Fernanda R. intentou uma ação judicial contra P., S.A. e S., S.A., solicitando uma indemnização de 10.000€ pelos danos causados ao consumir um pão contaminado com um dente humano. Alegou que o incidente levou à fratura da sua prótese dentária, resultando em despesas médicas de 5.000€, bem como dores físicas, repulsa e angústia. As rés refutaram a responsabilidade, destacando o controlo rigoroso na produção do pão. O tribunal de primeira instância apenas reconheceu parcialmente a responsabilidade da P., S.A., fixando uma indemnização de 7.000€ pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, determinando ainda o pagamento de juros moratórios. Após o falecimento de Fernanda R., a ação foi prosseguida pelos seus herdeiros. P., S.A. recorreu, contestando a decisão e alegando ausência de provas consistentes sobre a desconformidade do produto e a causalidade dos danos. No recurso, foi decidido manter a decisão anterior, reconhecendo que a presença do dente no pão caracteriza a desconformidade do produto com a sua natureza e finalidade. Ressalva-se que a empresa não conseguiu refutar suficientemente essa desconformidade, mantendo-se assim a obrigação de indemnizar os danos comprovados.
Em 2/8/2016, Fernanda R. estava a consumir um pão adquirido anteriormente num estabelecimento da P., S.A. quando trincou um objeto duro, que verificou ser um dente humano. Este incidente levou à fratura da prótese dentária de Fernanda R., obrigando-a a substituí-la, causando-lhe dores, desconforto na mastigação, e repulsa. Posteriormente, apresentou uma reclamação à empresa, que não reconheceu responsabilidade no ocorrido.
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados: Fernanda R. intentou acção declarativa com forma de processo comum contra P., S.A. (1ª R.) e S., S.A. (2ª R.), pedindo a condenação das RR. no pagamento da quantia de € 10.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento. Alega para tanto e em síntese que: · Em 2/8/2016, quando consumia um pão que havia adquirido num estabelecimento comercial da 1ª R., trincou um objecto duro e não compatível com a natureza daquele produto, que verificou tratar-se de um dente humano que se encontrava dentro do referido pão; · Em consequência desse acto a A. fracturou a sua prótese dentária, que teve de substituir, no que despendeu € 5.000,00; · Ainda em consequência desse acto a A. sentiu dores e dificuldades na mastigação, tendo de tomar medicação, para além de ter sentido repulsa e horror, tristeza e angústia; · A 1ª R. havia transferido a sua responsabilidade civil por danos emergentes da sua actividade comercial para a 2ª R., tendo ambas declinado qualquer responsabilidade na reparação dos danos sofridos pela A. As RR. apresentaram contestações separadamente, sendo invocada a excepção dilatória da ilegitimidade passiva da 2ª R., por ter o seu objecto social circunscrito à mediação de seguros, sendo indicada a F., S.A. como a seguradora para a qual a 1ª R. tinha transferido a sua responsabilidade civil por danos emergentes da sua actividade comercial, à data do evento, tendo sido requerida a sua intervenção principal (e a sua intervenção acessória, subsidiariamente), e mais sendo impugnada a factualidade alegada pela A., tendo a 1ª R. alegado que a forma como ocorre e é auditado o seu processo de produção do pão invocado pela A. torna insusceptível de ter ocorrido a introdução, ainda que acidental, de qualquer dente humano. Concluíram assim pela procedência da excepção dilatória da ilegitimidade da 2ª R. e pela improcedência da acção, com a absolvição da 1ª R. do pedido. Foi indeferida a requerida intervenção principal provocada de F., S.A., sendo deferida a intervenção acessória da mesma, na qualidade de assistente da 1ª R. Citada, veio a interveniente acessória apresentar contestação, confirmando a existência do contrato de seguro, mas alegando a existência de franquia contratada com a 1ª R., mais impugnando o alegado pela A. quanto aos danos na prótese dentária, e concluindo pela improcedência da acção. Foi proferido despacho que declarou parcialmente não escrita a contestação apresentada pela interveniente acessória, “na parte em que esta alega matéria de excepção e em que impugna factos que não foram impugnados pela 1.ª ré, bem como em tudo o que esteja em contradição com a posição assumida pela 1.ª ré”. Foi fixado o valor da causa e proferido despacho saneador, neste se julgando parcialmente improcedente a acção quanto ao pedido formulado contra a 2ª R., que foi absolvida do pedido. Mais foi dispensada a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova. Face à comprovação do óbito da A., foram habilitados Armando R., Joana M. e Ricardo M. para prosseguir na acção como AA. Após realização da audiência final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência: a) condeno a 1.ª ré (…) no pagamento aos habilitados (…) da quantia total de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos patrimoniais, à qual acrescem juros de mora, à taxa legal de 4 %, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento; b) condeno a 1.ª ré (…) no pagamento aos habilitados (…) da quantia total de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora, à taxa legal de 4 %, desde a data da respectiva fixação (presente decisão) e até efectivo e integral pagamento, nos termos dos artigos 483.º, 496.º, ambos do Código Civil e acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2002, de 2002-06-27. c) Absolvo a 1.ª ré (…) do demais peticionado. Condeno os habilitados (…) e 1.ª ré (…) no pagamento das custas processuais, na proporção de, respectivamente, 20% e 80%, estando a taxa de justiça fixa em 3 UC, nos termos conjugados dos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, 6.º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais e tabela I-A anexa ao mesmo diploma. * Consigno, ao abrigo do disposto no artigo 332.º do Código de Processo Civil, que a presente decisão constitui caso julgado em relação à assistente F., S.A., que é obrigada a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a mesma tenha estabelecido, excepto: a) se alegar e provar, na causa posterior, que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegações ou meios de prova que poderiam influir na decisão final; b) se mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova susceptíveis de influir na decisão final e que o assistido não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave”. A 1ª R. A. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem: 1. O presente recurso é interposto da sentença de fls. (…), que condenou a Recorrente como civilmente responsável perante a Autora; 2. Na fundamentação invocada na sentença, o Tribunal a quo, por um lado, utiliza fundamentos que estão em oposição com a decisão, e por outro, não se pronuncia sobre questões que deveria ter apreciado. 3. O Tribunal a quo dá como provados os factos E), F), H) e O), considerando que o dente objecto dos presentes autos estaria no interior do pão adquirido à Recorrente, sem que o fundamentasse, como, de resto, se impõe. 4. Por outro lado, considerou também como provado os factos de AA) a KK). Não compreende a Recorrente como é que o Tribunal a quo dá como provado que o dente se encontrava no interior do pão, e em simultâneo os pontos de AA) a KK) que se traduzem nas diligências que a Recorrente efectuou de modo a averiguar que o produto estava efectivamente conforme. 5. Os factos provados de AA) a KK) estão em oposição com a decisão, na medida em que se permite retirar dos mesmos que a Recorrente tudo fez para apurar a existência ou não de desconformidade, desde o momento zero do produto, que começa no fornecedor, à produção do pão em loja, até à respectiva venda, não tendo sido detectada qualquer falha ou suspeita que permitisse confirmar a versão aludida pela Autora. 6. Não se compreende como o Tribunal a quo dá como não provado, que: “2) Por outro lado, no momento em que a autora apresentou a reclamação, a funcionária da 1.ª ré averiguou o estado do pão, o qual se encontrava mole e em condições conformes. 3) Por sua vez, a 2.ª ré deu início ao processo de averiguação da responsabilidade, tendo, inclusive, solicitado um relatório de peritagem a uma entidade independente, e concluiu pela inexistência de responsabilidade da ora 1.ª ré o que, oportunamente, transmitiu à autora”. 7. Não se compreende como é que o Tribunal a quo ignora, sem qualquer justificação, o que se impunha, a prova produzida, e, em particular, o depoimento claro e isento prestado pela testemunha Sandra F., que referiu expressamente que recebeu a fatia de pão, tendo verificado que a mesma se encontrava mole e conforme, bem como que viu o dente, que inclusivamente guardou. 8. Também não se percebe como é que consta dos factos não provados, quando, se visualizarmos a carta de declinação de responsabilidade enviada pela S., a qual foi junta aos autos pela Autora menciona que “após análise dos elementos que constituem o processo de gestão de reclamação em assunto, bem como das demais diligências efectuadas entre elas o relatório de peritagem efectuado por uma empresa independente Viapre, foi observado que não assiste responsabilidade do nosso cliente quanto ao dano reclamado. Assim cumpre transmitir que o processo será encerrado sem lugar ao ressarcimento das verbas reclamadas”. 9. A testemunha Sandra F. transmitiu ao Tribunal a quo que observou a boca de todos os colaboradores da secção da padaria, que são os únicos que frequentam a referida secção, e não apenas daqueles que naquele momento estavam ao serviço, omissão que é desconsiderado ao longo de toda a sentença. 10. Por conseguinte, e das omissões que supra se enunciaram, e que se mostram decisivas para a decisão, dos factos sobre os quais o Tribunal a quo se deveria ter pronunciado e não fez, e, ainda, da manifesta contradição que incorre a decisão, resulta claro e inequívoco que a sentença de que ora se recorre é nula nos termos do art.º 615, n.º 1 alíneas c) e d), nulidade que expressamente se invoca. Caso assim não se entenda, 11. O Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos: “E) Todavia, aquando do acto de consumir o pão e ao introduzir um bocado do mesmo na boca sentiu os dentes estalarem ao trincar um objecto duro, não compatível com a natureza do produto. H) Contudo, e após verificar cuidadosamente o objecto que retirou da sua boca, verificou que não se tratava de nenhum dente seu, natural ou implantado, tendo, pois, de imediato concluído que o objecto em causa se encontrava dentro do pão que adquirira. (…) O) A autora, no acto de consumo do pão em causa sentiu claramente os dentes a estalar, seguindo-se uma dor aguda e persistente que, inclusive a obrigou a tomar medicação para amenizar o seu sofrimento”. 12. Não compreende a Recorrente como é que o Tribunal a quo concluiu no sentido de se ter provado que o dente estava efectivamente no interior do pão adquirido à Recorrente, quando, simultaneamente, também dá como provados os factos AA) a KK). 13. Na motivação apresentada, o Tribunal a quo refere que: “ao auditar a padaria, não encontrou falha nos processos. Também declarou ter pedido auditoria ao fornecedor (fabricante do mix que serve de base ao pão produzido na padaria), o qual transmitiu que nenhuma falha tinha detectado. (…) Assim, com detalhe descreveu o processo de fabrico diário do pão nas instalações de padaria da 1.ª ré, dos ingredientes à maquinaria, passando pelos passos e, claro, pela intervenção dos colaboradores. Mais se referiu à constante formação dos colaboradores e ao seguimento de boas práticas. Especificou que o pão praticamente não sai das mãos dos colaboradores no acto de amassar, tender e moldar, sendo que o trabalho é feito por cerca de 3/4 trabalhadores e a massa vista numa mesa. (…) Susana R., engenheira alimentar da (…). Outrossim demonstrando conhecimento funcional, descreveu minuciosamente o processo de fabrico do produto seco – mix – nas suas instalações. Concretamente mencionou que o processo é vertical, tendo apenas intervenção humana na introdução das farinhas numa abertura lateral da tremonha, e que nele existem vários pontos de controlo consistentes em malhas de 2 mm, peneiros e detectores de metais. Acresce que os colaboradores estão proibidos de comer nas ditas instalações, acrescentou. No que aos autos alude, disse ter contactado com os colaboradores que negaram a presença do dente” (…). 14. Resulta, do exposto, que a Recorrente procurou demonstrar a este Tribunal que tudo fez, averiguando de todas as formas possíveis, em conformidade com aquela que é a sua política, para apurar se a versão apresentada pela Autora, que causou muita surpresa à Recorrente, seria susceptível de ter ocorrido nas suas instalações. 15. Numa tentativa de tornar a sua versão menos inverosímil, o marido da Autora procura afastar que se tratasse de uma fatia de pão, mas de uma “carcaça” forrada com côdea que tornasse difícil a visualização de um dente. No entanto, foi transmitido pela testemunha Sandra F. que se tratava de pão fatiado. 16. Se observamos o título da carta que a P. envia para a Autora, datada de 30 de Agosto de 2016, e que foi junta aos autos pela Autora (e reproduzida pela Recorrente) com “Assunto: Esclarecimento sobre Pão 8 Cereais 400g adquirido na loja de Linda-a-Velha” confirmamos o tipo de pão em causa. 17. Foi também referido pelas testemunhas da Recorrente que nunca antes receberam uma reclamação nestes termos, pelo que, estamos a falar de um episódio pouco comum de ter sucedido, como se compreende. 18. Assim, pelos motivos acima explanados, outra conclusão senão dar os factos E), H) e O) como não provados não pode ser alcançada pelo douto Tribunal a quo. 19. Deve passar a constar dos factos dados como provados que: - Foram verificados os dentes de todos os colaboradores da secção da padaria, não tendo sido identificada a falta a nenhum. 20. Conforme supra se referiu, a testemunha Sandra F. transmitiu a este Tribunal que observou a boca de todos os colaboradores da secção da padaria, que são os únicos que entram na referida secção, e não apenas que “asseverou ter perguntado a toda a equipa da padaria se alguém teria perdido um dente, sendo a resposta não”, conforme consta da motivação. 21. Por outro lado, resultou do depoimento da Joana F. que esta, quando se deslocou à loja na sequência da reclamação objecto dos presentes autos, verificou a boca dos colaboradores, esta sim, daqueles que se encontravam ao serviço naquele dia. Pelo que, temos aqui, pelo menos para os que estavam naquela data ao serviço, uma dupla verificação, que deverá ser considerada. 22. Deveria o Tribunal a quo ter dado os seguintes factos como provados: - Por outro lado, no momento em que a autora apresentou a reclamação, a funcionária da 1.ª ré averiguou o estado do pão, o qual se encontrava mole e em condições conformes; - Por sua vez, a 2.ª ré deu início ao processo de averiguação da responsabilidade, tendo, inclusive, solicitado um relatório de peritagem a uma entidade independente, e concluiu pela inexistência de responsabilidade da ora 1.ª ré o que, oportunamente, transmitiu à autora. 23. Quanto ao primeiro ponto, a testemunha Sandra F., referiu expressamente que recebeu a fatia de pão se encontrava mole e conforme, bem como o dente, que inclusivamente guardou para ser recolhido pela equipa do Controlo de Qualidade, não se compreendendo como é que o Tribunal a quo simplesmente ignora essa parte do seu depoimento, nem sequer explicando o porquê de não o ter considerado. 24. Relativamente ao segundo ponto, se visualizamos a carta de declinação de responsabilidade enviada pela S. (correctora), a qual foi junta aos autos pela Autora (e a Recorrente reproduziu), refere que “após análise dos elementos que constituem o processo de gestão de reclamação em assunto, bem como das demais diligências efectuadas entre elas o relatório de peritagem efectuado por uma empresa independente Viapre, foi observado que não assiste responsabilidade do nosso cliente quanto ao dano reclamado. Assim cumpre transmitir que o processo será encerrado sem lugar ao ressarcimento das verbas reclamadas”. Com efeito, tal deveria constar dos factos dados como provados. 25. Crê-se pelo exposto que a sentença enferma de erros graves relativamente à matéria de facto, que devem ser revogados e substituídos em conformidade com o supra exposto. 26. Quanto à matéria de direito, o Tribunal a quo concluiu que “(…) temos por assente que a autora adquiriu um pão num estabelecimento comercial da 1.ª ré e, ao comê‑lo, trincou um dente que estava no seu interior. Concludentemente, fracturou a sua prótese dentária e sentiu dor e dificuldade na mastigação. (…) Destas matizes se extrai que a 1.ª ré pôs em circulação um produto desconforme ao à sua natureza e ao fim a que se destina. E que a autora veio a consumir. Nesta provocando danos. Ora, está patente o facto (consumo do pão), a ilicitude (desconformidade do pão), a culpa (existência da desconformidade do pão à data da sua colocação em circulação), os danos (fractura na prótese, sentimentos de dor/desconforto, tristeza, angústia, repulsa) e o nexo de causalidade (os danos elencados resultam da desconformidade do produto). (…) Uma reflexão mais demorada quanto à culpa da 1.ª ré. Como sobredito, tem o produtor responsabilidade objectiva sobre a desconformidade do produto, sobre ele impendendo a presunção de culpa pela mesma. Ao produtor cumpre, pois, ilidir esta presunção, o que não se entende ter logrado in casu a 1.ª ré. Vejamos. No caso, ao produtor apresentam-se duas formas de afastar a sua responsabilidade objectiva, ilidindo a presunção de culpa: ou comprova que o produto não foi colocado em circulação; ou comprova que à data da colocação em circulação, o produto estava conforme” (sublinhado nosso). 27. A Recorrente não concorda com o Tribunal a quo, na medida em que entende que tudo fez para demonstrar que o produto foi posto em circulação conforme. No entanto, e ao que parece, pela fundamentação do Tribunal a quo, essa seria sempre e necessariamente uma prova impossível. 28. O Tribunal a quo continua a respectiva fundamentação no seguinte sentido: “É certo que, por definição, a 1.ª ré leva a cabo uma série de procedimentos de higiene, segurança e formação, incluindo auditorias internas e externas. O mesmo se diga quanto aos seus fornecedores. Tudo tendente à conformidade dos produtos quando na mão dos consumidores. Tal ficou assente. E no que tange o caso vertente, ficou assente que a 1.ª ré, perante a comunicação do sucedido por parte da autora, encetou uma série de diligências a fim de perceber a origem do dente no pão. Auditou a padaria do estabelecimento comercial em questão, seja o material, seja o processo, sejam os colaboradores. O mesmo solicitou ao seu fornecedor. Nada detectou a 1.ª ré no nos ditos padaria, processo de produção e colaboradores. E nada detectou o seu fornecedor. A análise (visual e manual) do dente e do pedaço de pão em que se inseria por engenheira alimentar da 1.ª ré que, não foi conclusiva relativamente à origem da desconformidade. Ora, não concluiu a 1.ª ré que a desconformidade não existia à data da colocação em circulação do produto. Na verdade, do que fica assente ressalta o intento e esforço da 1.ª ré no sentido de reduzir a probabilidade de existência de desconformidade nos seus produtos. Porém, tal não implica necessariamente que no caso particular tal não tenha sucedido, como a própria não consegue concluir” (sublinhado e negrito nosso). 29. E continuou a motivação no seguinte sentido: “Em todo o caso se questiona: o que poderiam ter detectado as auditorias e acções de fiscalização no caso concreto? Um dente, segundo o normal acontecer, dificilmente deixa rasto num processo de fabrico, na maquinaria e afins. No que toca aos colaboradores, a acção de perguntar pela falta de dentes ou observar as suas bocas não se afasta inexoravelmente daqui a origem. Aliás, nem todos os colaboradores estariam na padaria no dia da auditoria. Por outro lado, não fica assente qualquer acção - seja da autora, seja de terceiro - interposta no tempo entre a colocação do produto em circulação e o acto de consumo por parte da autora que pudesse afastar a culpa da 1.ª ré por dela – da dita acção - advir a desconformidade. O consabido concurso do “lesado”, aqui consumidor ou de terceiro. (…) A 1.ª ré não consegue ilidir a presunção segundo a qual, independentemente de culpa, colocou no mercado um produto defeituoso que causou danos, por um lado. A 1.ª ré não consegue ilidir a presunção, segundo a qual o cumprimento defeituoso da obrigação equivalente a falta de cumprimento não procede de culpa sua.” (negrito e sublinhado nosso). 30. Andou mal o Tribunal a quo ao concluir no sentido supra. As auditorias e as acções de fiscalização são os procedimentos que a Recorrente tem instituídos, precisamente para apurar se é possível concluir no sentido das reclamações que são apresentadas pelos clientes, e se houve ou não alguma falha que permita o relatado de ter ocorrido. E se não fossem esses procedimentos, que no caso objecto dos presentes autos foram explicados, reitera-se, como é que se poderia averiguar se as versões apresentadas pelos clientes/consumidores são susceptíveis de terem ocorrido? 31. De um ponto de vista normativo, no que respeita à relação contratual estabelecida entre as partes, dispõe o art.º 874.º do Código Civil que a compra e venda é um contrato típico e nominado, pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço. Decorre da celebração do contrato de compra e venda a obrigação geral, para as partes, do seu cumprimento pontual (art.ºs 406.º e 762.º do Código Civil) e as obrigações específicas de entrega da coisa, no estado em que se encontrava ao tempo da venda, pelo vendedor, e de pagar o respectivo preço, pelo comprador (art.ºs 879.º, alíneas b) e c), e 882.º, n.º 1, do Código Civil). 32. A venda de coisas defeituosas encontra-se regulamentada nos art.ºs 913.º e seguintes do Código Civil. Preceitua o art.º 913.º do Código Civil que “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente ([relativo ao regime da venda de bens onerados, cujo regime se encontra previsto nos arts.º 905.º e seguintes do Código Civil), em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”, sendo que “quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”. 33. Resulta, como se vê, para o vendedor, a obrigação de conformidade da coisa com o contrato celebrado. 34. O regime de venda de coisas defeituosas encontra, pois, a sua finalidade última no restabelecimento do equilíbrio que deve existir entre as prestações das partes que celebram um contrato de compra e venda, e do qual emergem direitos e obrigações para ambas as partes, tendo em conta a relação sinalagmática adjacente. 35. Efectivamente, estando em causa uma relação entre um consumidor e um profissional, aplicar-se-á o regime especial de protecção do consumidor, restando para o Código Civil os casos que se encontram excluídos do âmbito de protecção do consumidor: os contratos celebrados entre dois particulares, os contratos celebrados entre dois profissionais, e os contratos celebrados entre um consumidor e um profissional em que aquele vende a este um bem, podendo ou não este vender-lhe, simultaneamente, outro bem, neste caso, a chamada “venda de bens de consumo invertida”. 36. Nos termos do Decreto-lei n.º 383/89, de 6 de Novembro, o produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação. 37. De notar que o não cumprimento contratual pode revestir a modalidade de cumprimento defeituoso, ao lado do incumprimento definitivo e do atraso no cumprimento. 38. Nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, ou seja, cabe à Autora alegar e provar o direito de que se arroga ser titular. Por seu turno, nos termos do n.º 2 do referido preceito legal, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita, ou seja, caberá à Recorrente. 39. Ora, no presente caso, e tendo em conta o já referido quanto ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, cabe ao consumidor o ónus de alegar e provar a existência da desconformidade e que ele já existia no momento da entrega da coisa. Porém, estabelece o n.º 2 do art.º 2.º daquele Decreto-Lei a presunção de que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos factos elencados nas alíneas a) a d). 40. Dispõe o art.º 350.º do Código Civil que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, podendo ser ilidida mediante prova em contrário. Tais presunções legais são importantes elementos que facilitam a prova ao consumidor. Porém, embora delas disponha, não fica o consumidor desonerado, sem mais, de provar a existência da ausência de qualidade do bem, sendo que as presunções legais apenas operam quando se provem os factos base que lhes estejam adjacentes. 41. Quer isto dizer que, para que o consumidor beneficie da presunção de desconformidade, tem de alegar e provar factos da vida real dos quais se possa razoavelmente concluir a falta de qualidade e desempenho normal que é de esperar, atendendo à natureza do bem (cfr., no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.03.2014, no proc. n.º 783/11.2TBMGR.C1.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt). 42. Sendo certo que a desconformidade do bem, uma vez verificada, faz presumir que ela já existia à data da entrega do bem ao comprador/consumidor, no caso presente apenas se provou que a autora fracturou a prótese, não tendo ficado demonstrado que provinha do dente que constava no interior do pão. 43. Isto porque, atendendo à natureza do bem em causa – um produto alimentar – a existência de um dente no seu interior, pelas regras da experiência comum (atendíveis no âmbito do funcionamento das presunções), não é suficiente para que se conclua pela presunção de que um facto é ilícito e culposo sem mais, uma vez que se trata de um objecto não fisicamente integrado no produto, o que suscita, naturalmente, sérias dúvidas quanto à relação de indissociabilidade entre o dente e o produto em si mesmo. 44. De facto, pelas regras da experiência comum (atendíveis no âmbito do funcionamento das presunções), teria de ser necessariamente detectável quando lhe é barrada manteiga no pão ou no momento da trinca e/ou da mastigação. 45. Não se provando essa falta de qualidade e desempenho, não pode o consumidor beneficiar da presunção de desconformidade do bem, pois que não logrou provar os factos base (factos da vida real conhecidos) para deles retirar a ilação permitida pela lei (a falta de conformidade) – não funcionando a presunção, não recaía sobre a Recorrente o ónus de a ilidir, demonstrando o contrário da ilação a que tenderia a presunção. 46. Uma vez que não funcionaram as ditas presunções legais, cumpria à Autora, então, a efectiva prova de que o dente já se encontrava no pão aquando da compra do mesmo e entrega desta à Autora, só assim se fazendo a prova da desconformidade do bem destinado ao seu consumo, o que não aconteceu. 47. Assim, não provando a Autora que o dente já se encontrava dentro do pão aquando da sua compra (art.º 342.º do Código Civil), ou seja, não demonstrando a desconformidade do bem, não se pode assacar qualquer responsabilidade à Recorrente, inexistindo, nessa medida, qualquer obrigação de indemnizar a Autora (artsº. 12.º da Lei de Defesa do Consumidor e 798.º do Código Civil). 48. Não se aplicam, pelos motivos acima referidos, o art.º 798.º, nem tampouco a presunção referida no art.º 799.º do Código Civil, conforme consta da sentença. 49. Pelo que, deve a decisão proferida ser substituída por outra que conclua que a Autora não conseguiu demonstrar que o pão tinha um dente no seu interior, o que, naturalmente, determina a improcedência da presente acção. 50. Salvo melhor opinião, o valor de 2.000€ fixado a título de danos não patrimoniais afigura-se desajustado, por excessivo, atendendo aos critérios da maioria da jurisprudência para casos análogos, aos quais se deverá sempre atender em cumprimento do art.º 8º, n.º 3 do Código Civil, bem como em obediência ao princípio constitucional da igualdade, de modo que a fixação de indemnizações desta natureza não seja arbitrária, pautando-se antes pelo critério da equidade que garanta igual tratamento a vítimas e familiares de eventos danosos similares. 51. O Tribunal a quo dá como provado que “W) Também da situação descrita resulta que a autora não só sofreu dores aquando do consumo do produto adquirido à 1.ª ré, como teve posteriormente dificuldades e desconforto na mastigação de outros produtos, atenta a sensibilidade da sua dentição após o ocorrido. X) Tendo inclusive a necessidade de alterar os seus hábitos alimentares, porquanto o consumo de alguns produtos com consistência mais sólida lhe provocavam dores e dificuldades na mastigação. Y) Acrescem a estes factores que a autora é uma pessoa com alguns problemas graves de saúde, nomeadamente ao nível cardio-vascular e de diabetes, tendo-a deixado triste, angustiada e abatida, ao constatar que, nem ao nível desta cirurgia as coisas lhe corriam bem. Z) No momento em que a autora consumiu o produto adquirido à 1.ª ré e se apercebeu do objecto que tinha na boca, um natural sentimento de repulsa e nojo, que lhe causou vómitos.” 52. Para indemnização deste tipo de danos há que atender ao que preceituam os arts.º 494.º (no qual se estabelece a regra que, em caso de mera culpa, a indemnização até poderá ser inferior ao dano efectivo) e 496.º do Código Civil. E, nos termos desta última disposição legal, merecem ser indemnizados os danos não patrimoniais graves devendo a indemnização ser fixada equitativamente. 53. No entendimento da Recorrente, os danos sofridos pela Autora não merecem ser indemnizados à luz da danos não patrimoniais, o que, caso assim não se entendesse, o montante arbitrado deveria ser, em muito, inferior. 54. Como ensina o Prof. Antunes Varela, in ‘Das Obrigações em Geral’, a gravidade do dano deve medir-se em termos de um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos. Portanto, haverá que atender aos factos, que relevam para a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais, numa perspectiva objectiva, que o mesmo é dizer, de acordo com a realidade geral. Mas a indemnização deve ser fixada, reforça-se, equitativamente – o que significa que não pode ser fixada arbitrariamente, segundo um qualquer critério, que nem sequer se encontra fundamentado. 55. Tendo presente que a indemnização por danos não patrimoniais não pode constituir fonte de enriquecimento, e atendendo às indemnizações fixadas para casos semelhantes e à actual conjuntura económica, entende a Recorrente que a indemnização justa e adequada, no caso concreto, não poderá estar nem perto do montante de € 2.000,00 (nem sequer à luz dos factos “generosamente” dados como provados pelo Tribunal a quo). 56. A fundamentação jurídica que o Tribunal a quo dá para justificar a atribuição daquele valor, no sentido de “(…) que a autora sentiu dor e dificuldade /desconforto na mastigação. Além de a princípio, repulsa e horror, após, tristeza e angústia. (…) A dor associada à dificuldade na mastigação e, em última instância, alteração transitória da dieta alimentar não se trata de um transtorno ordinário. (…) A repulsa e o horror em face da factualidade apreciada merecem igualmente a tutela do direito, na óptica de um homem médio. (…) E a tristeza e angústia à luz do quadro clínico da autora são de acolher nesta indemnização. Com efeito, a debilidade de saúde da autora aliada ao acontecimento sub judice é de molde a levar, segundo critérios de experiência comum e normalidade das coisas, a tal tipo de sentimento”, não colhe perante o que alegadamente sucedeu. 57. A Autora fracturou uma prótese dentária temporária, não partiu um dente próprio, e em consequência teve de colocar um dente postiço completamente diferente do que tinha, nem tampouco ficou a padecer de qualquer dano futuro. 58. Entende a Recorrente que ainda que a Autora tivesse sentido tristeza e angústia, tais sentimentos, à luz da experiência comum, não são merecedores da tutela do Direito, e como tal, não devem ser indemnizáveis. 59. O douto despacho proferido em 24.09.2018 indeferiu a intervenção principal provocada da seguradora, F., S.A., requerida pela Recorrente na sua Contestação, admitindo a sua intervenção apenas na qualidade de assistente. 60. Nos termos do supra citado despacho, a Meritíssima Juíza decidiu o seguinte: “(…)Assim, a F., SA, apenas terá legitimidade para intervir como parte principal nesta acção se for sujeito da relação material controvertida, nos termos em que a mesma é configurada pela autora na sua petição inicial. Ora, compulsado o teor da petição inicial, não se vislumbra qualquer situação de litisconsórcio voluntário ou necessário entre a ora ré e a F., S.A.. Na verdade, de acordo com os factos alegados pela autora na sua petição, os únicos sujeitos passivos da relação material controvertida são a 1ª ré, requerente do presente incidente, e a 2ª ré “S., S.A”, para a qual, segundo a autora, a 1ª Ré transferiu a sua responsabilidade civil no que concerne aos danos causados a terceiros emergentes da sua actividade comercial, por via da existência de um contrato de seguro. (…) Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, decido: a) Indeferir a requerida intervenção principal provocada de F., S.A.; b) Deferir a intervenção acessória provocada de F., S.A., para intervir na causa como assistente da 1ª ré;”. 61. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, entende a Recorrente que o douto Tribunal a quo não tem qualquer razão em decidir nos termos em que o fez, conforme procurará demonstrar. 62. Na sua Contestação, a Recorrente requereu, a título primário, a intervenção principal provocada da seguradora, por força da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil no qual se prevê uma franquia no montante de 5.000€ (cinco mil euros) a pagar pelo segurado, suportando a seguradora o remanescente do montante a indemnizar, juntando aos autos o documento que comprova a existência do seguro. 63. Nos casos de intervenção principal provocada, o chamado deverá ter um interesse paralelo ao da parte a que se irá associar, e a situação dos autos é caracterizada por ser a Recorrente a requerer a intervenção de uma entidade terceira – a seguradora - para quem facultativamente transferiu a responsabilidade civil emergente de incidentes ocorridos imputáveis à Recorrente. 64. Com efeito, tendo a segurada-lesante celebrado um contrato no qual a seguradora se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário até determinada quantia, o cumprimento das obrigações daquele, a prestação a exigir pelo beneficiário é só uma, podendo a mesma ser exigida, por força do contrato, tanto ao segurado como à seguradora, pelo que o terceiro lesado sempre teria possibilidade de demandar a alegada lesante e a seguradora, em litisconsórcio voluntário (art.º 32.º do CPC). 65. Ora, do incontestável litisconsórcio voluntário emerge o direito da R. segurada fazer intervir a título principal a sua seguradora, como sua associada, mediante o incidente de intervenção principal provocada, nos termos dos art.ºs 311.º e seguintes do CPC. 66. A natureza da relação emergente do contrato de seguro e a estreita conexão existente entre as duas relações é suficientemente justificativa da interpretação supra referida, sobretudo porque o legislador, quando regulou o regime do contrato de seguro previu a possibilidade do lesado demandar directamente a seguradora para quem a título facultativo foi transferida a responsabilidade (cf. art.º 140.º do Decreto-Lei n.º 72/2008). 67. Parafraseando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-11-2012, processo n.º 3868/11.1TBGDM-A.P1,“(…) A intervenção principal provocada abrange todos os casos em que a obrigação comporte pluralidade de devedores ou quando existam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, sob condição de o réu ter algum interesse atendível em os chamar a intervir na causa, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub-rogação que lhe assista. (…) Neste sentido consta do acórdão da Relação de Guimarães de 06.01.2011, proferido no processo n.º 5907/09.7TBBRG-A-G1, no sítio do ITIJ: ‘Porém, atenta a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (art. 444º, do Código Civil), a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário (…).’ Mais acrescenta ‘que, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do art.º 497.º, do Código Civil, pelo que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro. Na verdade, pelo contrato de seguro apenas se transferiu o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento (cfr. Ac. STA de 01.02.2000, Acórdãos Doutrinais, 466º-1231).’ (…) Em resumo e conclusão: O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro (…)” – disponível em www.dgsi.pt. 68. Entende a Recorrente que ao ter transferido a sua responsabilidade civil para a seguradora, outra não poderá ser a decisão que não a revogação do despacho ora recorrido, substituindo-o por outro que defira o chamamento da seguradora F. na qualidade de interveniente principal. 69. Seria absurdo ter de lançar mão de uma acção de regresso para ser ressarcida de eventuais montantes que, na sequência de um sinistro excedessem a franquia. 70. Crê-se por todo o exposto que a sentença enferma de erros muito graves relativamente à matéria de facto e de Direito, que devem ser revogados e substituídos em conformidade com o supra exposto. Não foi apresentada alegação de resposta pelos AA. *** Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com: i) A admissão da intervenção principal provocada da seguradora F., S.A.; ii) A nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão e por omissão de pronúncia; iii) A alteração da matéria de facto; iv) A caracterização da desconformidade do bem produzido e vendido pela 1ª R. e consequente afirmação da responsabilidade desta na reparação dos danos causados; v) A indemnização por danos não patrimoniais. *** Todavia, e no que respeita à questão identificada em i) (tal como se mostra delimitada pelas conclusões 59. a 69. da alegação da 1ª R.), está em causa a impugnação do despacho de 24/9/2018, pelo qual o tribunal recorrido decidiu o incidente de intervenção de terceiro suscitado pela 1ª R. na contestação, indeferindo a requerida intervenção principal da seguradora F., S.A. e deferindo a intervenção acessória da mesma seguradora. Dispõe a al. a) do nº 1 do art.º 644º do Código de Processo Civil que cabe recurso de apelação (autónoma) da decisão que ponha termo ao incidente processado autonomamente. Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 776-777), “confrontado com qualquer decisão de 1ª instância relativamente à qual estejam reunidos todos os pressupostos da recorribilidade em função do valor, da sucumbência ou de alguma norma especial, a parte vencida que pretenda impugná-la deverá verificar se a mesma se integra ou não em algum dos preceitos dos nº 1 e 2. Obtendo resposta positiva, a parte tem o ónus de interpor recurso no respectivo prazo, sob pena de se formar caso julgado; já se a resposta for negativa, a impugnação da decisão é diferida para a ocasião em que for interposto recurso de alguma das decisões previstas no nº 1 (…)”. E mais explicam, relativamente ao elenco de decisões susceptíveis de apelação autónoma nos termos do nº 1 do referido art.º 644º, que, no “que concerne aos incidentes, a apelação referida na al. a) apenas abarca os processados autonomamente, isto é, os incidentes que impliquem trâmites específicos que não se confundam com os da acção em que estão integrados (v.g. habilitação, verificação do valor da causa, intervenção de terceiros)”. Ou seja, pretendendo a 1ª R. impugnar a decisão que indeferiu a intervenção principal provocada da seguradora F., S.A., e tratando‑se de decisão relativa a incidente de intervenção de terceiro com regras de tramitação específicas (constantes dos art.º 311º e seguintes do Código de Processo Civil), distintas das regras de tramitação da acção declarativa comum em que se insere, assistia-lhe o ónus de interpor o correspondente recurso de apelação, no prazo a que alude o art.º 638º, nº 1, do Código de Processo Civil. Não o tendo feito, formou-se caso julgado formal sobre a questão conhecida no referido despacho de 24/9/2018, relativa à intervenção principal provocada da seguradora F., S.A., passando o aí decidido, no sentido da inadmissibilidade dessa intervenção principal, a ter força obrigatória dentro do processo, em face do disposto no art.º 620º, nº 1, do Código de Processo Civil. Pelo que desde já se decide que não há que conhecer, em sede do recurso ora interposto, da questão suscitada pela 1ª R. nas conclusões 59. a 69. da sua alegação, sob pena de violação do referido caso julgado formal. Assim, as questões a conhecer em sede do presente recurso cingem-se às que estão identificadas nos pontos ii) a v) acima elencados. *** Na sentença recorrida considerou‑se como provada a seguinte matéria de facto: A) A primitiva A. (Fernanda R.) foi durante anos cliente regular da loja P. da 1ª R. sita na R. (…), em Linda-a-Velha, onde adquiria diversos produtos alimentares e outros, destinados ao seu próprio consumo e do seu agregado familiar. B) Um desses produtos era, especificamente, um pão de mistura de oito cereais e sementes de sésamo, que a primitiva A. comprava frequentemente e que, posteriormente, ou consumia de imediato ou o congelava, para ser consumido à medida das suas necessidades alimentares. C) Em data que, concretamente não sabe precisar, mas que sabe ter sido em finais do mês de Julho, princípios do mês de Agosto, a primitiva A. adquiriu na indicada loja da 1ª R., uma vez mais, o indicado pão de mistura de oito cereais e sementes que congelou inteiro quando chegou a casa. D) Em 2/8/2016 a primitiva A. descongelou o dito pão para ser consumido. E) Todavia, aquando do acto de consumir o pão e ao introduzir um bocado do mesmo na boca sentiu os dentes estalarem ao trincar um objecto duro, não compatível com a natureza do produto. F) De imediato retirou esse objecto da boca e constatou que se tratava de um dente que, segundo o seu aspecto, forma e consistência, se assemelhava a um dente humano. G) Por breves instantes a primitiva A. pensou que tinha perdido um dos seus dentes, até porque tinha efectuado recentemente uma intervenção cirúrgica para implantação de uma prótese dentária. H) Contudo, e após verificar cuidadosamente o objecto que retirou da sua boca, verificou que não se tratava de nenhum dente seu, natural ou implantado, tendo, pois, de imediato, concluído que o objecto em causa se encontrava dentro do pão que adquirira. I) Simultaneamente horrorizada e estupefacta com o sucedido, e após comentar o acontecimento com o seu marido, presente no momento em que o produto foi consumido, e outros familiares, a primitiva A. deslocou-se em 5/8/2016 à loja onde tinha adquirido aquele pão, tendo apresentado uma reclamação, na qual, sucintamente, explicou os factos supra referidos e também entregou o objecto que encontrara dentro daquele produto, uma vez que segundo foi informada pela pessoa que, no atendimento ao público, recepcionou a reclamação, este iria ser enviado para um laboratório para análise. J) Foi também informada no mesmo momento que a sua questão iria ser devidamente acompanhada pelos canais próprios da 1ª R. e que, oportunamente, alguma coisa lhe seria comunicada. K) Em 30/8/2016 a primitiva A. recebeu uma carta da 1ª R., explicando o processo de fabrico e controlo de qualidade do pão de 8 cereais e dando conta de que o Departamento de Controlo de Qualidade da 1ª R. havia encetado várias diligências, concluindo pela impossibilidade de encontrar a origem do objecto. L) Face ao teor da indicada carta a primitiva A. entrou em contacto telefónico com os serviços da 1ª R. para tentar perceber quais os procedimentos seguintes, nomeadamente em matéria de responsabilidade civil. M) Contactos telefónicos esses que foram sendo feitos com alguma regularidade entre a primitiva A. e a 1ª R., até que esta a informou que o assunto estava em análise na sua correctora de seguros, que identificou junto da primitiva A. N) É que, pouco antes da ocorrência dos factos indicados, mais concretamente em 24/5/2016, a primitiva A. tinha sido submetida a uma intervenção cirúrgica para a colocação de uma prótese com onze implantes dentários e um corrector de bola sobre implante, intervenção essa pela qual tinha pago a quantia global de € 4.450,00. O) A primitiva A., no acto de consumo do pão em causa sentiu claramente os dentes a estalar, seguindo-se uma dor aguda e persistente que, inclusive, a obrigou a tomar medicação para amenizar o seu sofrimento. P) Na verdade, nos dias que se foram sucedendo aos factos referidos, a primitiva A. foi sempre sentindo dores na boca e gengivas quando mastigava alimentos sólidos, apercebendo-se que algo não estava bem com os seus dentes. Q) Perante o quadro descrito que não apresentava perspectivas de melhoria, a primitiva A. deslocou-se à clínica onde tinha efectuado a intervenção cirúrgica aos dentes para ser vista pelo seu médico dentista. R) Após essa consulta e diagnóstico à sua dentição e aos dentes implantados, aquele clínico determinou, em 10/12/2016, que a causa dessas dores e dificuldades na mastigação de alimentos se devia a uma fractura na estrutura da prótese implantada na boca da primitiva A. e que tal diagnóstico obrigava a sua substituição por impossibilidade de reparação da anteriormente existente. S) A substituição da dita prótese, por outra idêntica à anteriormente implantada na boca da primitiva A., tinha um custo de € 5.000,00. T) Uma vez que, desde a data da verificação do incidente descrito até à data da consulta atrás descrita, a primitiva A. não mais teve notícias sobre a reclamação apresentada, nem sobre a solução preconizada pelas 1ª e 2ª RR. quanto ao ressarcimento dos danos causados e considerando que as dores que lhe eram causadas pela mastigação de alimentos se mantinham, não teve a primitiva A. outra alternativa senão, a expensas próprias, efectuar nova cirurgia para aplicação de uma prótese nova, cirurgia essa que apenas conseguiu realizar, por falta de disponibilidade financeira, em 9/11/2017, e pela qual pagou o valor de € 5.000,00, integralmente suportados por si. U) Antes desta ultima intervenção cirúrgica e no âmbito de tentar uma resolução consensual do problema que danificou irreversivelmente a sua prótese dentária, tomou a primitiva A. a iniciativa de enviar, em 22/11/2016, à 2ª R. uma carta na qual se vem novamente reportar à situação reclamada, juntando ainda o relatório médico e orçamento atrás, pugnando que esta assumisse a responsabilidade pelo ressarcimento da quantia despendida com a implantação de nova prótese, porquanto o dano verificado na anterior não procedia de culpa ou negligência sua. V) Contudo, a 2ª R., em resposta à indicada carta, em 7/4/2017, veio afirmar que não assistia qualquer responsabilidade do seu cliente, a 1ª R., quanto aos danos sofridos pela primitiva A. e declinou qualquer responsabilidade no que concerne ao seu ressarcimento. W) Também da situação descrita resulta que a primitiva A. não só sofreu dores aquando do consumo do produto adquirido à 1ª R., como teve posteriormente dificuldades e desconforto na mastigação de outros produtos, atenta a sensibilidade da sua dentição após o ocorrido. X) Tendo inclusive a necessidade de alterar os seus hábitos alimentares, porquanto o consumo de alguns produtos com consistência mais sólida lhe provocava dores e dificuldades na mastigação. Y) Acrescem a estes factores que a primitiva A. era uma pessoa com alguns problemas graves de saúde, nomeadamente ao nível cardio-vascular e de diabetes, tendo-a deixado triste, angustiada e abatida, ao constatar que, nem ao nível desta cirurgia as coisas lhe corriam bem. Z) No momento em que a primitiva A. consumiu o produto adquirido à 1ª R. e se apercebeu do objecto que tinha na boca, um natural sentimento de repulsa e nojo, que lhe causou vómitos. AA) A ASAE não detectou desconformidade legal nas acções de fiscalização que, em 22/12/2016, 13/4/2017, 7/3/2018 e 9/4/2018, realizou à 1ª R. BB) O pão objecto de reclamação é produzido, embalado e rotulado diariamente na secção de padaria no interior da loja da 1ª R. CC) A produção é efectuada tendo por base um preparado produzido por um fornecedor externo, que explicou que o produto é passado por vários crivos e ímanes de modo a verificar e eliminar corpos estranhos nas matérias-primas. DD) Nessa medida, foi assegurado pelo fornecedor externo que tal contaminação não seria possível de ocorrer na preparação do referido preparado. EE) O referido fornecedor confirmou, ainda, não ter identificado qualquer falha no mencionado processo de preparação. FF) Os fornecedores externos são auditados, com frequência, por técnicos de Qualidade e Segurança Alimentar da 1ª R., que verificam os procedimentos utilizados e se estão a ser cumpridas as regras de segurança alimentar. GG) O pão é amassado nas mãos dos colaboradores, sob o cumprimento de regras extremamente rigorosas. HH) Sendo certo que todos os colaboradores da secção de padaria têm e tinham à data formação para o efeito. II) Entre várias diligências efectuadas pela 1ª R., uma colaboradora do Departamento de Controlo de Qualidade dirigiu-se à loja para verificar junto de todos os funcionários da secção da padaria, se algum tinha perdido um dente, o que se certificou em sentido negativo. JJ) O estabelecimento comercial da 1ª R. é também auditado por técnicos (internos e externos) periodicamente, os quais verificam se estão a ser cumpridas as boas práticas e as regras de segurança alimentar. KK) Imediatamente após a reclamação em apreço nos presentes autos, a 1ª R. deu indicações aos técnicos para auditarem a loja, não tendo sido verificada qualquer anomalia nos procedimentos instituídos pela 1ª R. LL) À data dos factos a responsabilidade civil no que concerne a danos causados a terceiros emergentes da actividade comercial da 1ª R. encontrava-se transferida para a seguradora F., S.A. *** Na sentença recorrida considerou-se como não provado que: 1) Quanto à produção do pão na secção da padaria da 1ª R., apurou-se que a versão apresentada pela primitiva A. não seria susceptível de ter ocorrido. 2) Por outro lado, no momento em que a primitiva A. apresentou a reclamação, a funcionária da 1ª R. averiguou o estado do pão, o qual se encontrava mole e em condições conformes. 3) Por sua vez, a 2ª R. deu início ao processo de averiguação da responsabilidade, tendo, inclusive, solicitado um relatório de peritagem a uma entidade independente, e concluiu pela inexistência de responsabilidade da 1ª R. o que, oportunamente, transmitiu à primitiva A. *** Das nulidades da sentença recorrida Segundo a al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, uma sentença é nula quando a fundamentação esteja em oposição com a decisão. E segundo a al. d) do nº 1 do mesmo art.º 615º, uma sentença é nula quando deixar de ser conhecida questão que aí devia ser apreciada. Relativamente ao vício da oposição entre os fundamentos e a decisão, é sabido que o mesmo ocorre quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, reimpressão, 1981, pág. 141). Ou seja, tal vício corresponde ao erro lógico da argumentação jurídica, surgindo quando o resultado do silogismo judiciário aponta num sentido e a decisão aponta no sentido oposto. Já sobre a questão da nulidade da decisão judicial por omissão de pronúncia, refere Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra Editora, 2001, pág. 670): “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art. 660-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”. Com efeito, decorre do art.º 608º do Código de Processo Civil que na sentença o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Ou seja, o tribunal só está obrigado a conhecer (para além daquelas que são de conhecimento oficioso) de todas e cada uma das questões suscitadas pela causa de pedir e pelas excepções invocadas, na medida em que o conhecimento de cada uma delas não esteja dependente do conhecimento de outra. Por outro lado, e como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”. Revertendo tais considerações ao caso concreto dos autos, constata-se que o tribunal recorrido identificou correctamente a pretensão material apresentada pela primitiva A., afirmando corresponder a mesma à existência da obrigação da 1ª R. de indemnizar os danos sofridos pela primitiva A. E para chegar à conclusão da existência dessa obrigação da 1ª R. aplicou à factualidade apurada as normas jurídicas relativas à responsabilidade civil do produtor/vendedor de bens de consumo e à protecção do consumidor, afirmando a qualidade da 1ª R. de fabricante e vendedora do bem alimentar adquirido e consumido pela primitiva A., mais verificando a existência de danos causados por esse bem alimentar, e assim concluindo, face à aplicação do conjunto de normas em questão, pela referida obrigação da 1ª R. de ressarcir os danos em questão, através de uma indemnização em dinheiro, por ter entendido que a 1ª R. não logrou demonstrar a conformidade do bem alimentar com a sua natureza e fim, como lhe competia. Para sustentar as nulidades invocadas a 1ª R. sustenta a existência de factualidade provada que se mostra contraditória, do mesmo modo que sustenta que existem factos que não foram dados como provados e o deviam ter sido, porque se retiram da prova produzida. Face ao acima exposto, impõe-se concluir que a contradição apontada não é fundamento de nulidade da sentença, mas de impugnação da decisão de facto, segundo a disciplina do art.º 640º do Código de Processo Civil. Do mesmo modo, a omissão apontada também não é fundamento de nulidade da sentença, mas de impugnação da decisão de facto, nos mesmos termos acima referidos. E tal impugnação só é geradora da anulabilidade da sentença nos casos previstos na al. c) do nº 2 do art.º 662º do Código de Processo Civil. Ou seja, porque as invocadas nulidades da sentença recorrida se reconduzem a discordâncias quanto à decisão de facto (a considerar em sede de impugnação da mesma, na medida em que se verifiquem os pressupostos para tanto), face ao acima exposto impõe-se a conclusão da não verificação de qualquer contradição ou oposição entre os argumentos (de facto e de direito) expressos na sentença recorrida e a decisão aí tomada (já que se apresenta como lógico o resultado do silogismo judiciário exposto), do mesmo modo que fica por verificar a omissão de pronúncia quanto às questões que cumpria ao tribunal recorrido aí conhecer. Em consequência, e sem necessidade de considerações ulteriores, improcede a arguição de nulidades em questão. *** Da alteração da matéria de facto Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão. A respeito do disposto no referido nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil, refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 126): “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (…)”. Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”. E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”. No caso concreto dos autos constata-se que a 1ª R conclui que a factualidade dada como provada nos pontos E), H) e O) deve ser dada como não provada, do mesmo modo que deve ser dada como provada a matéria de facto que consta dos art.º 14º, 23º e 24º da sua contestação (que, em parte, corresponde aos pontos 2) e 3) da factualidade dada como não provada). Pelo que, relativamente ao referido ónus primário de delimitação do objecto do recurso, no que respeita à impugnação da decisão de facto, há que afirmar o cumprimento pela 1ª R. do mesmo. Todavia, no que respeita ao cumprimento do referido ónus secundário, na parte correspondente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados, constata-se que a alegação de recurso da 1ª R. é totalmente omissa de qualquer indicação nesse sentido, do mesmo modo que omite qualquer transcrição de quaisquer excertos da prova gravada. Com efeito, ao longo da sua alegação a 1ª R. menciona genericamente os depoimentos do “marido da Autora” (trata-se do A. Armando R.), bem como de Sandra F., Joana F., Susana R. e Rui A., mais afirmando que é a partir dos mesmos que é possível afirmar a alteração da decisão de facto, nos termos concretizados nas conclusões apresentadas. Mas em parte alguma da sua alegação transcreve os excertos de cada um dos depoimentos em questão que permitem afirmar a necessidade dessa alteração, do mesmo modo que não identifica as partes da gravação de cada um dos depoimentos, de modo a que seja possível ao tribunal recorrido apreender o afirmado pelas testemunhas, quanto à factualidade em questão, e assim poder concluir pela relevância dessas afirmações para a demonstração da factualidade constante dos art.º 14º, 23º e 24º da contestação, do mesmo modo podendo concluir que a factualidade constante dos pontos E), H) e O) não está demonstrada. Ou seja, é inequívoco que a 1ª R. não possibilita o “acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (segundo a caracterização do referido ónus secundário que é feita no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima referido). É certo que, como vem referido no mesmo acórdão, “este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento”. Do mesmo modo, também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/2/2018 (relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que a “razão de ser do requisito de impugnação estabelecido na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do mesmo Código”. Mas ficou igualmente afirmado que “o nível de exigência na exactidão das passagens das gravações não se pode alhear da metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados e colhidos em audiência”, sendo que “a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face ao grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efectuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso”. No entanto, nesse acórdão, como na restante jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça relativa à concreta configuração do referido ónus de impugnação secundário (citada em cada um dos acórdãos já identificados), salienta-se a existência da alegação de elementos identificativos da prova gravada que permitem concluir pelo preenchimento do referido ónus, desde a existência de transcrições (mais ou menos extensas) até à referência às sessões da audiência final em que os depoimentos gravados foram prestados, ou mesmo à localização temporal das partes relevantes relativamente à totalidade do depoimento (como nas referências ao princípio, meio ou fim do depoimento, ou, no caso em que o depoimento é prestado em mais de uma ocasião, à identificação da concreta ocasião onde se encontra a parte relevante). Também António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 771) sustentam que “o modo como se interpretam as normas sobre recursos não deve alhear-se dos grandes objectivos do processo civil, os quais tutelam no essencial a apreciação do mérito das pretensões. Isso é particularmente relevante quando está em causa a identificação, mais ou menos precisa, dos depoimentos em que o recorrente sustenta a sua posição (…). Por exemplo, é frequente a invocação de necessidade da indicação do minuto e do segundo da gravação em que se encontra a “passagem” que funda o recurso, fulminando-se com a rejeição os recursos que não satisfaçam tal pretenso requisito”. Mas não deixam de referir (pág. 770) a existência do referido ónus de indicação das passagens da gravação em que se funda a impugnação da decisão de facto (sem prejuízo da apresentação da respectiva transcrição), apenas rejeitando a “exponenciação dos ónus que a lei prevê nesta sede”, do mesmo modo rejeitando “uma interpretação demasiado rigorista, a ponto de ser violado o princípio da proporcionalidade e de ser denegada a pretendida reapreciação da matéria de facto”. Como já se referiu, a 1ª R. omitiu pura e simplesmente qualquer indicação tendente à localização da parte dos depoimentos que, na sua perspectiva, se apresentavam como relevantes para a demonstração do erro de julgamento dos pontos de facto que identificou. Não se trata de a 1ª R. ter indicado qualquer faixa ou ficheiro das gravações dos depoimentos em questão, nem tão pouco da apresentação de transcrições, ainda que pouco precisas ou incompletas. Trata-se de a 1ª R. afirmar genericamente que o que decorre dos depoimentos prestados pelas testemunhas que identifica conduzem a resultado distinto daquele a que chegou o tribunal recorrido, mas sem indicar as concretas passagens dos mesmos que devem ser valoradas, para que se obtenha tal resultado impugnatório, e assim impossibilitando o exercício pleno do duplo grau de jurisdição, no que respeita ao julgamento da matéria de facto sustentado na prova gravada. O que determina, sem necessidade de considerações ulteriores, a rejeição imediata da impugnação da decisão de facto, relativamente à ponderação dos depoimentos prestados em audiência final e que se mostram gravados. Todavia, e como a 1ª R. sustenta igualmente a necessidade de valoração de prova documental, sempre deverá este tribunal de recurso apreciar a impugnação da decisão de facto com base nessa prova, mais podendo suceder a necessidade de fazer uso dos poderes/deveres que decorrem do art.º 662º do Código de Processo Civil. *** Assim, e desde logo quanto à afirmação da impossibilidade de se encontrar um dente dentro do pão produzido e vendido pela 1ª R., sustenta esta que, tratando-se de um pão fatiado, produzido nos termos que resultam provados nos pontos BB) a HH), estando ainda demonstrado que a ASAE não detectou qualquer desconformidade legal no processo produtivo da 1ª R., nas diversas acções de fiscalização que realizou (ponto AA) dos factos provados), e também não resultando qualquer anomalia nos procedimentos desse processo produtivo, a partir das auditorias promovidas pela 1ª R. (pontos JJ) e KK) dos factos provados), não era possível que quando a primitiva A. (Fernanda R.) consumiu o pão tenha trincado um dente que se encontrava no interior do mesmo, desde logo pela circunstância de tal corpo estranho ser necessariamente detectável na fatia de pão a ser consumida, designadamente se lhe fosse barrada manteiga. Ou seja, a argumentação da 1ª R. parte do pressuposto que o pão em questão estava fatiado quando foi adquirido por Fernanda R., e assim tendo sido consumido. Todavia, na reclamação apresentada por Fernanda R. (que corresponde ao documento 1 junto com a P.I.), a mesma afirmou que “Comprei um pão de sementes e quanto o fui consumir trinquei um objecto que me fez doer até hoje e quando verifiquei era um dente (parte) provocando-me uma repulsa enorme”. Quer nessa reclamação, quer na P.I., nunca foi afirmado por Fernanda R. que se tratava de um pão fatiado. Na sua carta de 30/8/2016 (correspondente ao documento 2 junto com a P.I.) a 1ª R. identificou tal pão como sendo um “Pão 8 Cereais 400g”, mais reconhecendo que o mesmo “é produzido diariamente na secção de padaria da loja, sendo disponibilizado para o cliente devidamente embalado e rotulado”. Em momento algum da referida carta a 1ª R. afirma que se trata de um “pão de 8 cereais fatiado”, como depois alegou no art.º 11º da sua contestação. Ou seja, tal afirmação da 1ª R., de que se tratava de um pão fatiado, não encontra qualquer acolhimento nos elementos documentais contemporâneos do evento. Pelo que, desde logo, não há que partir da afirmação da existência de um pão fatiado, para concluir pela inevitável detecção do objecto duro que Fernanda R. trincou, caso o mesmo estivesse presente nesse pão no momento do seu consumo. E, desta mesma forma, está afastada a invocada inverosimilhança da afirmação do marido daquela (o A. Armando R.), no sentido de se tratar de um pão com côdea, tornando difícil a visualização do objecto duro que a mesma Fernanda R. trincou. Do mesmo modo, tendo a referida Fernanda R. entregue à 1ª R. (na pessoa da testemunha Sandra F.) o dente que indicou ser o objecto duro que se encontrava no interior do pão, em momento algum a 1ª R. colocou em causa que tal objecto não fosse o que a Fernanda R. trincou, antes afirmando e tentando demonstrar a impossibilidade de tal objecto ter sido introduzido no pão durante o processo de fabrico do mesmo, desde logo face às medidas que estão implementadas para impedir eventos como esse. Todavia, no que respeita ao fabrico, em concreto, daquele pão adquirido por Fernanda R., a circunstância de a 1ª R. (através da testemunha Sandra F., atenta a sua qualidade de gerente da loja de Linda a Velha) constatar que nenhum dos seus funcionários da secção da padaria havia perdido um dente não é circunstância bastante para afirmar a impossibilidade de o pão vendido à referida Fernanda R. ter no seu interior a parte do dente que a mesma trincou. E desde logo porque, se se trata de parte de um dente, não é a inspecção oral sumária que a referida Sandra F. afirmou ter feito que permitiria a afirmação cabal da (in)existência de dentição completa e sem falhas em cada um dos referidos funcionários (nos termos alegados no art.º 24º da contestação da 1ª R.). Ou seja, mesmo perscrutando oficiosamente o depoimento da testemunha Sandra F., a sua conjugação com o teor dos dois documentos acima referidos não aponta no sentido da invocada impossibilidade de o objecto duro, que foi trincado por Fernanda R., se encontrar no interior do pão produzido e vendido pela 1ª R. e consumido por aquela. Por outro lado, a circunstância de o pão se encontrar em “condições conformes” quando foi consumido por Fernanda R. (e, consequentemente, quando foi apresentado com a reclamação de 5/8/2016), bem como a circunstância da “inexistência de responsabilidade” da 1ª R. na ocorrência do evento danoso (art.º 23º e 14º da contestação da mesma), não é matéria que deva constar do elenco de factos provados, na medida em que não é matéria factual, mas conclusiva e de direito, como bem referiu o tribunal recorrido na fundamentação constante da sentença recorrida. O que é o mesmo que afirmar a impossibilidade da sua inclusão no elenco de factos provados. No mais, a prova documental a que acima já se fez referência evidencia claramente a existência do referido objecto duro (o “dente”), do mesmo modo não afastando a verificação da sua existência no interior do pão (mais concretamente, no “bocado do mesmo” que Fernanda R. introduziu na boca) e, consequentemente, o acto de ter sido trincado pela mesma Fernanda R., no acto de consumir tal pão. E quanto à circunstância de se tratar de um objecto não compatível com a natureza do produto em causa, basta constatar que é da demais factualidade apurada que resulta que o processo de produção do mesmo envolve tão só água e um preparado que é passado por crivos (o denominado mix de farinhas), pelo que, se outras circunstâncias da vida comum não bastassem para concluir que na produção de pão não entram objectos duros (muito menos dentes, humanos ou não), bastava a utilização daquelas matérias primas para afirmar tal incompatibilidade com o pão em questão, produzido e vendido pela 1ª R. Do mesmo modo, a prova documental constante dos autos não afasta a verificação da factualidade elencada em O), antes a corrobora, designadamente a circunstância de ter sido diagnosticada a Fernanda R. a fractura na estrutura da prótese implantada na boca da mesma (de acordo com o teor do documento 4 junto com a P.I.), causando-lhe necessariamente dores, a “remediar” (ou amenizar, na expressão da factualidade alegada e provada) com os necessários e habituais medicamentos analgésicos, de venda livre em qualquer farmácia ou para-farmácia. Ou seja, não há como não concordar com o tribunal recorrido, quando afirma que “quanto ao facto não provado sob o n.º 2, mesmo (…) admitindo o estado do pão como mole, a presença de um dente – verificado o objecto pela mesma testemunha que afirma a dita textura – não se coaduna com a dita conformidade. Que é neste contexto, ademais, um conceito jurídico. Igualmente conclusivo é o facto não provado sob o n.º 3, em seu lugar ficando provado o fiel teor do relatório elaborado pela ASAE (facto AA)). Nestes termos, foram assim consignados os factos correspondentes como não provados”. Do mesmo modo, é de concordar com a fundamentação aí expressa, quando se afirma que “cumpre salientar dois aspectos que, na produção de prova em sede de julgamento, mais se mostraram controvertidos. Em primeiro lugar, a existência do dente. Vejamos que há total ausência de prova documental, designadamente fotogramas, do dente (…). Todavia, é sobretudo por mão da 1.ª ré que se faz prova do mesmo (…). Com efeito, são as testemunhas Sandra F. e, sobretudo, Joana F. que aludem ao dente que visualizaram, tendo inclusivamente a última manifestado não ter qualquer dúvida sobre a natureza do mesmo. Sendo certo que é infrutífera a discussão em torno da natureza do mesmo, afigurando-se que a desconformidade do produto se bastaria com um qualquer corpo estranho à sua normal composição. In casu, algo que não fosse matéria integrante do mix, levedura ou água. Em segundo lugar, a questão do tratamento dentário e a tentativa de claudicar a existência de danos e nexo de causalidade. Como já adiantado, dos documentos emitidos pela clínica dentária se retira com segurança que a autora foi sujeita a cirurgia e lhe foi colocada uma prótese fixa antes do acto de consumo em apreço. E que, após este, tal prótese quedou fracturada, o que implicou a sua substituição”. Ou seja, mesmo que o incumprimento pela 1ª R. do seu ónus secundário de identificação das passagens da prova gravada não impeça que este tribunal de recurso lance mão da mesma prova (ao abrigo dos poderes/deveres que resultam do art.º 662º do Código de Processo Civil), tendo em vista a sua conjugação com a prova documental produzida, para permitir o conhecimento das alterações pretendidas à decisão de facto, ainda assim não é possível, face ao acima exposto, afirmar os invocados erros de julgamento do tribunal recorrido ao dar como provada a factualidade elencada nos pontos E), H) e O). E, do mesmo modo, há que manter a decisão de facto, na parte em que não considerou no elenco de factos provados a matéria que consta dos art.º 14º, 23º e 24º da contestação da 1ª R. Pelo que, na improcedência da impugnação da decisão de facto, nos termos vertidos nas conclusões do recurso da 1ª R., mantém-se inalterada tal decisão. *** Da caracterização da desconformidade do bem produzido e vendido pela 1ª R. Se é certo que a 1ª R. não coloca em crise o enquadramento jurídico dado pelo tribunal recorrido ao caso concreto, no que respeita à aplicação das regras que regulam a responsabilidade objectiva do produtor, constantes do D.L. 383/89, 6/11, à aplicação da Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96, de 31/7) e bem ainda à aplicação das regras relativas à venda de bens de consumo, constantes do D.L. 67/2003, de 8/4, entende a mesma 1ª R. que, face à matéria de facto apurada, é possível concluir pelo afastamento da sua responsabilidade no ressarcimento dos danos sofridos pela primitiva A., já que se consegue afirmar o afastamento da presunção de desconformidade que a onera (atenta a sua qualidade de fabricante e vendedora de bens destinados ao consumo como alimentos), em razão da demonstração da conformidade do bem alimentar por si produzido e vendido à primitiva A. A 1ª R. chega a tal conclusão porque entende, por um lado, que a existência das auditorias e averiguações ao seu processo produtivo visam apurar da susceptibilidade da desconformidade invocada ter ocorrido, o que, no caso concreto, permitiu afastar tal susceptibilidade. E, por outro lado, porque entende que não ficou provada a existência do objecto duro no pão por si produzido e vendido, aquando do seu consumo pela primitiva A., caracterizador da desconformidade geradora da sua responsabilidade enquanto produtora/vendedora. Todavia, a 1ª R. chega a tais conclusões porque parte de uma realidade factual distinta daquela que resulta apurada. Com efeito, e ao contrário do que entende a 1ª R., resulta provado que o objecto duro que a primitiva A. trincou, enquanto mastigava um pedaço do pão que havia adquirido à 1ª R. (a qual havia fabricado esse bem alimentar), era um dente que se encontrava dentro de tal pão. Um pão é um bem alimentar destinado a ser consumido sem qualquer outro tipo de confecção ou processamento, para além do que resulta da própria arte da panificação (essencialmente a cozedura, em forno, de uma massa composta, pelo menos, por água, farinha de um ou mais cereais e fermento). Ou seja, é um alimento que não carece de qualquer outro processamento, para além daquele que lhe confere a sua natureza e fim. Nessa medida, não é suposto que no interior desse tipo de bem alimentar se encontre um objecto que não é destinado à alimentação humana (como é o caso de um dente, ou parte de um dente). Assim, e se um pão apresenta um dente no seu interior, pode-se concluir que se trata de um bem alimentar que não cumpre a natureza e o fim para que foi fabricado, pelo que se apresenta desconforme a tal natureza e fim. E não é a circunstância de o consumidor não detectar a existência desse objecto estranho à composição do pão no interior do mesmo que permite afastar, como pretende a 1ª R., a afirmação dessa desconformidade. Com efeito, o afastamento em questão só se pode verificar caso o consumidor, usando da necessária diligência (que será aquela do consumidor médio), lograsse descortinar a existência do objecto no interior do pão. Mas não estando demonstrado que as características do pão concretamente fabricado, embalado e vendido pela 1ª R., aliadas às características do referido objecto, tornavam este necessariamente visível à primitiva A., quando procedia ao consumo do pão, não se pode concluir, como pretende a 1ª R., que a afirmação da desconformidade do pão com a natureza e fim a que se destina está afastada, porque se exigia à primitiva A., enquanto consumidora final daquele bem alimentar, que detectasse o dente que se encontrava no interior do mesmo, não o introduzindo na boca para o consumir, por não poder deixar de saber, segundo as regras da experiência comum, que tal dente era um objecto duro e estranho à composição do pão, não devendo ser trincado e/ou mastigado, sob pena de poder causar lesões na prótese dentária que lhe tinha sido implantada recentemente. Do mesmo modo, não é a circunstância de o produtor do bem alimentar em questão adoptar toda uma série de procedimentos e diligências tendentes a impedir que existam objectos estranhos à composição daquele bem alimentar, ao longo do processo produtivo, que no caso concreto faz concluir, sem mais, pela insusceptibilidade de o referido objecto existir no interior do pão, no momento em que foi entregue pela 1ª R. à primitiva A. Com efeito, está demonstrado que o pão em questão foi entregue pela 1ª R. à primitiva A. e esta o levou para casa, onde o congelou inteiro, o descongelou posteriormente e iniciou o seu consumo, sem que tenha sido alegado (nem provado) qualquer outro circunstancialismo neste lapso temporal, o que afasta a susceptibilidade da introdução do objecto no interior do pão, entre a sua entrega à primitiva A. e o acto da sua introdução na boa da mesma (o que é o mesmo que afirmar, após a sua colocação em circulação pela 1ª R.). Ou seja, e como bem se refere na sentença recorrida, “não fica assente qualquer acção (…) interposta no tempo entre a colocação do produto em circulação e o acto de consumo (…) que pudesse afastar a culpa da 1ª ré por (…) da dita acção advir a desconformidade”. Do mesmo modo, e pese embora esteja demonstrado que a ASAE não detectou qualquer desconformidade legal nas acções de fiscalização que realizou à 1ª R. em 22/12/2016, 13/4/2017, 7/3/2018 e 9/4/2018, tal significa apenas que, nas datas das referidas acções de fiscalização, a entidade fiscalizadora em questão verificou que os processos produtivos da 1ª R. respeitavam as normas relativas à qualidade e segurança dos bens alimentares que produz, embala e comercializa na sua loja. Mas já não pode ter a virtualidade de fazer afirmar que essas mesmas normas foram respeitadas aquando do fabrico do pão que foi vendido pela 1ª R. em finais de Julho ou princípios de Agosto (de 2016). E como o tipo de bem alimentar em causa era fabricado diariamente pela 1ª R., há que concluir que aquele que foi entregue à primitiva A. foi fabricado no dia da sua venda (ou, o mais tardar, no dia anterior). Pelo que a acção de fiscalização de 22/12/2016 não podia, necessariamente, certificar que a não detecção de qualquer “desconformidade legal” respeitava ao lapso de tempo compreendido entre finais de Julho e princípios de Agosto. Do mesmo modo, ainda, a factualidade dada como provada em CC) a KK), se permite a afirmação genérica do cumprimento, pela 1ª R., de regras de higiene e segurança tendentes a impedir que no pão por si fabricado seja introduzido um objecto estranho à composição do mesmo, como foi o dente que se encontrava no interior do pão que a primitiva A. começou a consumir, já não permite a afirmação de que, concretamente no pão em questão, não ocorreu essa introdução durante o processo de fabrico do mesmo. Com efeito, nem a certificação negativa referida em II) tem essa virtualidade (basta verificar que, se não se tratar de um dente, mas apenas de parte de um dente, como a primitiva A. fez constar da reclamação que apresentou à 1ª R., tal certificação não é apta a afirmar a perda da parte de um dente por parte de algum dos funcionários da 1ª R. que entrou em contacto com a linha de fabrico do pão em questão), nem a circunstância de ter sido efectuada uma auditoria após o incidente permite assegurar que o concreto fabrico do pão vendido à primitiva A. não sofreu qualquer revés, ao nível do cumprimento das regras que asseguram a sua composição, qualidade e segurança enquanto bem destinado à alimentação humana. Ou seja, também aqui, e como bem se refere na sentença recorrida, se pode concluir que “do que fica assente ressalta o intento e esforço da 1.ª ré no sentido de reduzir a probabilidade de existência de desconformidade nos seus produtos. Porém, tal não implica necessariamente que no caso particular tal não tenha sucedido, como a própria não consegue concluir”. E, do mesmo modo, “se questiona: o que poderiam ter detectado as auditorias e acções de fiscalização no caso concreto? Um dente, segundo o normal acontecer, dificilmente deixa rasto num processo de fabrico, na maquinaria e afins”. E no “que toca aos colaboradores, a acção de perguntar pela falta de dentes ou observar as suas bocas não (…) afasta inexoravelmente daqui a origem” do objecto presente no interior do pão fabricado e vendido à primitiva A. Pelo que, tendo sido provada a desconformidade do bem alimentar fabricado e vendido pela 1ª R. (ónus que cabia aos AA., na posição de sucessores da compradora/consumidora daquele bem alimentar), e cabendo à 1ª R. a prova de que tal desconformidade não existia, o que não logrou alcançar, ou de que não lhe podia ser imputada, por dever ser exclusivamente imputada à acção de outrem (fosse a referida compradora, fosse um terceiro), o que também não logrou alcançar, torna-se inevitável afirmar, como na sentença recorrida, que a 1ª R. ficou obrigada a indemnizar os danos causados por tal desconformidade. O que equivale a afirmar que, também quanto a esta questão, improcedem as conclusões do recurso da 1ª R., não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida, quando aí se afirma a perfeição da obrigação de indemnizar que recai sobre a 1ª R. *** Da indemnização por danos não patrimoniais Quanto a esta questão, o tribunal recorrido entendeu fixar em € 2.000,00 a medida da reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela primitiva A., com recurso à seguinte fundamentação: “O artigo 496.º dita que a fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve ater-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. É pacífico na jurisprudência, posição que se sufraga, que incómodos ou transtornos não constituem danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, verbi gratia através de uma indemnização. Tal tipo de danos enquadra-se na normalidade da vida, exigindo por parte de quem os sofre um esforço de adaptação. Mas assim não se crêem os sentimentos expostos pela autora, dos mais aos menos físicos (dor, repulsa, horror, tristeza, angústia). A dor associada à dificuldade na mastigação e, em última instância, alteração transitória da dieta alimentar não se trata de um transtorno ordinário. Pelo menos quando a causa também não o é, como a título de exemplo um tratamento dentário voluntário. A repulsa e o horror em face da factualidade aprecianda merecem igualmente a tutela do direito, na óptica do homem médio. Trata-se de encontrar um dente de terceira pessoa num alimento, ao comê-lo. E a tristeza e angústia à luz do quadro clínico da autora são de acolher nesta indemnização. Com efeito, a debilidade da saúde da autora aliada ao acontecimento sub judice é de molde a levar, segundo critérios de experiência comum e normalidade das coisas, a tal tipo de sentimento. Contudo, o mesmo quadro clínico de que padecia a autora justifica a redução da quantia indemnizatória por danos não patrimoniais. É que se o mesmo serve para explicar o surgimento mais fácil e natural daqueles sentimentos perante a factualidade provada, também serve para entender que os mesmos têm uma concausa e anterior. Em conformidade, com amparo na equidade prevista no artigo 566.º, n.ºs 3 do Código Civil, afigura-se justo atribuir nesta sede aos autores, nesta sede, a quantia de € 2.000,00”. Já a 1ª R. sustenta que os estados psicológicos da primitiva A. que resultam provados (correspondentes a repulsa e nojo, dores, tristeza, angústia e abatimento) não são merecedores da tutela do direito, segundo o critério da gravidade que resulta do nº 1 do art.º 496º do Código Civil. Não sofre qualquer controvérsia que, “a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente ao dano, isto é, de valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de equivalente” (Vaz Serra, B.M.J. nº 83, pág. 85). Por outro lado, e como há muito vem referindo a doutrina, a gravidade do dano não patrimonial “há-de medir-se por um padrão objectivo (...) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)” (Pires de Lima e Antunes Varela, anotação ao art.º 496º do Código Civil, in Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, Coimbra, 1987). Por outro lado, ainda, “está definitivamente enterrado o tempo da atribuição de indemnizações baixas, miserabilistas; hoje, os tribunais estão sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais - credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser, como acontece com a integridade física e a saúde, que o Estado garante a todos os cidadãos (art.ºs 9º, b), e 25º, nº 1, da Constituição)” (segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/5/2005, relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt). Do mesmo modo, e segundo o mesmo acórdão, as “indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, “valem” hoje mais do que ontem; e assim, à medida que com o progresso económico e social e a globalização crescem e se tornam mais próximos toda a sorte de riscos - riscos de acidentes os mais diversos, mas também, concomitantemente, riscos de lesão do núcleo de direitos que integram o último reduto da liberdade individual, - os tribunais tendem a interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, particularmente a do art.º 70º do Código Civil”. E do mesmo modo, ainda segundo o mesmo acórdão, a “indemnização prevista no art.º 496º, nº 1, do CC, mais do que uma indemnização é uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos e não o de o recolocar “matematicamente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e, nessa exacta medida, irreparáveis, é uma reparação indirecta)”. Ou seja, desde logo há que não esquecer a necessidade de que “o montante a arbitrar seja significativo e se afaste do miserabilismo comum, conforme vem sendo afirmado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça” (segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/1/2016, relatado por Orlando Afonso e disponível em www.dgsi.pt). Por outro lado, importa não esquecer a função punitiva da responsabilidade civil, tal como a mesma vem sendo reconhecida na jurisprudência, explicando sumariamente a este propósito Paula Meira Lourenço (no artigo “A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação”, disponível online em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/09/responsabilidadecivil_paulameiralourenco.pdf) que no “nosso ordenamento jurídico, a dificuldade de avaliação dos danos não patrimoniais, danos difusos e dos danos “complexos, graves e irreversíveis”, possibilita a obtenção de lucro por parte dos meios de comunicação, dos fabricantes de produtos perigosos e dos agentes causadores de danos ambientais ou ecológicos, entre outros, os quais pagam diminutas indemnizações em sede de responsabilidade civil. Parece-nos que o desafio que se coloca ao julgador é claro: calcular a indemnização sancionatória ou punitiva de forma rigorosa, razão pela qual nos detivemos na análise dos critérios que a nosso ver, podem nortear esse cálculo, a saber: a) A equidade, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do agente e do lesado, e as demais circunstâncias do caso, previstos no artigo 496.º; b) As providências adequadas às circunstâncias do caso, nos termos do n.º 2 do artigo 70.º; c) O lucro do lesante. Se o julgador fizer bom uso destes critérios, estará a contribuir para: a) O aperfeiçoamento do método de cálculo da indemnização por danos não patrimoniais, danos difusos ou danos “complexos, graves e irreversíveis”; b) O reforço da tutela da pessoa humana relativamente à violação dos direitos de personalidade pelos meios de comunicação social sensacionalistas; c) A prevenção e punição do produtor que (…) prefere pagar indemnizações a eliminar os defeitos encontrados; d) A prevenção e punição do poluidor, em sede de responsabilidade ambiental”. Ou seja, e como bem se refere na sentença recorrida, simples incómodos ou transtornos não correspondem a danos não patrimoniais cuja gravidade deva merecer a tutela do direito, na medida em que correspondem a situações enquadradas na normalidade da vida em sociedade. Todavia, a ocorrência de dores decorrentes da fractura de uma prótese dentária, bem como as limitações daí decorrentes ao nível da alimentação, ultrapassa esse patamar dos transtornos próprios da vida em sociedade, pela própria limitação funcional que desencadeia, configurando-se como uma violação aos direitos de personalidade do lesado, a demandar indemnização. Do mesmo modo, o sentimento de repulsa e nojo pela constatação da existência de um dente humano num alimento que se encontra a ser mastigado, ultrapassa a simples sensação de se estar a comer um alimento fabricado ou confeccionado sem todas as preocupações de higiene e segurança (como, por exemplo, a existência de matéria vegetal ou mesmo pequenos insectos), já que é associada a um certo conceito de canibalismo ou de perda de partes ósseas do corpo humano, inadmissível no estádio actual da evolução humana. Ou seja, à luz do sentimento do “homem médio”, tais circunstâncias assumem uma gravidade merecedora da tutela do direito, na medida em que não é preciso ser-se particularmente insensível ou especialmente sensível para sentir nojo e repulsa, bem como dores (no momento do evento e posteriormente, até à substituição da prótese destruída), quando colocado em situação idêntica àquela em que se viu colocada a primitiva A. E como na determinação da medida indemnizatória dos danos não patrimoniais em questão deve fixar-se uma quantia que, não só seja algo mais que simbólica e não promova o “miserabilismo comum” que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça rejeita, como igualmente vise assegurar a função punitiva acima afirmada, daí decorre que o valor de € 2.000,00 encontrado pelo tribunal recorrido corresponde à acertada medida indemnizatória daqueles danos. Ou seja, também quanto a esta questão improcedem as conclusões do recurso da 1ª R., não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida, quanto aí fixa em € 2.000,00 o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais verificados, devida pela 1ª R. *** DECISÃO Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida. Custas pela 1ª R. 9 de Setembro de 2021 António Moreira Carlos Castelo Branco Lúcia Sousa
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados: Fernanda R. intentou acção declarativa com forma de processo comum contra P., S.A. (1ª R.) e S., S.A. (2ª R.), pedindo a condenação das RR. no pagamento da quantia de € 10.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento. Alega para tanto e em síntese que: · Em 2/8/2016, quando consumia um pão que havia adquirido num estabelecimento comercial da 1ª R., trincou um objecto duro e não compatível com a natureza daquele produto, que verificou tratar-se de um dente humano que se encontrava dentro do referido pão; · Em consequência desse acto a A. fracturou a sua prótese dentária, que teve de substituir, no que despendeu € 5.000,00; · Ainda em consequência desse acto a A. sentiu dores e dificuldades na mastigação, tendo de tomar medicação, para além de ter sentido repulsa e horror, tristeza e angústia; · A 1ª R. havia transferido a sua responsabilidade civil por danos emergentes da sua actividade comercial para a 2ª R., tendo ambas declinado qualquer responsabilidade na reparação dos danos sofridos pela A. As RR. apresentaram contestações separadamente, sendo invocada a excepção dilatória da ilegitimidade passiva da 2ª R., por ter o seu objecto social circunscrito à mediação de seguros, sendo indicada a F., S.A. como a seguradora para a qual a 1ª R. tinha transferido a sua responsabilidade civil por danos emergentes da sua actividade comercial, à data do evento, tendo sido requerida a sua intervenção principal (e a sua intervenção acessória, subsidiariamente), e mais sendo impugnada a factualidade alegada pela A., tendo a 1ª R. alegado que a forma como ocorre e é auditado o seu processo de produção do pão invocado pela A. torna insusceptível de ter ocorrido a introdução, ainda que acidental, de qualquer dente humano. Concluíram assim pela procedência da excepção dilatória da ilegitimidade da 2ª R. e pela improcedência da acção, com a absolvição da 1ª R. do pedido. Foi indeferida a requerida intervenção principal provocada de F., S.A., sendo deferida a intervenção acessória da mesma, na qualidade de assistente da 1ª R. Citada, veio a interveniente acessória apresentar contestação, confirmando a existência do contrato de seguro, mas alegando a existência de franquia contratada com a 1ª R., mais impugnando o alegado pela A. quanto aos danos na prótese dentária, e concluindo pela improcedência da acção. Foi proferido despacho que declarou parcialmente não escrita a contestação apresentada pela interveniente acessória, “na parte em que esta alega matéria de excepção e em que impugna factos que não foram impugnados pela 1.ª ré, bem como em tudo o que esteja em contradição com a posição assumida pela 1.ª ré”. Foi fixado o valor da causa e proferido despacho saneador, neste se julgando parcialmente improcedente a acção quanto ao pedido formulado contra a 2ª R., que foi absolvida do pedido. Mais foi dispensada a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova. Face à comprovação do óbito da A., foram habilitados Armando R., Joana M. e Ricardo M. para prosseguir na acção como AA. Após realização da audiência final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência: a) condeno a 1.ª ré (…) no pagamento aos habilitados (…) da quantia total de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos patrimoniais, à qual acrescem juros de mora, à taxa legal de 4 %, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento; b) condeno a 1.ª ré (…) no pagamento aos habilitados (…) da quantia total de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora, à taxa legal de 4 %, desde a data da respectiva fixação (presente decisão) e até efectivo e integral pagamento, nos termos dos artigos 483.º, 496.º, ambos do Código Civil e acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2002, de 2002-06-27. c) Absolvo a 1.ª ré (…) do demais peticionado. Condeno os habilitados (…) e 1.ª ré (…) no pagamento das custas processuais, na proporção de, respectivamente, 20% e 80%, estando a taxa de justiça fixa em 3 UC, nos termos conjugados dos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, 6.º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais e tabela I-A anexa ao mesmo diploma. * Consigno, ao abrigo do disposto no artigo 332.º do Código de Processo Civil, que a presente decisão constitui caso julgado em relação à assistente F., S.A., que é obrigada a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a mesma tenha estabelecido, excepto: a) se alegar e provar, na causa posterior, que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegações ou meios de prova que poderiam influir na decisão final; b) se mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova susceptíveis de influir na decisão final e que o assistido não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave”. A 1ª R. A. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem: 1. O presente recurso é interposto da sentença de fls. (…), que condenou a Recorrente como civilmente responsável perante a Autora; 2. Na fundamentação invocada na sentença, o Tribunal a quo, por um lado, utiliza fundamentos que estão em oposição com a decisão, e por outro, não se pronuncia sobre questões que deveria ter apreciado. 3. O Tribunal a quo dá como provados os factos E), F), H) e O), considerando que o dente objecto dos presentes autos estaria no interior do pão adquirido à Recorrente, sem que o fundamentasse, como, de resto, se impõe. 4. Por outro lado, considerou também como provado os factos de AA) a KK). Não compreende a Recorrente como é que o Tribunal a quo dá como provado que o dente se encontrava no interior do pão, e em simultâneo os pontos de AA) a KK) que se traduzem nas diligências que a Recorrente efectuou de modo a averiguar que o produto estava efectivamente conforme. 5. Os factos provados de AA) a KK) estão em oposição com a decisão, na medida em que se permite retirar dos mesmos que a Recorrente tudo fez para apurar a existência ou não de desconformidade, desde o momento zero do produto, que começa no fornecedor, à produção do pão em loja, até à respectiva venda, não tendo sido detectada qualquer falha ou suspeita que permitisse confirmar a versão aludida pela Autora. 6. Não se compreende como o Tribunal a quo dá como não provado, que: “2) Por outro lado, no momento em que a autora apresentou a reclamação, a funcionária da 1.ª ré averiguou o estado do pão, o qual se encontrava mole e em condições conformes. 3) Por sua vez, a 2.ª ré deu início ao processo de averiguação da responsabilidade, tendo, inclusive, solicitado um relatório de peritagem a uma entidade independente, e concluiu pela inexistência de responsabilidade da ora 1.ª ré o que, oportunamente, transmitiu à autora”. 7. Não se compreende como é que o Tribunal a quo ignora, sem qualquer justificação, o que se impunha, a prova produzida, e, em particular, o depoimento claro e isento prestado pela testemunha Sandra F., que referiu expressamente que recebeu a fatia de pão, tendo verificado que a mesma se encontrava mole e conforme, bem como que viu o dente, que inclusivamente guardou. 8. Também não se percebe como é que consta dos factos não provados, quando, se visualizarmos a carta de declinação de responsabilidade enviada pela S., a qual foi junta aos autos pela Autora menciona que “após análise dos elementos que constituem o processo de gestão de reclamação em assunto, bem como das demais diligências efectuadas entre elas o relatório de peritagem efectuado por uma empresa independente Viapre, foi observado que não assiste responsabilidade do nosso cliente quanto ao dano reclamado. Assim cumpre transmitir que o processo será encerrado sem lugar ao ressarcimento das verbas reclamadas”. 9. A testemunha Sandra F. transmitiu ao Tribunal a quo que observou a boca de todos os colaboradores da secção da padaria, que são os únicos que frequentam a referida secção, e não apenas daqueles que naquele momento estavam ao serviço, omissão que é desconsiderado ao longo de toda a sentença. 10. Por conseguinte, e das omissões que supra se enunciaram, e que se mostram decisivas para a decisão, dos factos sobre os quais o Tribunal a quo se deveria ter pronunciado e não fez, e, ainda, da manifesta contradição que incorre a decisão, resulta claro e inequívoco que a sentença de que ora se recorre é nula nos termos do art.º 615, n.º 1 alíneas c) e d), nulidade que expressamente se invoca. Caso assim não se entenda, 11. O Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos: “E) Todavia, aquando do acto de consumir o pão e ao introduzir um bocado do mesmo na boca sentiu os dentes estalarem ao trincar um objecto duro, não compatível com a natureza do produto. H) Contudo, e após verificar cuidadosamente o objecto que retirou da sua boca, verificou que não se tratava de nenhum dente seu, natural ou implantado, tendo, pois, de imediato concluído que o objecto em causa se encontrava dentro do pão que adquirira. (…) O) A autora, no acto de consumo do pão em causa sentiu claramente os dentes a estalar, seguindo-se uma dor aguda e persistente que, inclusive a obrigou a tomar medicação para amenizar o seu sofrimento”. 12. Não compreende a Recorrente como é que o Tribunal a quo concluiu no sentido de se ter provado que o dente estava efectivamente no interior do pão adquirido à Recorrente, quando, simultaneamente, também dá como provados os factos AA) a KK). 13. Na motivação apresentada, o Tribunal a quo refere que: “ao auditar a padaria, não encontrou falha nos processos. Também declarou ter pedido auditoria ao fornecedor (fabricante do mix que serve de base ao pão produzido na padaria), o qual transmitiu que nenhuma falha tinha detectado. (…) Assim, com detalhe descreveu o processo de fabrico diário do pão nas instalações de padaria da 1.ª ré, dos ingredientes à maquinaria, passando pelos passos e, claro, pela intervenção dos colaboradores. Mais se referiu à constante formação dos colaboradores e ao seguimento de boas práticas. Especificou que o pão praticamente não sai das mãos dos colaboradores no acto de amassar, tender e moldar, sendo que o trabalho é feito por cerca de 3/4 trabalhadores e a massa vista numa mesa. (…) Susana R., engenheira alimentar da (…). Outrossim demonstrando conhecimento funcional, descreveu minuciosamente o processo de fabrico do produto seco – mix – nas suas instalações. Concretamente mencionou que o processo é vertical, tendo apenas intervenção humana na introdução das farinhas numa abertura lateral da tremonha, e que nele existem vários pontos de controlo consistentes em malhas de 2 mm, peneiros e detectores de metais. Acresce que os colaboradores estão proibidos de comer nas ditas instalações, acrescentou. No que aos autos alude, disse ter contactado com os colaboradores que negaram a presença do dente” (…). 14. Resulta, do exposto, que a Recorrente procurou demonstrar a este Tribunal que tudo fez, averiguando de todas as formas possíveis, em conformidade com aquela que é a sua política, para apurar se a versão apresentada pela Autora, que causou muita surpresa à Recorrente, seria susceptível de ter ocorrido nas suas instalações. 15. Numa tentativa de tornar a sua versão menos inverosímil, o marido da Autora procura afastar que se tratasse de uma fatia de pão, mas de uma “carcaça” forrada com côdea que tornasse difícil a visualização de um dente. No entanto, foi transmitido pela testemunha Sandra F. que se tratava de pão fatiado. 16. Se observamos o título da carta que a P. envia para a Autora, datada de 30 de Agosto de 2016, e que foi junta aos autos pela Autora (e reproduzida pela Recorrente) com “Assunto: Esclarecimento sobre Pão 8 Cereais 400g adquirido na loja de Linda-a-Velha” confirmamos o tipo de pão em causa. 17. Foi também referido pelas testemunhas da Recorrente que nunca antes receberam uma reclamação nestes termos, pelo que, estamos a falar de um episódio pouco comum de ter sucedido, como se compreende. 18. Assim, pelos motivos acima explanados, outra conclusão senão dar os factos E), H) e O) como não provados não pode ser alcançada pelo douto Tribunal a quo. 19. Deve passar a constar dos factos dados como provados que: - Foram verificados os dentes de todos os colaboradores da secção da padaria, não tendo sido identificada a falta a nenhum. 20. Conforme supra se referiu, a testemunha Sandra F. transmitiu a este Tribunal que observou a boca de todos os colaboradores da secção da padaria, que são os únicos que entram na referida secção, e não apenas que “asseverou ter perguntado a toda a equipa da padaria se alguém teria perdido um dente, sendo a resposta não”, conforme consta da motivação. 21. Por outro lado, resultou do depoimento da Joana F. que esta, quando se deslocou à loja na sequência da reclamação objecto dos presentes autos, verificou a boca dos colaboradores, esta sim, daqueles que se encontravam ao serviço naquele dia. Pelo que, temos aqui, pelo menos para os que estavam naquela data ao serviço, uma dupla verificação, que deverá ser considerada. 22. Deveria o Tribunal a quo ter dado os seguintes factos como provados: - Por outro lado, no momento em que a autora apresentou a reclamação, a funcionária da 1.ª ré averiguou o estado do pão, o qual se encontrava mole e em condições conformes; - Por sua vez, a 2.ª ré deu início ao processo de averiguação da responsabilidade, tendo, inclusive, solicitado um relatório de peritagem a uma entidade independente, e concluiu pela inexistência de responsabilidade da ora 1.ª ré o que, oportunamente, transmitiu à autora. 23. Quanto ao primeiro ponto, a testemunha Sandra F., referiu expressamente que recebeu a fatia de pão se encontrava mole e conforme, bem como o dente, que inclusivamente guardou para ser recolhido pela equipa do Controlo de Qualidade, não se compreendendo como é que o Tribunal a quo simplesmente ignora essa parte do seu depoimento, nem sequer explicando o porquê de não o ter considerado. 24. Relativamente ao segundo ponto, se visualizamos a carta de declinação de responsabilidade enviada pela S. (correctora), a qual foi junta aos autos pela Autora (e a Recorrente reproduziu), refere que “após análise dos elementos que constituem o processo de gestão de reclamação em assunto, bem como das demais diligências efectuadas entre elas o relatório de peritagem efectuado por uma empresa independente Viapre, foi observado que não assiste responsabilidade do nosso cliente quanto ao dano reclamado. Assim cumpre transmitir que o processo será encerrado sem lugar ao ressarcimento das verbas reclamadas”. Com efeito, tal deveria constar dos factos dados como provados. 25. Crê-se pelo exposto que a sentença enferma de erros graves relativamente à matéria de facto, que devem ser revogados e substituídos em conformidade com o supra exposto. 26. Quanto à matéria de direito, o Tribunal a quo concluiu que “(…) temos por assente que a autora adquiriu um pão num estabelecimento comercial da 1.ª ré e, ao comê‑lo, trincou um dente que estava no seu interior. Concludentemente, fracturou a sua prótese dentária e sentiu dor e dificuldade na mastigação. (…) Destas matizes se extrai que a 1.ª ré pôs em circulação um produto desconforme ao à sua natureza e ao fim a que se destina. E que a autora veio a consumir. Nesta provocando danos. Ora, está patente o facto (consumo do pão), a ilicitude (desconformidade do pão), a culpa (existência da desconformidade do pão à data da sua colocação em circulação), os danos (fractura na prótese, sentimentos de dor/desconforto, tristeza, angústia, repulsa) e o nexo de causalidade (os danos elencados resultam da desconformidade do produto). (…) Uma reflexão mais demorada quanto à culpa da 1.ª ré. Como sobredito, tem o produtor responsabilidade objectiva sobre a desconformidade do produto, sobre ele impendendo a presunção de culpa pela mesma. Ao produtor cumpre, pois, ilidir esta presunção, o que não se entende ter logrado in casu a 1.ª ré. Vejamos. No caso, ao produtor apresentam-se duas formas de afastar a sua responsabilidade objectiva, ilidindo a presunção de culpa: ou comprova que o produto não foi colocado em circulação; ou comprova que à data da colocação em circulação, o produto estava conforme” (sublinhado nosso). 27. A Recorrente não concorda com o Tribunal a quo, na medida em que entende que tudo fez para demonstrar que o produto foi posto em circulação conforme. No entanto, e ao que parece, pela fundamentação do Tribunal a quo, essa seria sempre e necessariamente uma prova impossível. 28. O Tribunal a quo continua a respectiva fundamentação no seguinte sentido: “É certo que, por definição, a 1.ª ré leva a cabo uma série de procedimentos de higiene, segurança e formação, incluindo auditorias internas e externas. O mesmo se diga quanto aos seus fornecedores. Tudo tendente à conformidade dos produtos quando na mão dos consumidores. Tal ficou assente. E no que tange o caso vertente, ficou assente que a 1.ª ré, perante a comunicação do sucedido por parte da autora, encetou uma série de diligências a fim de perceber a origem do dente no pão. Auditou a padaria do estabelecimento comercial em questão, seja o material, seja o processo, sejam os colaboradores. O mesmo solicitou ao seu fornecedor. Nada detectou a 1.ª ré no nos ditos padaria, processo de produção e colaboradores. E nada detectou o seu fornecedor. A análise (visual e manual) do dente e do pedaço de pão em que se inseria por engenheira alimentar da 1.ª ré que, não foi conclusiva relativamente à origem da desconformidade. Ora, não concluiu a 1.ª ré que a desconformidade não existia à data da colocação em circulação do produto. Na verdade, do que fica assente ressalta o intento e esforço da 1.ª ré no sentido de reduzir a probabilidade de existência de desconformidade nos seus produtos. Porém, tal não implica necessariamente que no caso particular tal não tenha sucedido, como a própria não consegue concluir” (sublinhado e negrito nosso). 29. E continuou a motivação no seguinte sentido: “Em todo o caso se questiona: o que poderiam ter detectado as auditorias e acções de fiscalização no caso concreto? Um dente, segundo o normal acontecer, dificilmente deixa rasto num processo de fabrico, na maquinaria e afins. No que toca aos colaboradores, a acção de perguntar pela falta de dentes ou observar as suas bocas não se afasta inexoravelmente daqui a origem. Aliás, nem todos os colaboradores estariam na padaria no dia da auditoria. Por outro lado, não fica assente qualquer acção - seja da autora, seja de terceiro - interposta no tempo entre a colocação do produto em circulação e o acto de consumo por parte da autora que pudesse afastar a culpa da 1.ª ré por dela – da dita acção - advir a desconformidade. O consabido concurso do “lesado”, aqui consumidor ou de terceiro. (…) A 1.ª ré não consegue ilidir a presunção segundo a qual, independentemente de culpa, colocou no mercado um produto defeituoso que causou danos, por um lado. A 1.ª ré não consegue ilidir a presunção, segundo a qual o cumprimento defeituoso da obrigação equivalente a falta de cumprimento não procede de culpa sua.” (negrito e sublinhado nosso). 30. Andou mal o Tribunal a quo ao concluir no sentido supra. As auditorias e as acções de fiscalização são os procedimentos que a Recorrente tem instituídos, precisamente para apurar se é possível concluir no sentido das reclamações que são apresentadas pelos clientes, e se houve ou não alguma falha que permita o relatado de ter ocorrido. E se não fossem esses procedimentos, que no caso objecto dos presentes autos foram explicados, reitera-se, como é que se poderia averiguar se as versões apresentadas pelos clientes/consumidores são susceptíveis de terem ocorrido? 31. De um ponto de vista normativo, no que respeita à relação contratual estabelecida entre as partes, dispõe o art.º 874.º do Código Civil que a compra e venda é um contrato típico e nominado, pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço. Decorre da celebração do contrato de compra e venda a obrigação geral, para as partes, do seu cumprimento pontual (art.ºs 406.º e 762.º do Código Civil) e as obrigações específicas de entrega da coisa, no estado em que se encontrava ao tempo da venda, pelo vendedor, e de pagar o respectivo preço, pelo comprador (art.ºs 879.º, alíneas b) e c), e 882.º, n.º 1, do Código Civil). 32. A venda de coisas defeituosas encontra-se regulamentada nos art.ºs 913.º e seguintes do Código Civil. Preceitua o art.º 913.º do Código Civil que “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente ([relativo ao regime da venda de bens onerados, cujo regime se encontra previsto nos arts.º 905.º e seguintes do Código Civil), em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”, sendo que “quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”. 33. Resulta, como se vê, para o vendedor, a obrigação de conformidade da coisa com o contrato celebrado. 34. O regime de venda de coisas defeituosas encontra, pois, a sua finalidade última no restabelecimento do equilíbrio que deve existir entre as prestações das partes que celebram um contrato de compra e venda, e do qual emergem direitos e obrigações para ambas as partes, tendo em conta a relação sinalagmática adjacente. 35. Efectivamente, estando em causa uma relação entre um consumidor e um profissional, aplicar-se-á o regime especial de protecção do consumidor, restando para o Código Civil os casos que se encontram excluídos do âmbito de protecção do consumidor: os contratos celebrados entre dois particulares, os contratos celebrados entre dois profissionais, e os contratos celebrados entre um consumidor e um profissional em que aquele vende a este um bem, podendo ou não este vender-lhe, simultaneamente, outro bem, neste caso, a chamada “venda de bens de consumo invertida”. 36. Nos termos do Decreto-lei n.º 383/89, de 6 de Novembro, o produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação. 37. De notar que o não cumprimento contratual pode revestir a modalidade de cumprimento defeituoso, ao lado do incumprimento definitivo e do atraso no cumprimento. 38. Nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, ou seja, cabe à Autora alegar e provar o direito de que se arroga ser titular. Por seu turno, nos termos do n.º 2 do referido preceito legal, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita, ou seja, caberá à Recorrente. 39. Ora, no presente caso, e tendo em conta o já referido quanto ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, cabe ao consumidor o ónus de alegar e provar a existência da desconformidade e que ele já existia no momento da entrega da coisa. Porém, estabelece o n.º 2 do art.º 2.º daquele Decreto-Lei a presunção de que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos factos elencados nas alíneas a) a d). 40. Dispõe o art.º 350.º do Código Civil que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, podendo ser ilidida mediante prova em contrário. Tais presunções legais são importantes elementos que facilitam a prova ao consumidor. Porém, embora delas disponha, não fica o consumidor desonerado, sem mais, de provar a existência da ausência de qualidade do bem, sendo que as presunções legais apenas operam quando se provem os factos base que lhes estejam adjacentes. 41. Quer isto dizer que, para que o consumidor beneficie da presunção de desconformidade, tem de alegar e provar factos da vida real dos quais se possa razoavelmente concluir a falta de qualidade e desempenho normal que é de esperar, atendendo à natureza do bem (cfr., no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.03.2014, no proc. n.º 783/11.2TBMGR.C1.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt). 42. Sendo certo que a desconformidade do bem, uma vez verificada, faz presumir que ela já existia à data da entrega do bem ao comprador/consumidor, no caso presente apenas se provou que a autora fracturou a prótese, não tendo ficado demonstrado que provinha do dente que constava no interior do pão. 43. Isto porque, atendendo à natureza do bem em causa – um produto alimentar – a existência de um dente no seu interior, pelas regras da experiência comum (atendíveis no âmbito do funcionamento das presunções), não é suficiente para que se conclua pela presunção de que um facto é ilícito e culposo sem mais, uma vez que se trata de um objecto não fisicamente integrado no produto, o que suscita, naturalmente, sérias dúvidas quanto à relação de indissociabilidade entre o dente e o produto em si mesmo. 44. De facto, pelas regras da experiência comum (atendíveis no âmbito do funcionamento das presunções), teria de ser necessariamente detectável quando lhe é barrada manteiga no pão ou no momento da trinca e/ou da mastigação. 45. Não se provando essa falta de qualidade e desempenho, não pode o consumidor beneficiar da presunção de desconformidade do bem, pois que não logrou provar os factos base (factos da vida real conhecidos) para deles retirar a ilação permitida pela lei (a falta de conformidade) – não funcionando a presunção, não recaía sobre a Recorrente o ónus de a ilidir, demonstrando o contrário da ilação a que tenderia a presunção. 46. Uma vez que não funcionaram as ditas presunções legais, cumpria à Autora, então, a efectiva prova de que o dente já se encontrava no pão aquando da compra do mesmo e entrega desta à Autora, só assim se fazendo a prova da desconformidade do bem destinado ao seu consumo, o que não aconteceu. 47. Assim, não provando a Autora que o dente já se encontrava dentro do pão aquando da sua compra (art.º 342.º do Código Civil), ou seja, não demonstrando a desconformidade do bem, não se pode assacar qualquer responsabilidade à Recorrente, inexistindo, nessa medida, qualquer obrigação de indemnizar a Autora (artsº. 12.º da Lei de Defesa do Consumidor e 798.º do Código Civil). 48. Não se aplicam, pelos motivos acima referidos, o art.º 798.º, nem tampouco a presunção referida no art.º 799.º do Código Civil, conforme consta da sentença. 49. Pelo que, deve a decisão proferida ser substituída por outra que conclua que a Autora não conseguiu demonstrar que o pão tinha um dente no seu interior, o que, naturalmente, determina a improcedência da presente acção. 50. Salvo melhor opinião, o valor de 2.000€ fixado a título de danos não patrimoniais afigura-se desajustado, por excessivo, atendendo aos critérios da maioria da jurisprudência para casos análogos, aos quais se deverá sempre atender em cumprimento do art.º 8º, n.º 3 do Código Civil, bem como em obediência ao princípio constitucional da igualdade, de modo que a fixação de indemnizações desta natureza não seja arbitrária, pautando-se antes pelo critério da equidade que garanta igual tratamento a vítimas e familiares de eventos danosos similares. 51. O Tribunal a quo dá como provado que “W) Também da situação descrita resulta que a autora não só sofreu dores aquando do consumo do produto adquirido à 1.ª ré, como teve posteriormente dificuldades e desconforto na mastigação de outros produtos, atenta a sensibilidade da sua dentição após o ocorrido. X) Tendo inclusive a necessidade de alterar os seus hábitos alimentares, porquanto o consumo de alguns produtos com consistência mais sólida lhe provocavam dores e dificuldades na mastigação. Y) Acrescem a estes factores que a autora é uma pessoa com alguns problemas graves de saúde, nomeadamente ao nível cardio-vascular e de diabetes, tendo-a deixado triste, angustiada e abatida, ao constatar que, nem ao nível desta cirurgia as coisas lhe corriam bem. Z) No momento em que a autora consumiu o produto adquirido à 1.ª ré e se apercebeu do objecto que tinha na boca, um natural sentimento de repulsa e nojo, que lhe causou vómitos.” 52. Para indemnização deste tipo de danos há que atender ao que preceituam os arts.º 494.º (no qual se estabelece a regra que, em caso de mera culpa, a indemnização até poderá ser inferior ao dano efectivo) e 496.º do Código Civil. E, nos termos desta última disposição legal, merecem ser indemnizados os danos não patrimoniais graves devendo a indemnização ser fixada equitativamente. 53. No entendimento da Recorrente, os danos sofridos pela Autora não merecem ser indemnizados à luz da danos não patrimoniais, o que, caso assim não se entendesse, o montante arbitrado deveria ser, em muito, inferior. 54. Como ensina o Prof. Antunes Varela, in ‘Das Obrigações em Geral’, a gravidade do dano deve medir-se em termos de um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos. Portanto, haverá que atender aos factos, que relevam para a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais, numa perspectiva objectiva, que o mesmo é dizer, de acordo com a realidade geral. Mas a indemnização deve ser fixada, reforça-se, equitativamente – o que significa que não pode ser fixada arbitrariamente, segundo um qualquer critério, que nem sequer se encontra fundamentado. 55. Tendo presente que a indemnização por danos não patrimoniais não pode constituir fonte de enriquecimento, e atendendo às indemnizações fixadas para casos semelhantes e à actual conjuntura económica, entende a Recorrente que a indemnização justa e adequada, no caso concreto, não poderá estar nem perto do montante de € 2.000,00 (nem sequer à luz dos factos “generosamente” dados como provados pelo Tribunal a quo). 56. A fundamentação jurídica que o Tribunal a quo dá para justificar a atribuição daquele valor, no sentido de “(…) que a autora sentiu dor e dificuldade /desconforto na mastigação. Além de a princípio, repulsa e horror, após, tristeza e angústia. (…) A dor associada à dificuldade na mastigação e, em última instância, alteração transitória da dieta alimentar não se trata de um transtorno ordinário. (…) A repulsa e o horror em face da factualidade apreciada merecem igualmente a tutela do direito, na óptica de um homem médio. (…) E a tristeza e angústia à luz do quadro clínico da autora são de acolher nesta indemnização. Com efeito, a debilidade de saúde da autora aliada ao acontecimento sub judice é de molde a levar, segundo critérios de experiência comum e normalidade das coisas, a tal tipo de sentimento”, não colhe perante o que alegadamente sucedeu. 57. A Autora fracturou uma prótese dentária temporária, não partiu um dente próprio, e em consequência teve de colocar um dente postiço completamente diferente do que tinha, nem tampouco ficou a padecer de qualquer dano futuro. 58. Entende a Recorrente que ainda que a Autora tivesse sentido tristeza e angústia, tais sentimentos, à luz da experiência comum, não são merecedores da tutela do Direito, e como tal, não devem ser indemnizáveis. 59. O douto despacho proferido em 24.09.2018 indeferiu a intervenção principal provocada da seguradora, F., S.A., requerida pela Recorrente na sua Contestação, admitindo a sua intervenção apenas na qualidade de assistente. 60. Nos termos do supra citado despacho, a Meritíssima Juíza decidiu o seguinte: “(…)Assim, a F., SA, apenas terá legitimidade para intervir como parte principal nesta acção se for sujeito da relação material controvertida, nos termos em que a mesma é configurada pela autora na sua petição inicial. Ora, compulsado o teor da petição inicial, não se vislumbra qualquer situação de litisconsórcio voluntário ou necessário entre a ora ré e a F., S.A.. Na verdade, de acordo com os factos alegados pela autora na sua petição, os únicos sujeitos passivos da relação material controvertida são a 1ª ré, requerente do presente incidente, e a 2ª ré “S., S.A”, para a qual, segundo a autora, a 1ª Ré transferiu a sua responsabilidade civil no que concerne aos danos causados a terceiros emergentes da sua actividade comercial, por via da existência de um contrato de seguro. (…) Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, decido: a) Indeferir a requerida intervenção principal provocada de F., S.A.; b) Deferir a intervenção acessória provocada de F., S.A., para intervir na causa como assistente da 1ª ré;”. 61. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, entende a Recorrente que o douto Tribunal a quo não tem qualquer razão em decidir nos termos em que o fez, conforme procurará demonstrar. 62. Na sua Contestação, a Recorrente requereu, a título primário, a intervenção principal provocada da seguradora, por força da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil no qual se prevê uma franquia no montante de 5.000€ (cinco mil euros) a pagar pelo segurado, suportando a seguradora o remanescente do montante a indemnizar, juntando aos autos o documento que comprova a existência do seguro. 63. Nos casos de intervenção principal provocada, o chamado deverá ter um interesse paralelo ao da parte a que se irá associar, e a situação dos autos é caracterizada por ser a Recorrente a requerer a intervenção de uma entidade terceira – a seguradora - para quem facultativamente transferiu a responsabilidade civil emergente de incidentes ocorridos imputáveis à Recorrente. 64. Com efeito, tendo a segurada-lesante celebrado um contrato no qual a seguradora se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário até determinada quantia, o cumprimento das obrigações daquele, a prestação a exigir pelo beneficiário é só uma, podendo a mesma ser exigida, por força do contrato, tanto ao segurado como à seguradora, pelo que o terceiro lesado sempre teria possibilidade de demandar a alegada lesante e a seguradora, em litisconsórcio voluntário (art.º 32.º do CPC). 65. Ora, do incontestável litisconsórcio voluntário emerge o direito da R. segurada fazer intervir a título principal a sua seguradora, como sua associada, mediante o incidente de intervenção principal provocada, nos termos dos art.ºs 311.º e seguintes do CPC. 66. A natureza da relação emergente do contrato de seguro e a estreita conexão existente entre as duas relações é suficientemente justificativa da interpretação supra referida, sobretudo porque o legislador, quando regulou o regime do contrato de seguro previu a possibilidade do lesado demandar directamente a seguradora para quem a título facultativo foi transferida a responsabilidade (cf. art.º 140.º do Decreto-Lei n.º 72/2008). 67. Parafraseando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-11-2012, processo n.º 3868/11.1TBGDM-A.P1,“(…) A intervenção principal provocada abrange todos os casos em que a obrigação comporte pluralidade de devedores ou quando existam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, sob condição de o réu ter algum interesse atendível em os chamar a intervir na causa, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub-rogação que lhe assista. (…) Neste sentido consta do acórdão da Relação de Guimarães de 06.01.2011, proferido no processo n.º 5907/09.7TBBRG-A-G1, no sítio do ITIJ: ‘Porém, atenta a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (art. 444º, do Código Civil), a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário (…).’ Mais acrescenta ‘que, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do art.º 497.º, do Código Civil, pelo que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro. Na verdade, pelo contrato de seguro apenas se transferiu o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento (cfr. Ac. STA de 01.02.2000, Acórdãos Doutrinais, 466º-1231).’ (…) Em resumo e conclusão: O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro (…)” – disponível em www.dgsi.pt. 68. Entende a Recorrente que ao ter transferido a sua responsabilidade civil para a seguradora, outra não poderá ser a decisão que não a revogação do despacho ora recorrido, substituindo-o por outro que defira o chamamento da seguradora F. na qualidade de interveniente principal. 69. Seria absurdo ter de lançar mão de uma acção de regresso para ser ressarcida de eventuais montantes que, na sequência de um sinistro excedessem a franquia. 70. Crê-se por todo o exposto que a sentença enferma de erros muito graves relativamente à matéria de facto e de Direito, que devem ser revogados e substituídos em conformidade com o supra exposto. Não foi apresentada alegação de resposta pelos AA. *** Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com: i) A admissão da intervenção principal provocada da seguradora F., S.A.; ii) A nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão e por omissão de pronúncia; iii) A alteração da matéria de facto; iv) A caracterização da desconformidade do bem produzido e vendido pela 1ª R. e consequente afirmação da responsabilidade desta na reparação dos danos causados; v) A indemnização por danos não patrimoniais. *** Todavia, e no que respeita à questão identificada em i) (tal como se mostra delimitada pelas conclusões 59. a 69. da alegação da 1ª R.), está em causa a impugnação do despacho de 24/9/2018, pelo qual o tribunal recorrido decidiu o incidente de intervenção de terceiro suscitado pela 1ª R. na contestação, indeferindo a requerida intervenção principal da seguradora F., S.A. e deferindo a intervenção acessória da mesma seguradora. Dispõe a al. a) do nº 1 do art.º 644º do Código de Processo Civil que cabe recurso de apelação (autónoma) da decisão que ponha termo ao incidente processado autonomamente. Como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 776-777), “confrontado com qualquer decisão de 1ª instância relativamente à qual estejam reunidos todos os pressupostos da recorribilidade em função do valor, da sucumbência ou de alguma norma especial, a parte vencida que pretenda impugná-la deverá verificar se a mesma se integra ou não em algum dos preceitos dos nº 1 e 2. Obtendo resposta positiva, a parte tem o ónus de interpor recurso no respectivo prazo, sob pena de se formar caso julgado; já se a resposta for negativa, a impugnação da decisão é diferida para a ocasião em que for interposto recurso de alguma das decisões previstas no nº 1 (…)”. E mais explicam, relativamente ao elenco de decisões susceptíveis de apelação autónoma nos termos do nº 1 do referido art.º 644º, que, no “que concerne aos incidentes, a apelação referida na al. a) apenas abarca os processados autonomamente, isto é, os incidentes que impliquem trâmites específicos que não se confundam com os da acção em que estão integrados (v.g. habilitação, verificação do valor da causa, intervenção de terceiros)”. Ou seja, pretendendo a 1ª R. impugnar a decisão que indeferiu a intervenção principal provocada da seguradora F., S.A., e tratando‑se de decisão relativa a incidente de intervenção de terceiro com regras de tramitação específicas (constantes dos art.º 311º e seguintes do Código de Processo Civil), distintas das regras de tramitação da acção declarativa comum em que se insere, assistia-lhe o ónus de interpor o correspondente recurso de apelação, no prazo a que alude o art.º 638º, nº 1, do Código de Processo Civil. Não o tendo feito, formou-se caso julgado formal sobre a questão conhecida no referido despacho de 24/9/2018, relativa à intervenção principal provocada da seguradora F., S.A., passando o aí decidido, no sentido da inadmissibilidade dessa intervenção principal, a ter força obrigatória dentro do processo, em face do disposto no art.º 620º, nº 1, do Código de Processo Civil. Pelo que desde já se decide que não há que conhecer, em sede do recurso ora interposto, da questão suscitada pela 1ª R. nas conclusões 59. a 69. da sua alegação, sob pena de violação do referido caso julgado formal. Assim, as questões a conhecer em sede do presente recurso cingem-se às que estão identificadas nos pontos ii) a v) acima elencados. *** Na sentença recorrida considerou‑se como provada a seguinte matéria de facto: A) A primitiva A. (Fernanda R.) foi durante anos cliente regular da loja P. da 1ª R. sita na R. (…), em Linda-a-Velha, onde adquiria diversos produtos alimentares e outros, destinados ao seu próprio consumo e do seu agregado familiar. B) Um desses produtos era, especificamente, um pão de mistura de oito cereais e sementes de sésamo, que a primitiva A. comprava frequentemente e que, posteriormente, ou consumia de imediato ou o congelava, para ser consumido à medida das suas necessidades alimentares. C) Em data que, concretamente não sabe precisar, mas que sabe ter sido em finais do mês de Julho, princípios do mês de Agosto, a primitiva A. adquiriu na indicada loja da 1ª R., uma vez mais, o indicado pão de mistura de oito cereais e sementes que congelou inteiro quando chegou a casa. D) Em 2/8/2016 a primitiva A. descongelou o dito pão para ser consumido. E) Todavia, aquando do acto de consumir o pão e ao introduzir um bocado do mesmo na boca sentiu os dentes estalarem ao trincar um objecto duro, não compatível com a natureza do produto. F) De imediato retirou esse objecto da boca e constatou que se tratava de um dente que, segundo o seu aspecto, forma e consistência, se assemelhava a um dente humano. G) Por breves instantes a primitiva A. pensou que tinha perdido um dos seus dentes, até porque tinha efectuado recentemente uma intervenção cirúrgica para implantação de uma prótese dentária. H) Contudo, e após verificar cuidadosamente o objecto que retirou da sua boca, verificou que não se tratava de nenhum dente seu, natural ou implantado, tendo, pois, de imediato, concluído que o objecto em causa se encontrava dentro do pão que adquirira. I) Simultaneamente horrorizada e estupefacta com o sucedido, e após comentar o acontecimento com o seu marido, presente no momento em que o produto foi consumido, e outros familiares, a primitiva A. deslocou-se em 5/8/2016 à loja onde tinha adquirido aquele pão, tendo apresentado uma reclamação, na qual, sucintamente, explicou os factos supra referidos e também entregou o objecto que encontrara dentro daquele produto, uma vez que segundo foi informada pela pessoa que, no atendimento ao público, recepcionou a reclamação, este iria ser enviado para um laboratório para análise. J) Foi também informada no mesmo momento que a sua questão iria ser devidamente acompanhada pelos canais próprios da 1ª R. e que, oportunamente, alguma coisa lhe seria comunicada. K) Em 30/8/2016 a primitiva A. recebeu uma carta da 1ª R., explicando o processo de fabrico e controlo de qualidade do pão de 8 cereais e dando conta de que o Departamento de Controlo de Qualidade da 1ª R. havia encetado várias diligências, concluindo pela impossibilidade de encontrar a origem do objecto. L) Face ao teor da indicada carta a primitiva A. entrou em contacto telefónico com os serviços da 1ª R. para tentar perceber quais os procedimentos seguintes, nomeadamente em matéria de responsabilidade civil. M) Contactos telefónicos esses que foram sendo feitos com alguma regularidade entre a primitiva A. e a 1ª R., até que esta a informou que o assunto estava em análise na sua correctora de seguros, que identificou junto da primitiva A. N) É que, pouco antes da ocorrência dos factos indicados, mais concretamente em 24/5/2016, a primitiva A. tinha sido submetida a uma intervenção cirúrgica para a colocação de uma prótese com onze implantes dentários e um corrector de bola sobre implante, intervenção essa pela qual tinha pago a quantia global de € 4.450,00. O) A primitiva A., no acto de consumo do pão em causa sentiu claramente os dentes a estalar, seguindo-se uma dor aguda e persistente que, inclusive, a obrigou a tomar medicação para amenizar o seu sofrimento. P) Na verdade, nos dias que se foram sucedendo aos factos referidos, a primitiva A. foi sempre sentindo dores na boca e gengivas quando mastigava alimentos sólidos, apercebendo-se que algo não estava bem com os seus dentes. Q) Perante o quadro descrito que não apresentava perspectivas de melhoria, a primitiva A. deslocou-se à clínica onde tinha efectuado a intervenção cirúrgica aos dentes para ser vista pelo seu médico dentista. R) Após essa consulta e diagnóstico à sua dentição e aos dentes implantados, aquele clínico determinou, em 10/12/2016, que a causa dessas dores e dificuldades na mastigação de alimentos se devia a uma fractura na estrutura da prótese implantada na boca da primitiva A. e que tal diagnóstico obrigava a sua substituição por impossibilidade de reparação da anteriormente existente. S) A substituição da dita prótese, por outra idêntica à anteriormente implantada na boca da primitiva A., tinha um custo de € 5.000,00. T) Uma vez que, desde a data da verificação do incidente descrito até à data da consulta atrás descrita, a primitiva A. não mais teve notícias sobre a reclamação apresentada, nem sobre a solução preconizada pelas 1ª e 2ª RR. quanto ao ressarcimento dos danos causados e considerando que as dores que lhe eram causadas pela mastigação de alimentos se mantinham, não teve a primitiva A. outra alternativa senão, a expensas próprias, efectuar nova cirurgia para aplicação de uma prótese nova, cirurgia essa que apenas conseguiu realizar, por falta de disponibilidade financeira, em 9/11/2017, e pela qual pagou o valor de € 5.000,00, integralmente suportados por si. U) Antes desta ultima intervenção cirúrgica e no âmbito de tentar uma resolução consensual do problema que danificou irreversivelmente a sua prótese dentária, tomou a primitiva A. a iniciativa de enviar, em 22/11/2016, à 2ª R. uma carta na qual se vem novamente reportar à situação reclamada, juntando ainda o relatório médico e orçamento atrás, pugnando que esta assumisse a responsabilidade pelo ressarcimento da quantia despendida com a implantação de nova prótese, porquanto o dano verificado na anterior não procedia de culpa ou negligência sua. V) Contudo, a 2ª R., em resposta à indicada carta, em 7/4/2017, veio afirmar que não assistia qualquer responsabilidade do seu cliente, a 1ª R., quanto aos danos sofridos pela primitiva A. e declinou qualquer responsabilidade no que concerne ao seu ressarcimento. W) Também da situação descrita resulta que a primitiva A. não só sofreu dores aquando do consumo do produto adquirido à 1ª R., como teve posteriormente dificuldades e desconforto na mastigação de outros produtos, atenta a sensibilidade da sua dentição após o ocorrido. X) Tendo inclusive a necessidade de alterar os seus hábitos alimentares, porquanto o consumo de alguns produtos com consistência mais sólida lhe provocava dores e dificuldades na mastigação. Y) Acrescem a estes factores que a primitiva A. era uma pessoa com alguns problemas graves de saúde, nomeadamente ao nível cardio-vascular e de diabetes, tendo-a deixado triste, angustiada e abatida, ao constatar que, nem ao nível desta cirurgia as coisas lhe corriam bem. Z) No momento em que a primitiva A. consumiu o produto adquirido à 1ª R. e se apercebeu do objecto que tinha na boca, um natural sentimento de repulsa e nojo, que lhe causou vómitos. AA) A ASAE não detectou desconformidade legal nas acções de fiscalização que, em 22/12/2016, 13/4/2017, 7/3/2018 e 9/4/2018, realizou à 1ª R. BB) O pão objecto de reclamação é produzido, embalado e rotulado diariamente na secção de padaria no interior da loja da 1ª R. CC) A produção é efectuada tendo por base um preparado produzido por um fornecedor externo, que explicou que o produto é passado por vários crivos e ímanes de modo a verificar e eliminar corpos estranhos nas matérias-primas. DD) Nessa medida, foi assegurado pelo fornecedor externo que tal contaminação não seria possível de ocorrer na preparação do referido preparado. EE) O referido fornecedor confirmou, ainda, não ter identificado qualquer falha no mencionado processo de preparação. FF) Os fornecedores externos são auditados, com frequência, por técnicos de Qualidade e Segurança Alimentar da 1ª R., que verificam os procedimentos utilizados e se estão a ser cumpridas as regras de segurança alimentar. GG) O pão é amassado nas mãos dos colaboradores, sob o cumprimento de regras extremamente rigorosas. HH) Sendo certo que todos os colaboradores da secção de padaria têm e tinham à data formação para o efeito. II) Entre várias diligências efectuadas pela 1ª R., uma colaboradora do Departamento de Controlo de Qualidade dirigiu-se à loja para verificar junto de todos os funcionários da secção da padaria, se algum tinha perdido um dente, o que se certificou em sentido negativo. JJ) O estabelecimento comercial da 1ª R. é também auditado por técnicos (internos e externos) periodicamente, os quais verificam se estão a ser cumpridas as boas práticas e as regras de segurança alimentar. KK) Imediatamente após a reclamação em apreço nos presentes autos, a 1ª R. deu indicações aos técnicos para auditarem a loja, não tendo sido verificada qualquer anomalia nos procedimentos instituídos pela 1ª R. LL) À data dos factos a responsabilidade civil no que concerne a danos causados a terceiros emergentes da actividade comercial da 1ª R. encontrava-se transferida para a seguradora F., S.A. *** Na sentença recorrida considerou-se como não provado que: 1) Quanto à produção do pão na secção da padaria da 1ª R., apurou-se que a versão apresentada pela primitiva A. não seria susceptível de ter ocorrido. 2) Por outro lado, no momento em que a primitiva A. apresentou a reclamação, a funcionária da 1ª R. averiguou o estado do pão, o qual se encontrava mole e em condições conformes. 3) Por sua vez, a 2ª R. deu início ao processo de averiguação da responsabilidade, tendo, inclusive, solicitado um relatório de peritagem a uma entidade independente, e concluiu pela inexistência de responsabilidade da 1ª R. o que, oportunamente, transmitiu à primitiva A. *** Das nulidades da sentença recorrida Segundo a al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, uma sentença é nula quando a fundamentação esteja em oposição com a decisão. E segundo a al. d) do nº 1 do mesmo art.º 615º, uma sentença é nula quando deixar de ser conhecida questão que aí devia ser apreciada. Relativamente ao vício da oposição entre os fundamentos e a decisão, é sabido que o mesmo ocorre quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, reimpressão, 1981, pág. 141). Ou seja, tal vício corresponde ao erro lógico da argumentação jurídica, surgindo quando o resultado do silogismo judiciário aponta num sentido e a decisão aponta no sentido oposto. Já sobre a questão da nulidade da decisão judicial por omissão de pronúncia, refere Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra Editora, 2001, pág. 670): “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art. 660-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”. Com efeito, decorre do art.º 608º do Código de Processo Civil que na sentença o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Ou seja, o tribunal só está obrigado a conhecer (para além daquelas que são de conhecimento oficioso) de todas e cada uma das questões suscitadas pela causa de pedir e pelas excepções invocadas, na medida em que o conhecimento de cada uma delas não esteja dependente do conhecimento de outra. Por outro lado, e como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”. Revertendo tais considerações ao caso concreto dos autos, constata-se que o tribunal recorrido identificou correctamente a pretensão material apresentada pela primitiva A., afirmando corresponder a mesma à existência da obrigação da 1ª R. de indemnizar os danos sofridos pela primitiva A. E para chegar à conclusão da existência dessa obrigação da 1ª R. aplicou à factualidade apurada as normas jurídicas relativas à responsabilidade civil do produtor/vendedor de bens de consumo e à protecção do consumidor, afirmando a qualidade da 1ª R. de fabricante e vendedora do bem alimentar adquirido e consumido pela primitiva A., mais verificando a existência de danos causados por esse bem alimentar, e assim concluindo, face à aplicação do conjunto de normas em questão, pela referida obrigação da 1ª R. de ressarcir os danos em questão, através de uma indemnização em dinheiro, por ter entendido que a 1ª R. não logrou demonstrar a conformidade do bem alimentar com a sua natureza e fim, como lhe competia. Para sustentar as nulidades invocadas a 1ª R. sustenta a existência de factualidade provada que se mostra contraditória, do mesmo modo que sustenta que existem factos que não foram dados como provados e o deviam ter sido, porque se retiram da prova produzida. Face ao acima exposto, impõe-se concluir que a contradição apontada não é fundamento de nulidade da sentença, mas de impugnação da decisão de facto, segundo a disciplina do art.º 640º do Código de Processo Civil. Do mesmo modo, a omissão apontada também não é fundamento de nulidade da sentença, mas de impugnação da decisão de facto, nos mesmos termos acima referidos. E tal impugnação só é geradora da anulabilidade da sentença nos casos previstos na al. c) do nº 2 do art.º 662º do Código de Processo Civil. Ou seja, porque as invocadas nulidades da sentença recorrida se reconduzem a discordâncias quanto à decisão de facto (a considerar em sede de impugnação da mesma, na medida em que se verifiquem os pressupostos para tanto), face ao acima exposto impõe-se a conclusão da não verificação de qualquer contradição ou oposição entre os argumentos (de facto e de direito) expressos na sentença recorrida e a decisão aí tomada (já que se apresenta como lógico o resultado do silogismo judiciário exposto), do mesmo modo que fica por verificar a omissão de pronúncia quanto às questões que cumpria ao tribunal recorrido aí conhecer. Em consequência, e sem necessidade de considerações ulteriores, improcede a arguição de nulidades em questão. *** Da alteração da matéria de facto Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão. A respeito do disposto no referido nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil, refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 126): “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (…)”. Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”. E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”. No caso concreto dos autos constata-se que a 1ª R conclui que a factualidade dada como provada nos pontos E), H) e O) deve ser dada como não provada, do mesmo modo que deve ser dada como provada a matéria de facto que consta dos art.º 14º, 23º e 24º da sua contestação (que, em parte, corresponde aos pontos 2) e 3) da factualidade dada como não provada). Pelo que, relativamente ao referido ónus primário de delimitação do objecto do recurso, no que respeita à impugnação da decisão de facto, há que afirmar o cumprimento pela 1ª R. do mesmo. Todavia, no que respeita ao cumprimento do referido ónus secundário, na parte correspondente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados, constata-se que a alegação de recurso da 1ª R. é totalmente omissa de qualquer indicação nesse sentido, do mesmo modo que omite qualquer transcrição de quaisquer excertos da prova gravada. Com efeito, ao longo da sua alegação a 1ª R. menciona genericamente os depoimentos do “marido da Autora” (trata-se do A. Armando R.), bem como de Sandra F., Joana F., Susana R. e Rui A., mais afirmando que é a partir dos mesmos que é possível afirmar a alteração da decisão de facto, nos termos concretizados nas conclusões apresentadas. Mas em parte alguma da sua alegação transcreve os excertos de cada um dos depoimentos em questão que permitem afirmar a necessidade dessa alteração, do mesmo modo que não identifica as partes da gravação de cada um dos depoimentos, de modo a que seja possível ao tribunal recorrido apreender o afirmado pelas testemunhas, quanto à factualidade em questão, e assim poder concluir pela relevância dessas afirmações para a demonstração da factualidade constante dos art.º 14º, 23º e 24º da contestação, do mesmo modo podendo concluir que a factualidade constante dos pontos E), H) e O) não está demonstrada. Ou seja, é inequívoco que a 1ª R. não possibilita o “acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (segundo a caracterização do referido ónus secundário que é feita no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima referido). É certo que, como vem referido no mesmo acórdão, “este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento”. Do mesmo modo, também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/2/2018 (relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que a “razão de ser do requisito de impugnação estabelecido na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do mesmo Código”. Mas ficou igualmente afirmado que “o nível de exigência na exactidão das passagens das gravações não se pode alhear da metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados e colhidos em audiência”, sendo que “a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face ao grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efectuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso”. No entanto, nesse acórdão, como na restante jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça relativa à concreta configuração do referido ónus de impugnação secundário (citada em cada um dos acórdãos já identificados), salienta-se a existência da alegação de elementos identificativos da prova gravada que permitem concluir pelo preenchimento do referido ónus, desde a existência de transcrições (mais ou menos extensas) até à referência às sessões da audiência final em que os depoimentos gravados foram prestados, ou mesmo à localização temporal das partes relevantes relativamente à totalidade do depoimento (como nas referências ao princípio, meio ou fim do depoimento, ou, no caso em que o depoimento é prestado em mais de uma ocasião, à identificação da concreta ocasião onde se encontra a parte relevante). Também António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 771) sustentam que “o modo como se interpretam as normas sobre recursos não deve alhear-se dos grandes objectivos do processo civil, os quais tutelam no essencial a apreciação do mérito das pretensões. Isso é particularmente relevante quando está em causa a identificação, mais ou menos precisa, dos depoimentos em que o recorrente sustenta a sua posição (…). Por exemplo, é frequente a invocação de necessidade da indicação do minuto e do segundo da gravação em que se encontra a “passagem” que funda o recurso, fulminando-se com a rejeição os recursos que não satisfaçam tal pretenso requisito”. Mas não deixam de referir (pág. 770) a existência do referido ónus de indicação das passagens da gravação em que se funda a impugnação da decisão de facto (sem prejuízo da apresentação da respectiva transcrição), apenas rejeitando a “exponenciação dos ónus que a lei prevê nesta sede”, do mesmo modo rejeitando “uma interpretação demasiado rigorista, a ponto de ser violado o princípio da proporcionalidade e de ser denegada a pretendida reapreciação da matéria de facto”. Como já se referiu, a 1ª R. omitiu pura e simplesmente qualquer indicação tendente à localização da parte dos depoimentos que, na sua perspectiva, se apresentavam como relevantes para a demonstração do erro de julgamento dos pontos de facto que identificou. Não se trata de a 1ª R. ter indicado qualquer faixa ou ficheiro das gravações dos depoimentos em questão, nem tão pouco da apresentação de transcrições, ainda que pouco precisas ou incompletas. Trata-se de a 1ª R. afirmar genericamente que o que decorre dos depoimentos prestados pelas testemunhas que identifica conduzem a resultado distinto daquele a que chegou o tribunal recorrido, mas sem indicar as concretas passagens dos mesmos que devem ser valoradas, para que se obtenha tal resultado impugnatório, e assim impossibilitando o exercício pleno do duplo grau de jurisdição, no que respeita ao julgamento da matéria de facto sustentado na prova gravada. O que determina, sem necessidade de considerações ulteriores, a rejeição imediata da impugnação da decisão de facto, relativamente à ponderação dos depoimentos prestados em audiência final e que se mostram gravados. Todavia, e como a 1ª R. sustenta igualmente a necessidade de valoração de prova documental, sempre deverá este tribunal de recurso apreciar a impugnação da decisão de facto com base nessa prova, mais podendo suceder a necessidade de fazer uso dos poderes/deveres que decorrem do art.º 662º do Código de Processo Civil. *** Assim, e desde logo quanto à afirmação da impossibilidade de se encontrar um dente dentro do pão produzido e vendido pela 1ª R., sustenta esta que, tratando-se de um pão fatiado, produzido nos termos que resultam provados nos pontos BB) a HH), estando ainda demonstrado que a ASAE não detectou qualquer desconformidade legal no processo produtivo da 1ª R., nas diversas acções de fiscalização que realizou (ponto AA) dos factos provados), e também não resultando qualquer anomalia nos procedimentos desse processo produtivo, a partir das auditorias promovidas pela 1ª R. (pontos JJ) e KK) dos factos provados), não era possível que quando a primitiva A. (Fernanda R.) consumiu o pão tenha trincado um dente que se encontrava no interior do mesmo, desde logo pela circunstância de tal corpo estranho ser necessariamente detectável na fatia de pão a ser consumida, designadamente se lhe fosse barrada manteiga. Ou seja, a argumentação da 1ª R. parte do pressuposto que o pão em questão estava fatiado quando foi adquirido por Fernanda R., e assim tendo sido consumido. Todavia, na reclamação apresentada por Fernanda R. (que corresponde ao documento 1 junto com a P.I.), a mesma afirmou que “Comprei um pão de sementes e quanto o fui consumir trinquei um objecto que me fez doer até hoje e quando verifiquei era um dente (parte) provocando-me uma repulsa enorme”. Quer nessa reclamação, quer na P.I., nunca foi afirmado por Fernanda R. que se tratava de um pão fatiado. Na sua carta de 30/8/2016 (correspondente ao documento 2 junto com a P.I.) a 1ª R. identificou tal pão como sendo um “Pão 8 Cereais 400g”, mais reconhecendo que o mesmo “é produzido diariamente na secção de padaria da loja, sendo disponibilizado para o cliente devidamente embalado e rotulado”. Em momento algum da referida carta a 1ª R. afirma que se trata de um “pão de 8 cereais fatiado”, como depois alegou no art.º 11º da sua contestação. Ou seja, tal afirmação da 1ª R., de que se tratava de um pão fatiado, não encontra qualquer acolhimento nos elementos documentais contemporâneos do evento. Pelo que, desde logo, não há que partir da afirmação da existência de um pão fatiado, para concluir pela inevitável detecção do objecto duro que Fernanda R. trincou, caso o mesmo estivesse presente nesse pão no momento do seu consumo. E, desta mesma forma, está afastada a invocada inverosimilhança da afirmação do marido daquela (o A. Armando R.), no sentido de se tratar de um pão com côdea, tornando difícil a visualização do objecto duro que a mesma Fernanda R. trincou. Do mesmo modo, tendo a referida Fernanda R. entregue à 1ª R. (na pessoa da testemunha Sandra F.) o dente que indicou ser o objecto duro que se encontrava no interior do pão, em momento algum a 1ª R. colocou em causa que tal objecto não fosse o que a Fernanda R. trincou, antes afirmando e tentando demonstrar a impossibilidade de tal objecto ter sido introduzido no pão durante o processo de fabrico do mesmo, desde logo face às medidas que estão implementadas para impedir eventos como esse. Todavia, no que respeita ao fabrico, em concreto, daquele pão adquirido por Fernanda R., a circunstância de a 1ª R. (através da testemunha Sandra F., atenta a sua qualidade de gerente da loja de Linda a Velha) constatar que nenhum dos seus funcionários da secção da padaria havia perdido um dente não é circunstância bastante para afirmar a impossibilidade de o pão vendido à referida Fernanda R. ter no seu interior a parte do dente que a mesma trincou. E desde logo porque, se se trata de parte de um dente, não é a inspecção oral sumária que a referida Sandra F. afirmou ter feito que permitiria a afirmação cabal da (in)existência de dentição completa e sem falhas em cada um dos referidos funcionários (nos termos alegados no art.º 24º da contestação da 1ª R.). Ou seja, mesmo perscrutando oficiosamente o depoimento da testemunha Sandra F., a sua conjugação com o teor dos dois documentos acima referidos não aponta no sentido da invocada impossibilidade de o objecto duro, que foi trincado por Fernanda R., se encontrar no interior do pão produzido e vendido pela 1ª R. e consumido por aquela. Por outro lado, a circunstância de o pão se encontrar em “condições conformes” quando foi consumido por Fernanda R. (e, consequentemente, quando foi apresentado com a reclamação de 5/8/2016), bem como a circunstância da “inexistência de responsabilidade” da 1ª R. na ocorrência do evento danoso (art.º 23º e 14º da contestação da mesma), não é matéria que deva constar do elenco de factos provados, na medida em que não é matéria factual, mas conclusiva e de direito, como bem referiu o tribunal recorrido na fundamentação constante da sentença recorrida. O que é o mesmo que afirmar a impossibilidade da sua inclusão no elenco de factos provados. No mais, a prova documental a que acima já se fez referência evidencia claramente a existência do referido objecto duro (o “dente”), do mesmo modo não afastando a verificação da sua existência no interior do pão (mais concretamente, no “bocado do mesmo” que Fernanda R. introduziu na boca) e, consequentemente, o acto de ter sido trincado pela mesma Fernanda R., no acto de consumir tal pão. E quanto à circunstância de se tratar de um objecto não compatível com a natureza do produto em causa, basta constatar que é da demais factualidade apurada que resulta que o processo de produção do mesmo envolve tão só água e um preparado que é passado por crivos (o denominado mix de farinhas), pelo que, se outras circunstâncias da vida comum não bastassem para concluir que na produção de pão não entram objectos duros (muito menos dentes, humanos ou não), bastava a utilização daquelas matérias primas para afirmar tal incompatibilidade com o pão em questão, produzido e vendido pela 1ª R. Do mesmo modo, a prova documental constante dos autos não afasta a verificação da factualidade elencada em O), antes a corrobora, designadamente a circunstância de ter sido diagnosticada a Fernanda R. a fractura na estrutura da prótese implantada na boca da mesma (de acordo com o teor do documento 4 junto com a P.I.), causando-lhe necessariamente dores, a “remediar” (ou amenizar, na expressão da factualidade alegada e provada) com os necessários e habituais medicamentos analgésicos, de venda livre em qualquer farmácia ou para-farmácia. Ou seja, não há como não concordar com o tribunal recorrido, quando afirma que “quanto ao facto não provado sob o n.º 2, mesmo (…) admitindo o estado do pão como mole, a presença de um dente – verificado o objecto pela mesma testemunha que afirma a dita textura – não se coaduna com a dita conformidade. Que é neste contexto, ademais, um conceito jurídico. Igualmente conclusivo é o facto não provado sob o n.º 3, em seu lugar ficando provado o fiel teor do relatório elaborado pela ASAE (facto AA)). Nestes termos, foram assim consignados os factos correspondentes como não provados”. Do mesmo modo, é de concordar com a fundamentação aí expressa, quando se afirma que “cumpre salientar dois aspectos que, na produção de prova em sede de julgamento, mais se mostraram controvertidos. Em primeiro lugar, a existência do dente. Vejamos que há total ausência de prova documental, designadamente fotogramas, do dente (…). Todavia, é sobretudo por mão da 1.ª ré que se faz prova do mesmo (…). Com efeito, são as testemunhas Sandra F. e, sobretudo, Joana F. que aludem ao dente que visualizaram, tendo inclusivamente a última manifestado não ter qualquer dúvida sobre a natureza do mesmo. Sendo certo que é infrutífera a discussão em torno da natureza do mesmo, afigurando-se que a desconformidade do produto se bastaria com um qualquer corpo estranho à sua normal composição. In casu, algo que não fosse matéria integrante do mix, levedura ou água. Em segundo lugar, a questão do tratamento dentário e a tentativa de claudicar a existência de danos e nexo de causalidade. Como já adiantado, dos documentos emitidos pela clínica dentária se retira com segurança que a autora foi sujeita a cirurgia e lhe foi colocada uma prótese fixa antes do acto de consumo em apreço. E que, após este, tal prótese quedou fracturada, o que implicou a sua substituição”. Ou seja, mesmo que o incumprimento pela 1ª R. do seu ónus secundário de identificação das passagens da prova gravada não impeça que este tribunal de recurso lance mão da mesma prova (ao abrigo dos poderes/deveres que resultam do art.º 662º do Código de Processo Civil), tendo em vista a sua conjugação com a prova documental produzida, para permitir o conhecimento das alterações pretendidas à decisão de facto, ainda assim não é possível, face ao acima exposto, afirmar os invocados erros de julgamento do tribunal recorrido ao dar como provada a factualidade elencada nos pontos E), H) e O). E, do mesmo modo, há que manter a decisão de facto, na parte em que não considerou no elenco de factos provados a matéria que consta dos art.º 14º, 23º e 24º da contestação da 1ª R. Pelo que, na improcedência da impugnação da decisão de facto, nos termos vertidos nas conclusões do recurso da 1ª R., mantém-se inalterada tal decisão. *** Da caracterização da desconformidade do bem produzido e vendido pela 1ª R. Se é certo que a 1ª R. não coloca em crise o enquadramento jurídico dado pelo tribunal recorrido ao caso concreto, no que respeita à aplicação das regras que regulam a responsabilidade objectiva do produtor, constantes do D.L. 383/89, 6/11, à aplicação da Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96, de 31/7) e bem ainda à aplicação das regras relativas à venda de bens de consumo, constantes do D.L. 67/2003, de 8/4, entende a mesma 1ª R. que, face à matéria de facto apurada, é possível concluir pelo afastamento da sua responsabilidade no ressarcimento dos danos sofridos pela primitiva A., já que se consegue afirmar o afastamento da presunção de desconformidade que a onera (atenta a sua qualidade de fabricante e vendedora de bens destinados ao consumo como alimentos), em razão da demonstração da conformidade do bem alimentar por si produzido e vendido à primitiva A. A 1ª R. chega a tal conclusão porque entende, por um lado, que a existência das auditorias e averiguações ao seu processo produtivo visam apurar da susceptibilidade da desconformidade invocada ter ocorrido, o que, no caso concreto, permitiu afastar tal susceptibilidade. E, por outro lado, porque entende que não ficou provada a existência do objecto duro no pão por si produzido e vendido, aquando do seu consumo pela primitiva A., caracterizador da desconformidade geradora da sua responsabilidade enquanto produtora/vendedora. Todavia, a 1ª R. chega a tais conclusões porque parte de uma realidade factual distinta daquela que resulta apurada. Com efeito, e ao contrário do que entende a 1ª R., resulta provado que o objecto duro que a primitiva A. trincou, enquanto mastigava um pedaço do pão que havia adquirido à 1ª R. (a qual havia fabricado esse bem alimentar), era um dente que se encontrava dentro de tal pão. Um pão é um bem alimentar destinado a ser consumido sem qualquer outro tipo de confecção ou processamento, para além do que resulta da própria arte da panificação (essencialmente a cozedura, em forno, de uma massa composta, pelo menos, por água, farinha de um ou mais cereais e fermento). Ou seja, é um alimento que não carece de qualquer outro processamento, para além daquele que lhe confere a sua natureza e fim. Nessa medida, não é suposto que no interior desse tipo de bem alimentar se encontre um objecto que não é destinado à alimentação humana (como é o caso de um dente, ou parte de um dente). Assim, e se um pão apresenta um dente no seu interior, pode-se concluir que se trata de um bem alimentar que não cumpre a natureza e o fim para que foi fabricado, pelo que se apresenta desconforme a tal natureza e fim. E não é a circunstância de o consumidor não detectar a existência desse objecto estranho à composição do pão no interior do mesmo que permite afastar, como pretende a 1ª R., a afirmação dessa desconformidade. Com efeito, o afastamento em questão só se pode verificar caso o consumidor, usando da necessária diligência (que será aquela do consumidor médio), lograsse descortinar a existência do objecto no interior do pão. Mas não estando demonstrado que as características do pão concretamente fabricado, embalado e vendido pela 1ª R., aliadas às características do referido objecto, tornavam este necessariamente visível à primitiva A., quando procedia ao consumo do pão, não se pode concluir, como pretende a 1ª R., que a afirmação da desconformidade do pão com a natureza e fim a que se destina está afastada, porque se exigia à primitiva A., enquanto consumidora final daquele bem alimentar, que detectasse o dente que se encontrava no interior do mesmo, não o introduzindo na boca para o consumir, por não poder deixar de saber, segundo as regras da experiência comum, que tal dente era um objecto duro e estranho à composição do pão, não devendo ser trincado e/ou mastigado, sob pena de poder causar lesões na prótese dentária que lhe tinha sido implantada recentemente. Do mesmo modo, não é a circunstância de o produtor do bem alimentar em questão adoptar toda uma série de procedimentos e diligências tendentes a impedir que existam objectos estranhos à composição daquele bem alimentar, ao longo do processo produtivo, que no caso concreto faz concluir, sem mais, pela insusceptibilidade de o referido objecto existir no interior do pão, no momento em que foi entregue pela 1ª R. à primitiva A. Com efeito, está demonstrado que o pão em questão foi entregue pela 1ª R. à primitiva A. e esta o levou para casa, onde o congelou inteiro, o descongelou posteriormente e iniciou o seu consumo, sem que tenha sido alegado (nem provado) qualquer outro circunstancialismo neste lapso temporal, o que afasta a susceptibilidade da introdução do objecto no interior do pão, entre a sua entrega à primitiva A. e o acto da sua introdução na boa da mesma (o que é o mesmo que afirmar, após a sua colocação em circulação pela 1ª R.). Ou seja, e como bem se refere na sentença recorrida, “não fica assente qualquer acção (…) interposta no tempo entre a colocação do produto em circulação e o acto de consumo (…) que pudesse afastar a culpa da 1ª ré por (…) da dita acção advir a desconformidade”. Do mesmo modo, e pese embora esteja demonstrado que a ASAE não detectou qualquer desconformidade legal nas acções de fiscalização que realizou à 1ª R. em 22/12/2016, 13/4/2017, 7/3/2018 e 9/4/2018, tal significa apenas que, nas datas das referidas acções de fiscalização, a entidade fiscalizadora em questão verificou que os processos produtivos da 1ª R. respeitavam as normas relativas à qualidade e segurança dos bens alimentares que produz, embala e comercializa na sua loja. Mas já não pode ter a virtualidade de fazer afirmar que essas mesmas normas foram respeitadas aquando do fabrico do pão que foi vendido pela 1ª R. em finais de Julho ou princípios de Agosto (de 2016). E como o tipo de bem alimentar em causa era fabricado diariamente pela 1ª R., há que concluir que aquele que foi entregue à primitiva A. foi fabricado no dia da sua venda (ou, o mais tardar, no dia anterior). Pelo que a acção de fiscalização de 22/12/2016 não podia, necessariamente, certificar que a não detecção de qualquer “desconformidade legal” respeitava ao lapso de tempo compreendido entre finais de Julho e princípios de Agosto. Do mesmo modo, ainda, a factualidade dada como provada em CC) a KK), se permite a afirmação genérica do cumprimento, pela 1ª R., de regras de higiene e segurança tendentes a impedir que no pão por si fabricado seja introduzido um objecto estranho à composição do mesmo, como foi o dente que se encontrava no interior do pão que a primitiva A. começou a consumir, já não permite a afirmação de que, concretamente no pão em questão, não ocorreu essa introdução durante o processo de fabrico do mesmo. Com efeito, nem a certificação negativa referida em II) tem essa virtualidade (basta verificar que, se não se tratar de um dente, mas apenas de parte de um dente, como a primitiva A. fez constar da reclamação que apresentou à 1ª R., tal certificação não é apta a afirmar a perda da parte de um dente por parte de algum dos funcionários da 1ª R. que entrou em contacto com a linha de fabrico do pão em questão), nem a circunstância de ter sido efectuada uma auditoria após o incidente permite assegurar que o concreto fabrico do pão vendido à primitiva A. não sofreu qualquer revés, ao nível do cumprimento das regras que asseguram a sua composição, qualidade e segurança enquanto bem destinado à alimentação humana. Ou seja, também aqui, e como bem se refere na sentença recorrida, se pode concluir que “do que fica assente ressalta o intento e esforço da 1.ª ré no sentido de reduzir a probabilidade de existência de desconformidade nos seus produtos. Porém, tal não implica necessariamente que no caso particular tal não tenha sucedido, como a própria não consegue concluir”. E, do mesmo modo, “se questiona: o que poderiam ter detectado as auditorias e acções de fiscalização no caso concreto? Um dente, segundo o normal acontecer, dificilmente deixa rasto num processo de fabrico, na maquinaria e afins”. E no “que toca aos colaboradores, a acção de perguntar pela falta de dentes ou observar as suas bocas não (…) afasta inexoravelmente daqui a origem” do objecto presente no interior do pão fabricado e vendido à primitiva A. Pelo que, tendo sido provada a desconformidade do bem alimentar fabricado e vendido pela 1ª R. (ónus que cabia aos AA., na posição de sucessores da compradora/consumidora daquele bem alimentar), e cabendo à 1ª R. a prova de que tal desconformidade não existia, o que não logrou alcançar, ou de que não lhe podia ser imputada, por dever ser exclusivamente imputada à acção de outrem (fosse a referida compradora, fosse um terceiro), o que também não logrou alcançar, torna-se inevitável afirmar, como na sentença recorrida, que a 1ª R. ficou obrigada a indemnizar os danos causados por tal desconformidade. O que equivale a afirmar que, também quanto a esta questão, improcedem as conclusões do recurso da 1ª R., não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida, quando aí se afirma a perfeição da obrigação de indemnizar que recai sobre a 1ª R. *** Da indemnização por danos não patrimoniais Quanto a esta questão, o tribunal recorrido entendeu fixar em € 2.000,00 a medida da reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela primitiva A., com recurso à seguinte fundamentação: “O artigo 496.º dita que a fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve ater-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. É pacífico na jurisprudência, posição que se sufraga, que incómodos ou transtornos não constituem danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, verbi gratia através de uma indemnização. Tal tipo de danos enquadra-se na normalidade da vida, exigindo por parte de quem os sofre um esforço de adaptação. Mas assim não se crêem os sentimentos expostos pela autora, dos mais aos menos físicos (dor, repulsa, horror, tristeza, angústia). A dor associada à dificuldade na mastigação e, em última instância, alteração transitória da dieta alimentar não se trata de um transtorno ordinário. Pelo menos quando a causa também não o é, como a título de exemplo um tratamento dentário voluntário. A repulsa e o horror em face da factualidade aprecianda merecem igualmente a tutela do direito, na óptica do homem médio. Trata-se de encontrar um dente de terceira pessoa num alimento, ao comê-lo. E a tristeza e angústia à luz do quadro clínico da autora são de acolher nesta indemnização. Com efeito, a debilidade da saúde da autora aliada ao acontecimento sub judice é de molde a levar, segundo critérios de experiência comum e normalidade das coisas, a tal tipo de sentimento. Contudo, o mesmo quadro clínico de que padecia a autora justifica a redução da quantia indemnizatória por danos não patrimoniais. É que se o mesmo serve para explicar o surgimento mais fácil e natural daqueles sentimentos perante a factualidade provada, também serve para entender que os mesmos têm uma concausa e anterior. Em conformidade, com amparo na equidade prevista no artigo 566.º, n.ºs 3 do Código Civil, afigura-se justo atribuir nesta sede aos autores, nesta sede, a quantia de € 2.000,00”. Já a 1ª R. sustenta que os estados psicológicos da primitiva A. que resultam provados (correspondentes a repulsa e nojo, dores, tristeza, angústia e abatimento) não são merecedores da tutela do direito, segundo o critério da gravidade que resulta do nº 1 do art.º 496º do Código Civil. Não sofre qualquer controvérsia que, “a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente ao dano, isto é, de valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de equivalente” (Vaz Serra, B.M.J. nº 83, pág. 85). Por outro lado, e como há muito vem referindo a doutrina, a gravidade do dano não patrimonial “há-de medir-se por um padrão objectivo (...) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)” (Pires de Lima e Antunes Varela, anotação ao art.º 496º do Código Civil, in Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, Coimbra, 1987). Por outro lado, ainda, “está definitivamente enterrado o tempo da atribuição de indemnizações baixas, miserabilistas; hoje, os tribunais estão sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais - credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser, como acontece com a integridade física e a saúde, que o Estado garante a todos os cidadãos (art.ºs 9º, b), e 25º, nº 1, da Constituição)” (segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/5/2005, relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt). Do mesmo modo, e segundo o mesmo acórdão, as “indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, “valem” hoje mais do que ontem; e assim, à medida que com o progresso económico e social e a globalização crescem e se tornam mais próximos toda a sorte de riscos - riscos de acidentes os mais diversos, mas também, concomitantemente, riscos de lesão do núcleo de direitos que integram o último reduto da liberdade individual, - os tribunais tendem a interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, particularmente a do art.º 70º do Código Civil”. E do mesmo modo, ainda segundo o mesmo acórdão, a “indemnização prevista no art.º 496º, nº 1, do CC, mais do que uma indemnização é uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos e não o de o recolocar “matematicamente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e, nessa exacta medida, irreparáveis, é uma reparação indirecta)”. Ou seja, desde logo há que não esquecer a necessidade de que “o montante a arbitrar seja significativo e se afaste do miserabilismo comum, conforme vem sendo afirmado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça” (segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/1/2016, relatado por Orlando Afonso e disponível em www.dgsi.pt). Por outro lado, importa não esquecer a função punitiva da responsabilidade civil, tal como a mesma vem sendo reconhecida na jurisprudência, explicando sumariamente a este propósito Paula Meira Lourenço (no artigo “A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação”, disponível online em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/09/responsabilidadecivil_paulameiralourenco.pdf) que no “nosso ordenamento jurídico, a dificuldade de avaliação dos danos não patrimoniais, danos difusos e dos danos “complexos, graves e irreversíveis”, possibilita a obtenção de lucro por parte dos meios de comunicação, dos fabricantes de produtos perigosos e dos agentes causadores de danos ambientais ou ecológicos, entre outros, os quais pagam diminutas indemnizações em sede de responsabilidade civil. Parece-nos que o desafio que se coloca ao julgador é claro: calcular a indemnização sancionatória ou punitiva de forma rigorosa, razão pela qual nos detivemos na análise dos critérios que a nosso ver, podem nortear esse cálculo, a saber: a) A equidade, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do agente e do lesado, e as demais circunstâncias do caso, previstos no artigo 496.º; b) As providências adequadas às circunstâncias do caso, nos termos do n.º 2 do artigo 70.º; c) O lucro do lesante. Se o julgador fizer bom uso destes critérios, estará a contribuir para: a) O aperfeiçoamento do método de cálculo da indemnização por danos não patrimoniais, danos difusos ou danos “complexos, graves e irreversíveis”; b) O reforço da tutela da pessoa humana relativamente à violação dos direitos de personalidade pelos meios de comunicação social sensacionalistas; c) A prevenção e punição do produtor que (…) prefere pagar indemnizações a eliminar os defeitos encontrados; d) A prevenção e punição do poluidor, em sede de responsabilidade ambiental”. Ou seja, e como bem se refere na sentença recorrida, simples incómodos ou transtornos não correspondem a danos não patrimoniais cuja gravidade deva merecer a tutela do direito, na medida em que correspondem a situações enquadradas na normalidade da vida em sociedade. Todavia, a ocorrência de dores decorrentes da fractura de uma prótese dentária, bem como as limitações daí decorrentes ao nível da alimentação, ultrapassa esse patamar dos transtornos próprios da vida em sociedade, pela própria limitação funcional que desencadeia, configurando-se como uma violação aos direitos de personalidade do lesado, a demandar indemnização. Do mesmo modo, o sentimento de repulsa e nojo pela constatação da existência de um dente humano num alimento que se encontra a ser mastigado, ultrapassa a simples sensação de se estar a comer um alimento fabricado ou confeccionado sem todas as preocupações de higiene e segurança (como, por exemplo, a existência de matéria vegetal ou mesmo pequenos insectos), já que é associada a um certo conceito de canibalismo ou de perda de partes ósseas do corpo humano, inadmissível no estádio actual da evolução humana. Ou seja, à luz do sentimento do “homem médio”, tais circunstâncias assumem uma gravidade merecedora da tutela do direito, na medida em que não é preciso ser-se particularmente insensível ou especialmente sensível para sentir nojo e repulsa, bem como dores (no momento do evento e posteriormente, até à substituição da prótese destruída), quando colocado em situação idêntica àquela em que se viu colocada a primitiva A. E como na determinação da medida indemnizatória dos danos não patrimoniais em questão deve fixar-se uma quantia que, não só seja algo mais que simbólica e não promova o “miserabilismo comum” que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça rejeita, como igualmente vise assegurar a função punitiva acima afirmada, daí decorre que o valor de € 2.000,00 encontrado pelo tribunal recorrido corresponde à acertada medida indemnizatória daqueles danos. Ou seja, também quanto a esta questão improcedem as conclusões do recurso da 1ª R., não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida, quanto aí fixa em € 2.000,00 o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais verificados, devida pela 1ª R. *** DECISÃO Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida. Custas pela 1ª R. 9 de Setembro de 2021 António Moreira Carlos Castelo Branco Lúcia Sousa