95 €RESGATE INVESTIMENTO PPRMaria505 28-10-09DEP10.000,00 €CHQ     6565416899 SGMaria506 02-11-09DEP1.875,77 €CHQ    6652    E    6685 CASA ...Maria509 03-11-09RSG3.495,49 €RESGATE SEGURA PPRMaria511 18-11-09LEV-1.000,00 €LEVANTAMENTOMaria512 24-11-09DEP10.000,00 €CHQ   7104260377   FÁB IGREJA PAROQUIALMaria513 20-11-09 CH 10.000,00 BCP 003300000016541778705 NFACALI 515 26-11-09RSG37.456,50 €SUBSTITUIÇÃO SEGURA E INVEST PPRP/AFORRO PPRMaria516 26-11-09SBS-37.456,50 € 26-11-09DEP4.500,00 € NID 26-11-09CH-4.500,00 €BCP 003300000016541778705NID520 03-12-09CH-1.500,00 €BST 28353808.001ANTÓNIO CONCEIÇÃO LOPES521 18-12-09UTC24.000,00 €UTILIZAÇÃO DE CAPITAL CREDITO CONTA 640 21-12-09TD-20.000,00 €BPI 3-3287522.000.001FLORES ADALILA, LDA.522 29-12-09TD-4.000,00 €BPI 3-3287522.000.001FLORES ADALILA, LDA.523 12-01-10EN4.000,00 €CHQ 4344 MANUEL MAGALHÃES FERNANDESMaria524 13-01-10LEV-2.000,00 €LEVANTAMENTOMF 525 18-01-10EN3.741,54 €CHQ 6584216740 CASA ...RETIF A ORD PI FLORINDA526 15-01-10LEV-3.000,00 €LEVANTAMENTOMaria528 29-01-10EN3.000,00 €CHQ  1342    MANUEL ALVES LOURENÇO 529 01-04-10EN1.041,00 €TB PE. RUI ALBERTO S. ANDRADE SILVA 531 13. Destes movimentos, foram transferidos por ordem da arguida MF, para as contas Millennium BCP com o NIB 003300000018053694813 e CGD com o NIB 003503930004516050003, ambas tituladas por António, o valor de € 23.079,50. 14. Para a conta bancária Millennium BCP com o n.° 3-3287522.000.001, titulada pela sociedade "Flores Adalila, Lda.", de que era sócia-gerente a arguida MF e a sua filha CD, foram transferidas quantias monetárias no valor total de € 24.000,00. 15. Por ordem da arguida para a conta bancária Millennium BCP com o NIB 003300000016541778705, titulada porBaio, foi transferido o total de € 56.800,00. 16. Para a conta bancária Millennium BCP com o n.° 101109018, titulada por Alage Fati, foi transferida no total a quantia de € 21.300,00, por ordem da arguida. 17. Através desta conta, a arguida adquiriu objectos em ouro, designadamente, um cordão e um anel, no valor de € 6.927,70. 18. A arguida ordenou ainda uma transferência bancária, no valor de € 80.003,12, a favor de Luís. 13. A arguida também aplicou o dinheiro que retirou à vítima, com a constituição de depósitos a prazo, subscrições de obrigações e/ou aforros e de planos poupança reforma, todos titulados e/ou tendo por pessoa segura/ beneficiária a arguida e, em caso de morte os seus herdeiros legais, tendo sido a própria a proceder aos respectivos resgates/levantamentos. 19. No dia 4 de Agosto de 2010 foi efectuada busca à residência da arguida, sita na Avenida ..., em Lisboa, tendo sido apreendida diversa documentação bancária comprovativa de que Maria era titular da conta bancária do BPI n.° 3-3296384/000/001. 13. Com a sua conduta ardilosa, a arguida conseguiu delapidar todas as economias de uma vida, o que alcançou com sucesso através do engano que deliberadamente criou em SG, pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu. 13. A arguida moveu-se apenas por avidez e visando, tão só enriquecer ilegitimamente à custa do empobrecimento alheio. 20. Nos últimos meses de vida, SG viveu nas instalações da CASA ... apenas por caridade, já que deixou de ter dinheiro suficiente para fazer face às despesas com a sua permanência naquele local. a) A arguida agiu sempre deliberada, livre e conscientemente b) Agiu ciente da reprovabilidade penal da sua conduta.  Mais se provou que: 32. Do certificado de registo criminal da arguida não consta averbada qualquer condenação. Percurso de vida e condições pessoais da arguida: 24. A arguida esteve casada entre os 23 e os 34 anos de idade, tendo enviuvado. 25. Desse relacionamento teve duas filhas, no presente, maiores de idade e integradas laboralmente. 26. Depois de concluir o 4.° ano de escolaridade, a arguida começou a trabalhar como empregada de balcão, no ramo do vestuário, actividade que substituiu pelo exercício de funções administrativas nos Serviços do Patriarcado de Lisboa. 27. Depois de aí permanecer largos anos foi internamente convidada para trabalhar no Lar da CASA ..., para o gerir em termos abrangentes e prestar serviços de geriatria. 28. Embora essa transição lhe proporcionasse um acréscimo salarial de relevo, porquanto transitaria de 400 para 700 euros mensais remuneratórios, a arguida referiu ter aceite a proposta com algumas reservas, mas que não pôde contornar a situação de outra forma, porque reconheceu que tal decisão decorreu da gestão dos parcos recursos humanos existentes à época. I. Antes da data dos factos, a arguida havia acumulado funções laborais na sociedade "Flores Adalila, Lda.", por si gerida maioritariamente das vezes à distância, uma vez que era uma funcionária/ empregada que assumia a maioria das responsabilidades comerciais. II. Segundo o descrito pela arguida, a exploração dessa actividade não lhe permitia obter proventos suficientes, porquanto os mesmos ficavam aquém das responsabilidades económicas que tinha a assumir com o respectivo negócio. III. Esta situação que trouxe-lhe algumas repercussões negativas em termos económicos, e que a motivaram a contrair dois empréstimos, um bancário e outro a uma empresa privada de crédito. IV. No presente, e segundo a descrição da arguida, esses empréstimos ainda são mantidos, sob condições de amortização recentemente negociadas, por alegada insuficiência económica. 32. Na actualidade, está a pagar um valor total de aproximadamente 170,00 euros mensais. V. Actualmente, embora a arguida apenas viva com uma das filhas, também beneficia da ajuda económica da outra filha já independente, atendendo a que ambas estão laboralmente activas e pelo facto da própria ter sido despedida. 32.Embora a arguida esteja inscrita em empresas de trabalho temporário, não tem consigo contornar a sua situação de inactividade de forma sustentável, uma vez que têm sido poucos os trabalhos que conseguiu angariar, ao nível da prestação de cuidados de limpeza/ manutenção e de geriatria. 32. A arguida beneficia de 194,00 euros de pensão de viuvez.*2. Factos Não Provados: Com relevo para a decisão final, não resultaram provados os seguintes factos: 6. Aproveitando-se da debilidade física e psicológica de SG, a arguida foi alimentando sentimentos amorosos, que aquele tinha para com ela, criando nele a expectativa de vir a ser correspondido e com a arguida estabelecer um futuro relacionamento amoroso. 7. Desde o início a vontade da arguida era a de enriquecer à custa do património de SG e na execução dos seus intentos, com vista a transferir todo o dinheiro que este tivesse para si, a arguida convenceu-o de que seria ela a tratar da gestão do seu dinheiro, para que os seus familiares não viessem a herdar quaisquer valores. 8. O primeiro passo foi afastar progressivamente os familiares do idoso da sua esfera pessoal, nomeadamente, Teresa, por quem SG deixou de manifestar qualquer interesse. d) Acerca dos cheques emitidos à ordem da CASA ..., os mesmos foram entregues pela arguida já devidamente assinados pelo Pe. SG, tendo ela dito tratarem-se de "doações" do mesmo à CASA ..., sendo que posteriormente parte desses valores desapareceram das contas da CASA ....*3. Motivação da Decisão de Facto: Para a decisão sobre a matéria de facto considerada provada, o Tribunal fundou a sua convicção na análise ponderada e valoração crítica da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, em conjugação com a prova documental junta aos autos, a qual foi apreciada à luz das regras da experiência comum e da lógica, e de acordo com a livre convicção dos julgadores (artigo 127.° do Código de Processo Penal). Acresce que não foi produzida qualquer prova, relevante e efectiva, em sentido contrário à verificação destes factos. Concretizando: 3.1. Declarações para memória futura: Em sede de audiência de julgamento procedeu-se à leitura das declarações para memória futura, prestadas pelo ofendido Padre SG, em 17 de Novembro de 2010 (auto de fls. 268/ 269), no qual: «Confirma as declarações prestadas, que lhe foram lidas na íntegra, e que constam de fls. 16 e seguintes e 173 e seguintes. À data dos factos tinha muita estima e consideração por MF, a qual cuidava de si, dava-lhe a medicação e era afectuosa. Era sua intenção quando falecesse que o seu dinheiro fosse distribuído pelas sobrinhas e pela Igreja Católica. Actualmente, e caso fosse possível reaver o seu dinheiro, gostaria que esse fosse na totalidade entregue à Igreja Católica e em especial à CASA ....». Da conjugação das declarações prestadas em 18 de Junho de 2010 (fls. 16 a 18 dos autos), e em 06 de Agosto de 2010 (fls. 173/ 173 verso) resulta, em síntese e com relevo, o seguinte: - No que respeita à relação com a arguida Maria, o Padre SG declarou que era uma relação de amizade e de confiança, negou qualquer relação amorosa, bem como qualquer pedido de casamento, tendo confirmado que era a arguida quem geria o dinheiro que o mesmo tinha na sua posse, na CASA ..., e no Banco. - Quanto aos certificados de aforro, o Padre SG declarou que, por desconfiar das sobrinhas, Teresa e Anabela, no sentido de lhe retirarem os seus bens e dinheiro, e também porque para tal foi impulsionado e sugestionado pela Arguida, que julgava pessoa de bem e de confiança, retirou, em altura que não sabe precisar, os referidos certificados de aforro, da conta bancária do BCP, para o Banco BPI, numa conta bancária co-titulada pelo depoente e pela Arguida, entretanto aberta por ambos, para melhor gestão e, como lhe indicou a Arguida, "maior protecção" dos mesmos. Recebeu o cheque no valor de 300.126,17 euros dos CTT, estando na altura acompanhado da Arguida, na Estação dos Correis dos Restauradores. O cheque foi depositado por si no Balcão do BPI de Picoas, ou no mesmo dia ou no dia seguinte, tendo também para o efeito sido acompanhado pela Arguida. Nunca teve intenção de dar, oferecer ou de qualquer forma presentear a Arguida, ou outra pessoa, com o referido dinheiro, que quando depositou na sua conta era para ser seu. -        No que concerne aos cheques, o Padre SG declarou que, pelo menos por uma vez, em altura que não se lembra exactamente, assinou um cheque bancário no valor de 1.500,00 euros, para que a Arguida o gastasse com ela própria, e porque a mesma lhe pediu, dizendo que necessitava de dinheiro. Reconhece que, a dada altura, perdeu o controle à gestão que a Arguida fazia dos cheques que lhe entregava, alguns à ordem da CASA ..., outros em branco, pelo que sabe hoje que a Arguida terá abusado da sua confiança, chegando a levantar cheques que ele não assinou. -  Mais declarou que sente-se lesado em valor não determinado e respeitante aos seus certificados de aforro, à sua pensão atribuída pela segurança social, e às quantias levantadas por via de cheque bancário, sem a sua autorização. 3.2. Declarações da Assistente: O Tribunal valorou as declarações da assistente Teresa (sobrinha do Padre SG), concertadas com as declarações para memória futura, a globalidade dos depoimentos das testemunhas e o teor dos documentos constantes dos autos. A assistente revelou algum conhecimento directo dos factos, em virtude da relação familiar e próxima com o Padre SG e depôs de modo objectivo, claro, coerente e credível. Confirmou que o Padre SG residiu na CASA ..., desde 2008 até à data do seu falecimento. Quanto aos certificados de aforro, declarou que o Padre SG era o titular e a assistente movimentadora, que aquele recebia mensalmente o respectivo extracto, referia que tinha cerca de 300.000,00 euros, e nunca havia levantado qualquer montante depositado na respectiva conta aforro. Teve conhecimento do resgate dos certificados de aforro, através do Instituto de Gestão do Crédito Público. Relativamente aos cheques, esclareceu que o Padre SG lhe disse que só assinava os cheques e o resto era preenchido pela Arguida; foi contactada pelo respectivo gestor da conta, que a informou que estavam a ser movimentados vários cheques, para além do cheque que o Padre SG emitia, mensalmente, à ordem da CASA ..., para pagamento da mensalidade. Teve também conhecimento, através do gestor de conta, da requisição de 12 cheques. 3.3. Prova testemunhal: O Tribunal baseou-se, igualmente, na globalidade dos depoimentos das seguintes testemunhas (conjugados entre si e conjugados com as declarações para memória futura do Padre SG, as declarações da assistente, e o teor dos documentos): - A testemunha Catarina (filha da arguida) demonstrou algum conhecimento pessoal da factualidade em causa, na medida em que trabalhou na CASA ..., desde 2003 a 2010, prestando cuidados de enfermagem. Referiu, de modo objectivo, seguro, consistente e credível, que o pagamento do seu vencimento mensal era efectuado pela sua mãe, ora arguida, e que esta ajudava-a financeiramente, tendo confirmado a transferência no valor de 3.500,00 euros, constante do documento de fls. 471, que lhe foi exibido. -  O depoimento da testemunha Patricia (Inspectora da Polícia Judiciária), prestado de forma objectiva, isenta, coerente e credível, contribuiu para esclarecer as circunstâncias em que foi efectuada a audição do Padre SG, bem como a busca domiciliária à residência da arguida, na qual participou. Referiu, com relevo, que o Padre SG demonstrou que não era do seu conhecimento o destino das quantias monetárias, e que se revelou surpreendido com as perguntas, uma vez que pensava ser possuidor do dinheiro. - A testemunha Manuel (sacerdote, na CASA ... desde 2002) depôs de modo isento, objectivo e convincente, tendo referido, em síntese e com relevo, que não tem conhecimento de doações à CASA ..., por parte do Padre SG, e que este estava preocupado com os seus bens. Mais afirmou que, algumas vezes, a Arguida lhe pediu dinheiro emprestado, bem como a outros padres da CASA .... - No que respeita à factualidade relativa à conta do BPI e ao resgate dos certificados de aforro, assumiram relevância, também, os depoimentos das testemunhas Natacha, Cidália. - A testemunha Natacha (bancária, exercendo funções no BPI há 10 anos) prestou um depoimento objectivo, isento e credível. Referiu, com relevo, que à data dos factos trabalhava na agência de Picoas, do Banco BPI, conhece a arguida como cliente, e não se recorda do padre SG. Confrontada com os documentos de fls. 216 a 218 (ficha de assinaturas) e de fls. 219 (talão de levantamento, do valor de 300.123,57 euros), confirmou a sua assinatura, e esclareceu que a existência de duas assinaturas justifica-se pela circunstância do Padre SG ser muito idoso. -    A testemunha Alice (religiosa, na CASA ..., desde Abril de 2010) referiu, de forma serena, clara e credível, que acompanhou o Padre SG, uma vez, ao balcão do Banco BPI, na Avenida Fontes Pereira de Melo, o mesmo perguntou pelo seu dinheiro e foi-lhe dito que tinha sido levantado em Agosto. Mais declarou que o Padre SG costumava dizer "eu tinha tanto dinheiro, agora não tenho, não sei como vos compensar", mas nunca lhe mencionou ter efectuado doações à CASA .... - Quanto à testemunha Cidália (trabalhou como cozinheira, na CASA ..., durante 4 anos) referiu, com relevo, que a arguida lhe telefonou, dizendo que estava na estação dos correios dos Restauradores. Declarou, também, que acompanhou a arguida, muitas vezes, à Praça do Chile e que aquela era carinhosa com o Padre SG. - A testemunha Cidália (funcionária dos CTT dos Restauradores, há cerca de 10 anos) declarou, em síntese, que se recordava de um senhor de idade, acompanhado de uma senhora jovem, para efectuar o resgate dos certificados de aforro. -Quanto à matéria factual referente aos valores creditados pela arguida em contas de terceiros, em seu benefício, o Tribunal valorou, igualmente, os depoimentos objectivos, claros, coerentes e credíveis, das testemunhas CD (acima identificada), AL, Maria,Baio e Luís AL (contabilista da CASA ..., desde 2008 até à presente data), confirmou as transferências bancárias efectuadas pela arguida, para as contas de que o depoente é titular, esclarecendo que se trata do reembolso dos empréstimos concedidos a Maria. -O depoimento da testemunha Maria, apenas relevou na parte que confirmou que a arguida explorou o estabelecimento comercial "Flores Adalila, Lda.", desde 2007 até 23.02.1011, e que teve problemas com a falta de pagamento de rendas, por parte da arguida, no valor de 1.500,00 / 1.600,00 euros. -A testemunha Baio (astrólogo, com consultório na Praça do Chile) declarou, em síntese e com relevo, que prestou consultas e efectuou trabalhos por conta da arguida. Referiu que esta efectuou o pagamento desses serviços através de cheques, bem como de transferências bancárias, admitindo que recebeu da arguida, o valor total de cerca de 56.800,00 euros. Confrontado com as cópias dos cheques de fls. 24 e 25 dos autos, confirmou que os mesmos lhe foram entregues pela arguida, acrescentando que a maior parte dos trabalhos foram pagos através de cheque. O depoimento da testemunha Luís (sacerdote) esclareceu o Tribunal sobre as circunstâncias da transferência bancária, pela arguida, do montante de 80.003,12 euros, constante do documento de fls. 484, que lhe foi exibido, tendo confirmado o recebimento daquela quantia. Referiu, em síntese e com relevo, que o Padre SG confiava na arguida, que esta tratava os sacerdotes com carinho, e que transmitiu ao ora depoente que se tratava de um donativo de um sacerdote da CASA .... Mais declarou que falou, várias vezes, com o Padre SG, mas nunca sobre o assunto da doação, porque pensava que aquele preferia ficar no anonimato e, ainda, que nessas conversas o Padre nunca manifestou a vontade de doar parte do seu dinheiro. - Relativamente ao depoimento da testemunha Lucinda , o mesmo assumiu pouco relevo, na medida em que não demonstrou conhecimento directo e pessoal dos factos que constituem o objecto deste processo. Referiu que visitou apenas uma vez o Padre SG e não conversou directamente com os padres da CASA ..., sobre as situações em causa nos presentes autos. 3.4. Prova documental Assumiram relevância os seguintes documentos (conjugados entre si, e com os meios probatórios supra referidos): . Documentação diversa (fls. 4, 6, 20 a 28, 31, 40, 86, 646 a 648, 741 a 744); . Documentos do Instituto de Gestão do Crédito Público (certificados de aforro): fls. 87 a 103, 143 a 172, 564 a 609; . Documentos do Millennium BCP: fls. 137 a 142, 372 a 383, 454 a 456, 691 a 698; . Documentos do Banco BPI: Fls. 216 a 224, 404 a 440, 442, 443, 449, 450, 469 a 537, 640 a 644; . Documentos da CG.D.: fls. 684 a 689; . Auto de busca e apreensão de fls. 118 e documentos apreendidos na residência da arguida: fls. 119 a 125, fls. 127 a 129. . Auto de recolha de autógrafos do Padre SG: Fls. 292 a 295, 297, 307 a 310, 334 e 335. - Quanto ao elemento subjectivo, no que concerne à intenção com que a arguida actuou, "dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência" [cf. Ac. da Relação do Porto de 23.02.1983, BMJ, n.° 324, pág. 620]. No que respeita aos factos atinentes ao elemento subjectivo, os mesmos resultam, deste modo, apurados como decorrência da conduta objectiva da arguida MF. Da ponderação de toda a prova descrita, conjugada com as regras de experiência e de lógica, atendendo às circunstâncias em que os factos foram praticados e ao modo de actuação, resulta evidente o conhecimento pela arguida, do aproveitamento da relação de confiança estabelecida com o padre SG, bem como da apropriação ilegítima das quantias monetárias supra referidas, e a vontade em agir dessa forma.*- Quanto à ausência de condenações anteriores, foi relevante o certificado de registo criminal da Arguida, junto a fls. 951 dos autos.*- Relativamente às condições pessoais e situação económica da arguida, o Tribunal valorou o relatório social, constante de fls. 952 a 955 dos autos.*A decisão sobre a matéria de facto julgada não provada resultou da falta e/ ou insuficiência de elementos probatórios que permitissem ao Tribunal firmar um juízo de certeza e segurança, no sentido da verificação destes factos. Com efeito, a Arguida exerceu o seu direito ao silêncio e não prestou declarações sobre os factos que lhe são imputados. Pelo que, perante a fragilidade das declarações da assistente e dos depoimentos das testemunhas, quanto a esta factualidade, e face à ausência de outros meios probatórios, objectivos, consistentes, isentos e credíveis, o Tribunal não poderia formular uma convicção, certa e segura.» *** 2 - Apreciação dos fundamentos do recurso: 2.1. Perante as conclusões extraídas pela recorrente a partir da respectiva motivação - a quais, conforme entendimento pacífico e uniforme dos Tribunais Superiores, delimitam e fixam o objecto do recurso -, aquela limita-se a impugnar a matéria de facto provada, pugnando pela alteração desta e pedindo, em consequência dessa alteração, a sua absolvição.***2.2. Apreciemos, pois, o alegado: Segundo as aludidas conclusões do recurso, a arguida considera incorrectamente julgados os factos provados sob os números 3, 21, 24 e 25, cuja redacção é a seguinte: - Depois de ganhar toda a confiança de SG, a arguida convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro, nunca tendo sido sua intenção devolver-lhas e a assinar cheques em branco, que posteriormente ela preencheu como entendeu para seu benefício; … - Com a sua conduta ardilosa, a arguida conseguiu delapidar todas as economias de uma vida, o que alcançou com sucesso através do engano que deliberadamente criou em SG, pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu; … - A arguida agiu sempre deliberada, livre e conscientemente; - Agiu ciente da reprovabilidade penal da sua conduta. Como temos frequentemente dito, o recurso em matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria, sendo antes e apenas uma oportunidade para remediar eventuais males ou erros cometidos pelo tribunal recorrido. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, «o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida»[1]. Competindo ao tribunal de recurso aferir da legalidade e da bondade do caminho percorrido pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção e alcançar o resultado que se traduziu na respectiva decisão em sede de matéria de facto, deverá ter-se presente que em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjectiva, nomeadamente quanto à credibilidade da prova pessoal, e que os próprios depoimentos em audiência são frequentemente condicionados pelo modo como são recebidos. Tal componente «implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação»[2]. Assim, caberá ao tribunal de recurso verificar se o julgador, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio da livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar ao veredicto de facto, sendo que, na base desse controlo deverá estar a motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação daquela que foi a sua opção, ao dar cumprimento ao disposto o art. 374.º, n.º 2, do CPP. Por isso, a censura dirigida à decisão proferida deverá assentar “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” (Ac. do TC n.º 198/2004 – DR II série, de 2/6/2004; Ac. do TRL de 7/11/2007, Proc. 4748/07-3). Dentro de tais parâmetros, a reapreciação da prova só determinará uma alteração da matéria de facto quando, daquele reexame, se concluir que as provas indicadas pelo(a) recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, impõem uma decisão diversa, não podendo ocorrer tal alteração quando a reapreciação da prova apenas permita uma decisão diferente da proferida. Pois que, havendo, face à prova produzida, duas ou mais possíveis soluções para a questão de facto, se a decisão impugnada se mostrar devidamente fundamentada e a decisão de facto constituir uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, esta deve prevalecer, não sendo passível de crítica, não ocorrendo violação das regras e princípios de direito probatório. No presente caso, importa ainda não esquecer um outro dado muito relevante. A arguida vinha acusada da prática de um crime de burla qualificada, cujos requisitos típicos estão enunciados no art. 217.º, n.º 1, do CP. Para o preenchimento do respectivo tipo, o MP tivera de alegar a factualidade necessária ao preenchimento dos seus elementos, entre eles, que o ofendido foi determinado a entregar o dinheiro à arguida mediante «erro ou engano» sobre factos que esta «astuciosamente provocou». A essência da matéria alegada nos factos provados sob os números 3 e 21 insere-se no objectivo de preencher esse elemento típico. Acontece, porém, que, no decurso da audiência de julgamento (cfr. fls. 963 e 969), o MP requereu que fosse cumprido o disposto no art. 358.º, n.º 3, do CPP, tendo em vista uma eventual alteração da qualificação jurídica dos factos imputados, afigurando-se-lhe que estes poderão configurar a prática de um crime de abuso de confiança qualificado. Requerimento que o tribunal deferiu de imediato, cumprindo o aludido normativo - do nosso ponto de vista, prematuramente, uma vez que ainda não havia sido produzida toda a prova e não era, por isso, o momento processual próprio para juízos de valor quanto às provas já produzidas e para ponderar o que devia ser considerado provado ou não provado -, sendo certo que a defesa nada opôs a tal alteração e prescindiu de prazo para resposta. Foi na sequência dessa alteração da qualificação jurídica que a arguida acabaria por ser condenada por um crime diferente do imputado, ou seja, por um crime de abuso de confiança agravado. Como sabemos, os requisitos deste crime, cuja previsão consta do art. 205.º, n.º 1, do CP, são diferentes dos da burla. Enquanto neste último, a entrega dos valores ao agente do crime é determinada por erro ou engano, que este astuciosamente provocou no ofendido, coincidindo a apropriação ilegítima com a entrega, no abuso de confiança os bens ou valores passaram a estar na posse do agente do crime de modo lícito, foram-lhe entregues consciente e voluntariamente, sem qualquer ardil, pelo respectivo dono - por título não translativo da propriedade, no dizer da lei -, ocorrendo a apropriação pelo agente do crime em momento posterior, através da inversão do título de posse.      Em termos práticos, a aludida alteração a que procedeu o tribunal ao abrigo do art. 358.º, n.º 3, do CPP, deveria, em princípio, ter na sua génese uma alteração fáctica, implicando que os factos alegados na acusação, segundo os quais o ofendido foi enganado e determinado, de forma ardilosa, a entregar o dinheiro à arguida, fossem excluídos dos factos provados, ou seja, deviam ter sido considerados não provados, sob pena de entrarem em contradição com a demais factualidade e com a conclusão (decisão) no sentido de que a apropriação se deu posteriormente à aludida entrega, através da mencionada inversão do título de posse. Só não seria assim se o crime imputado pelo MP na acusação pública se devesse a evidente erro de subsunção dos factos ao direito e a respectiva imputação não tivesse correspondência nos factos que naquela foram descritos. Efectivamente, na nossa perspectiva, só pode ter sido esta a posição do tribunal recorrido, decorrendo a nova incriminação, exclusivamente, de uma diferente leitura dos factos imputados e não de uma qualquer alteração destes em função da prova que já havia sido produzida. Coloca-se, pois, a questão de saber como, perante os mesmos factos, o tribunal recorrido chegou à conclusão que a arguida cometeu um crime de abuso de confiança e não um crime de burla. A resposta só pode estar no enquadramento da relação existente entre a arguida e ofendido, em que aquela, no exercício das funções de gestora na CASA ... do Patriarcado, onde residia o segundo, ganhou toda a confiança deste, assumindo a administração e gestão de todos os seus bens pessoais, nomeadamente do dinheiro que o mesmo possuía. Parece decorrer da decisão recorrida que todos os actos ilícitos praticados posteriormente àquele momento em que a arguida assumiu a gestão dos bens do ofendido se inserem nessa actividade de gestão e administração dos bens do ofendido, tendo a arguida, então, formulado o propósito de se apropriar do dinheiro, intenção que concretizou pelos meios supra descritos nos factos provados. Ou seja, na perspectiva do tribunal recorrido, o ofendido terá colocado à disposição da arguida todo o seu património, que esta, depois, geriu da forma que achou mais conveniente, levando aquele a praticar vários actos que permitiram à arguida apropriar-se desse dinheiro. Desse ponto de vista, a arguida passou a ter à sua disposição o património do ofendido e, só após esse momento, decidiu apropriar-se do dinheiro do modo descrito na acusação. É um ponto de vista. Podendo ser considerado algo simplista e mesmo reducionista de uma realidade que parece ser bem mais complexa do que aparenta - desde logo, pela existência de duas situações bem distintas, com modos de agir muito diferentes, por um lado, a apropriação da quantia de € 300.123,57, oriunda do resgate dos certificados de aforro do ofendido, por outro, a emissão de vários cheques pela arguida, que sacou da respectiva conta do ofendido, ao longo de dez meses, contra a vontade e sem o conhecimento deste (facto provado n.º 11, que não foi impugnado) -, não vamos discutir aqui a maior ou menor correcção dessa maneira de ver as coisas, porque entendemos que tal discussão seria completamente inútil. Na verdade, tendo apenas a arguida interposto recurso da decisão final - conformando-se com ela o MP e a assistente, na medida em que dela não recorreram -, por um lado, a recorrente não questiona a qualificação jurídica operada pelo tribunal recorrido e, por outro, mais importante que tudo o resto, a sua posição processual jamais poderá ser agravada neste processo, por força, entre outros, do princípio da proibição da reformatio in pejus, o que impossibilita qualquer agravamento da condenação imposta, quer por este tribunal de recurso, quer pelo tribunal de primeira instância, numa eventual repetição do julgamento efectuado, caso este fosse anulado. Por isso, tendo em consideração as premissas atrás enunciadas, só nos resta apreciar a pretensão da recorrente, limitada, como dissemos, à impugnação daqueles quatro pontos da matéria de facto e, fixada esta, responder à questão se deve ser absolvida ou manter-se a condenação. Reconhece-se que, enveredando o tribunal recorrido pela subsunção dos factos ao crime de abuso de confiança, parece no mínimo estranho que tenham permanecido na matéria de facto provada determinadas expressões que haviam sido alegadas na acusação na perspectiva de ter sido cometido um crime de burla, parecendo mesmo haver alguma incompatibilidade entre essas expressões e a verificação daquele primeiro crime. Referimo-nos, nomeadamente, às expressões constantes dos factos impugnados sob os números 3 e 21, para além de outras constantes de outros factos, que não há qualquer interesse em especificar, porque não impugnados. Assim: No facto n.º 3 consta que «depois de ganhar toda a confiança de SG, a arguida convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro, nunca tendo sido sua intenção devolver-lhas e a assinar cheques em branco, que posteriormente ela preencheu como entendeu para seu benefício». Enquanto no facto provado n.º 21 consta: «Com a sua conduta ardilosa, a arguida conseguiu delapidar todas as economias de uma vida, o que alcançou com sucesso através do engano que deliberadamente criou em SG, pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu». No que respeita à confiança, é indubitável que o padre SG jamais iria colocar toda a sua fortuna à disposição de alguém que não lhe merecesse toda a confiança. A arguida conquistou, sem dúvida alguma, a confiança do ofendido, ao ponto de este lhe entregar cheques já assinados, para aquela preencher e utilizar - nos assuntos respeitantes à gestão corrente da CASA ... do Patriarcado – e, essencialmente, para resgatar os certificados de aforro e colocar à guarda da arguida a respectiva quantia, elevada, de mais de trezentos mil euros, com o intuito de à mesma não terem acesso as suas sobrinhas. Que, depois, a arguida usou cheques para proceder a levantamentos e transferências de dinheiro para outros fins que não a gestão daquela Casa, assim como, fez sua a aludida quantia de € 300.123,57, é matéria que nem sequer está impugnada. A única questão controvertida é a que respeita à motivação do ofendido, quando colocou à disposição da arguida todo o seu dinheiro. Aquele faleceu entretanto, tendo sido colhido o respectivo depoimento para memória futura, o qual foi lido em audiência. A arguida, sendo a pessoa melhor colocada para esclarecer o que efectivamente se passou, preferiu remeter-se ao silêncio, no exercício de um direito que a lei lhe reconhece - sem que, por isso, possa ser prejudicada -, tentando fazer passar na respectiva alegação de recurso a versão que tentara fazer vingar em julgamento, no sentido de que o dinheiro lhe fora «dado» pelo ofendido. Trata-se de afirmação que não tem qualquer apoio nas declarações do próprio ofendido, que contrariam tal versão – nunca tendo tido a «intenção de dar, oferecer ou de qualquer forma presentear a arguida, ou outra pessoa com o referido dinheiro» -, nem em qualquer outro meio de prova, sendo, por isso, de afastar liminarmente tal versão. Também não tem qualquer apoio na prova a afirmação de que o ofendido agiu no convencimento de que estava a emprestar o dinheiro à arguida, esperando que esta o devolvesse posteriormente. O que existe de concreto e que tem mais sentido, para o qual apontam as regras da experiência comum, é que, tal como o declarou o ofendido, este, julgando a arguida pessoa de bem e de confiança, sugestionado por ela e porque desconfiava que as suas sobrinhas lhe retirassem os bens e o dinheiro, resgatou os certificados de aforro e colocou o dinheiro numa conta titulada por ele e pela arguida. Pelas aludidas razões, confiando na arguida, permitiu que esta gerisse o seu dinheiro, na CASA ... e no banco, entregando-lhe cheques que aquela usava para o efeito. Ou seja, perante as preocupações manifestadas pelo ofendido relativamente ao dinheiro, a arguida foi dando sugestões, convencendo-o a proceder de determinado modo, sugestões que o ofendido ia aceitando, dada a relação de extrema confiança que nela depositava, até que esta, com tal procedimento, conseguiu fazer com que o dinheiro ficasse à sua inteira disposição. A partir desse momento, procedeu do modo descrito nos factos provados, apropriando-se dele e gastando-o em seu benefício, tendo o ofendido «perdido o controlo à gestão que a arguida fazia dos cheques que lhe entregava». Ao apropriar-se do dinheiro, a arguida nunca teve a intenção de devolvê-lo e nunca o devolveu.  Pode, pois, dizer-se que, do alegado no facto 3, apenas a referência ao empréstimo estará algo desajustada e, quanto a doações feitas pelo ofendido à arguida, aquele apenas refere uma quantia de € 1500,00, que lhe entregou em cheque, para que ela gastasse em proveito próprio, porque a mesma lhe pediu, dizendo que necessitava de dinheiro. Todavia, o aludido facto n.º 3, assim como as referências feitas no facto provado n.º 21 à «conduta ardilosa» e ao «engano que deliberadamente criou», é matéria totalmente irrelevante, perante a subsunção jurídica dos factos feita pelo tribunal recorrido. Porquanto, tendo-se aproveitado a arguida do facto de ter o dinheiro do ofendido à sua disposição, de cuja gestão estava incumbida, quer através de cheques que este lhe entregou, muitas vezes já assinados e não preenchidos, quer abrindo conta conjunta e entrando na posse da quantia de € 300123,57, aquela desencaminhou o dinheiro, dando-lhe uma utilização em seu exclusivo benefício e em prejuízo do ofendido, delapidando todas as economias deste, «pessoa frágil, doente e idosa, aproveitando-se da relação de confiança que com ele estabeleceu», ou seja, a apropriação ilícita levada a cabo pela arguida não resultou do pretenso «erro ou engano» que esta «astuciosamente provocou», conforme fora alegado pela acusação, diversamente, a aludida apropriação do dinheiro, por parte da arguida, ocorreu porque o mesmo estava à sua disposição para determinado fim - fora-lhe entregue por título não translativo de propriedade -, gastando-o, porém, em seu exclusivo interesse e benefício, ou seja, deu-lhe um destino diferente, agindo com se fosse a verdadeira dona. Em suma, inverteu o título de posse, passando a agir como proprietária do dinheiro, gastando-o em seu proveito, contra a vontade e sem o conhecimento do verdadeiro titular. Concluindo este ponto: ainda que se retirem dos factos 3 e 21 as aludidas expressões - «convenceu-o a emprestar-lhe diversas quantias em dinheiro», «com a sua conduta ardilosa» e «através do engano que deliberadamente criou em SG» - os restantes factos continuam a ser subsumíveis ao crime de abuso de confiança pelo qual foi condenada a arguida, em nada influenciando o resultado final e não determinando a sua absolvição. Foram ainda impugnados pela arguida os factos provados 24 e 25. Quanto ao primeiro, que «a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente», é a afirmação mais do que evidente, na medida em que, o modo natural de agir de qualquer ser humano é livre, consciente e deliberado, pois, só assim não acontece quando a pessoa age sob coacção ou em circunstâncias anormais que lhe retirem ou diminuam a sua capacidade de acção de ser eminentemente livre, e só não agirá conscientemente se estiver em estado de inconsciência decorrente, nomeadamente, de doença mental que lhe retire toda a capacidade de se determinar livremente, se estiver sob hipnotismo, em sonambulismo, ou em estado de embriaguez completa, ou quaisquer outras situações que, de igual modo, lhe afectem tal estado de consciência. Nada existindo nos autos, nem tendo sido suscitada qualquer situação, com capacidade de influir na liberdade de decisão e de acção da arguida, teremos de concluir que esta agiu de forma livre e consciente e que teve o propósito deliberado de se apropriar das aludidas quantias em dinheiro. Questão ligeiramente diferente é a respeitante ao conhecimento da proibição legal. Tal como já tivemos oportunidade de escrever em anterior decisão, que ora reproduzimos, na parte relevante, por mera comodidade: «O tipo de ilícito – primeiro degrau valorativo da doutrina do crime (o mesmo se diga quanto às contra-ordenações) – tem por função dar a conhecer ao destinatário que determinada espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico e é sempre constituído por uma vertente objectiva (os elementos descritivos do agente, da sua conduta e do seu circunstancialismo) e por uma vertente subjectiva: o dolo ou a negligência. Só da conjugação dos dois elementos ou vertentes (objectiva e subjectiva) pode resultar o juízo de contrariedade da acção à ordem jurídica, o mesmo é dizer, o juízo de ilicitude[3]. … o Código Penal, não define o dolo do tipo, indicando, porém, no art. 14.º, deste Código, as formas que pode revestir (directo ou intencional, necessário e eventual). No conceito desenvolvido pela doutrina, comporta aquele duas vertentes: a) a intelectual, isto é, o conhecimento material dos elementos e circunstâncias do tipo legal; b) a volitiva ou emocional, isto é, a vontade de adoptar a conduta, o querer adoptar a conduta, não obstante aquele conhecimento, mesmo tendo previsto o resultado criminoso como consequência necessária ou como consequência possível dessa conduta[4]. Ou seja, o dolo do tipo não se basta com aquele conhecimento dos elementos típicos, mas exige simultaneamente «a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização»[5]. Este elemento volitivo pode traduzir-se em diferentes classes de dolo, consoante a direcção e força da vontade manifestada, podendo assumir-se aquele como directo, necessário ou eventual. Quanto ao elemento intelectual do dolo: É necessário, para que o dolo se afirme, que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo. Pretende-se que o agente, ao actuar, “conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito”[6]. Com a consequência de que sempre que o agente represente erradamente, ou não represente, um qualquer dos elementos típicos objectivos, o dolo terá de ser afastado. É o princípio da congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso. Como refere Figueiredo Dias[7], «se o tipo de ilícito é o portador de um sentido de ilicitude, então compreende-se que a factualidade típica que o agente tem de representar não constitua nunca o agregado de “puros factos”, mas já de “factos valorados” em função daquele sentido de ilicitude…tornando-se indispensável a apreensão do seu significado correspondente ao tipo». Tal exigência deve respeitar não só aos elementos descritivos do tipo, mas também aos elementos normativos, «aqueles que só podem ser representados e pensados por referência a normas, jurídicas ou não jurídicas». Embora não se exigindo, quanto a estes, que o agente conheça, com toda a exactidão, a subsunção jurídica dos factos na lei que os prevê, sob pena de só o jurista conhecedor poder agir dolosamente - se o agente conhece o conteúdo do elemento mas desconhece a respectiva qualificação jurídica, há um erro de subsunção, que é absolutamente irrelevante para o dolo do tipo - o certo é que se mostra estritamente necessário que o agente tenha conhecimento dos elementos normativos, numa «apreensão do sentido ou significado correspondente, no essencial e segundo o nível próprio das representações do agente, ao resultado daquela subsunção ou, mais exactamente, da valoração respectiva»[8]. Para além disso, casos há em que, para a afirmação do dolo do tipo torna-se ainda indispensável que o agente tenha actuado com conhecimento da proibição legal. Tal acontece quando «o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quando também pela proibição legal. Nestes casos, com efeito, seria contrária à experiência e à realidade da vida a afirmação de que o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento orientam suficientemente a consciência ética do agente para o desvalor do ilícito»[9]. Por um lado, o art. 16.º, n.º 1, do CP, reconhecendo o erro sobre a proibição, afirma que a sua existência exclui o dolo, equiparando-o ao erro sobre a factualidade típica, quando “for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto”… Embora com muita raridade se possa afirmar aquele erro sobre a proibição em direito penal - existem, porém, casos de ilícito penal em que ele se pode verificar, nomeadamente em certos crimes de perigo abstracto ou em certas incriminações pertencentes ao direito penal secundário, nomeadamente no direito penal económico, em que a relevância axiológica da conduta, na maior parte dos casos, é de tal maneira ténue que o conhecimento da proibição deve ter-se por indispensável «para a orientação do agente para o desvalor da ilicitude»[10]- é ele muito mais usual no ilícito de mera ordenação social. Neste, tal como no ilícito criminal, para a verificação do dolo do tipo exige-se o conhecimento da proibição legal e o erro respectivo exclui o dolo. Fica, porém, ressalvada a punição a título de negligência, nos termos gerais (n.º 3, do mencionado art. 8.º). Mas o dolo é ainda a expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença, perante o dever-ser jurídico-penal, sendo, nesta perspectiva, um elemento constitutivo do tipo de culpa dolosa… O princípio da culpa constitui uma máxima fundamental do direito penal, bem como do direito contra-ordenacional, do que deriva a exigência de que a aplicação de qualquer pena (incluída a coima) supõe sempre que o ilícito típico foi praticado com culpa, traduzindo-se esta numa censura dirigida ao agente pela prática do facto. Ora, o tipo de culpa doloso verifica-se quando, perante um ilícito típico doloso, «se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas; se uma tal comprovação se não alcançar ou dever ser negada o facto só poderá eventualmente vir a ser punido a título de negligência»[11]. Já longe vai o tempo em que a “ignorância da lei não eximia de responsabilidade criminal” (CP/1886 – art. 29.º), fundamentando a irrelevância da falta de consciência da ilicitude para a afirmação do dolo. Com a afirmação do princípio da culpa (nulla poena sine culpa), inscrito no … art. 13.º, do CP, o modo de ver o problema tinha necessariamente de ser diferente. Apesar das divergências existentes na doutrina quanto aos efeitos da ausência daquela consciência do ilícito (teorias do dolo, estrita e limitada e teorias da culpa, estrita e limitada), o certo é que tal ausência deixou de ser irrelevante. No direito penal e contra-ordenacional português actual, existem duas espécies de erro jurídico-penalmente relevante, com duas formas de relevância e diferentes efeitos sobre a responsabilidade do agente: uma exclui o dolo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (art. 16.º, do CP e 8.º, n.ºs 2 e 3 do RGCO); a outra, exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena (ou coima) especialmente atenuada (art. 17.º, do CP e 9.º, do RGCO). Em suma, há três situações em que o erro exclui o dolo: - quando verse sobre elementos de facto ou de direito, de um tipo de crime; - quando respeite aos pressupostos de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa; - ou quando incida sobre a própria proibição legal (desde que o seu conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito, no caso de infracção criminal). Acompanhando, mais uma vez, Figueiredo Dias[12], na conclusão: «o erro excluirá o dolo (a nível do tipo) sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito; diversamente, o erro fundamentará o dolo (da culpa) sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua todavia em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto. Neste último caso o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência-intencional), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger. Por outras palavras: no primeiro caso estamos perante uma deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, revela uma atitude interna de descuido ou de leviandade perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa negligente. Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa dolosa. É esta a concepção básica sobre o dolo do tipo, a consciência do ilícito e a culpa dolosa que está mesmo na base do regime constante dos arts. 16.º e 17.º» do Código Penal. De uma ou de outra forma, aquele conhecimento tem de resultar directa ou indirectamente da matéria de facto provada. Saber se o agente agiu com dolo ou não, apurar da respectiva intenção ou fixar os elementos subjectivos do dolo, são questões que pertencem ao âmbito da matéria de facto[13].» - cfr. Acórdão da Relação do Porto, proferido no Recurso n.º 412/05-4 (Proc. n.º 29/03.7TBETR). Segundo dispõe o art. 127.º, do CPP, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Não se vislumbra que a apreciação da prova, no presente caso, tenha infringido as regras da experiência, pois, nenhum dos factos provados, de per si ou no conjunto da matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo, viola tais regras. A garantia de legalidade da "livre convicção" a que alude aquele normativo processual penal, terá de bastar-se com a necessária explicitação objectiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório em que assentou essa convicção, possibilitando a partir daí o necessário controlo da sua legalidade, como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efectuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meio de prova. Sendo certo que convicção livre não é, nem pode equivaler, a livre arbítrio na formação dessa convicção, antes terá de ser o reflexo de uma apreciação objectiva das provas produzidas, permitindo um controle por parte dos interessados e do tribunal de recurso, é manifesto que o presente caso não revela qualquer arbítrio ou discricionariedade na análise da prova, tendo sido respeitados os princípios atinentes. Por outro lado, não pode ser escamoteado o facto de estarmos a discutir um elemento que respeita à esfera psíquica da arguida - o conhecimento que esta tem de determinada situação ou proibição -, sendo praticamente impossível a sua demonstração por prova directa e imediata, salvo se a própria confessar tal conhecimento. Na falta desta confissão, a respectiva prova terá de resultar, necessariamente, dos demais factos provados, em conjugação com o demais circunstancialismo que os rodeia, assumindo relevância particular a ausência de razões sérias para supor que a arguida, no descrito circunstancialismo, provavelmente não teria condições para conhecer a proibição. O tribunal fundamentou a respectiva convicção, no que respeita ao convencimento de que a arguida destes autos sabia que era proibida a sua conduta, nos seguintes termos: «Quanto ao elemento subjectivo, no que concerne à intenção com que a arguida actuou, "dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência" [cf. Ac. da Relação do Porto de 23.02.1983, BMJ, n.° 324, pág. 620]. No que respeita aos factos atinentes ao elemento subjectivo, os mesmos resultam, deste modo, apurados como decorrência da conduta objectiva da arguida Maria. Da ponderação de toda a prova descrita, conjugada com as regras de experiência e de lógica, atendendo às circunstâncias em que os factos foram praticados e ao modo de actuação, resulta evidente o conhecimento pela arguida, do aproveitamento da relação de confiança estabelecida com o padre SG, bem como da apropriação ilegítima das quantias monetárias supra referidas, e a vontade em agir dessa forma.» A recorrente não adianta qualquer argumento ou prova que refute tal argumentação ou da qual se possa inferir o seu desconhecimento de que os factos praticados são criminalmente puníveis. Por outro lado, perante a aludida fundamentação e baseados nas regras da experiência comum, não vislumbramos qualquer ofensa ao princípio da livre apreciação da prova, não se detectando qualquer arbítrio ou falta de objectividade na análise da prova produzida, não havendo razões para censurar, nesta parte, a decisão de facto. Inexistindo outras questões a decidir, improcede o recurso da arguida. ***c) DECISÃO: Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o presente recurso da arguida Maria, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Notifique. Lisboa,     /        / (Elaborado em computador e revisto pelo relator) _______________________________________________________________________________[1] In “Registo da Prova…”, pág. 809; no mesmo sentido, Cunha Rodrigues, Lugares do Direito, Coimbra, 1999, pag. 498; ou ainda o Ac. do STJ de 20/02/2003, Proc. 240/03-5, in “Boletim de Sumários dos Acórdãos do STJ”. [2]  G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, pag. 817. [3]   Figueiredo Dias, in  “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, pág. 231. [4]  Simas Santos e Leal Henriques in “C.P. Anotado” , I volume, 1997, pg. 180 e 181 e Prof. Eduardo Correia in “Direito Criminal”,  Volume I, 1963, pg.s 367 a 386. [5] Figueiredo Dias, in  “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, pág. 349. [6]  Idem, pág. 334. [7]  Obra citada, pág. 335. [8]  Fig. Dias, “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal”, § 22, I, 2 e 5. [9]  Idem, § 20. [10]   Figueiredo Dias, in  “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, pág. 348. [11]  Idem, “O Direito Penal…”, pág. 488. [12]   “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, pág. 503/504; F. Dias, “O Problema…”, §§ 14 e 15. [13]     Ac. do STJ de 21/4/94, Proc. 4631-3.ª Secção; Ac. do STJ de 6/11/96, Proc. 724/96; Ac. do STJ de 15/01/98, Proc. 457/97; Ac. do STJ de 7/10/98, CJ, Acórdãos do Supremo, tomo 3/98, pág. 183; Simas Santos e Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, 2.ª edição, pág. 434.